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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite, Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

quinta-feira, 14 de junho de 2018

João da Cruz e "O negócio ferroviário"

Por decreto de 14 de novembro de 1901 o governo abriu concurso para a adjudicação da linha de Mirandela a Bragança.
Contudo, as perspetivas de aparecerem candidatos eram escassas. José Beça, então governador civil de Bragança Abílio Beça, conseguiu cativar a casa Zagury & C.ª, mas esta queria uma adjudicação direta sem concurso público. Por outro lado, a CNCF, a principal interessada na linha, passava por um processo de reestruturação financeira e não estava em condições de apresentar uma proposta. Havia o risco de o concurso encerrar deserto, o que adiaria a realização do caminho-de-ferro. É neste contexto que João da Cruz surge a licitar com um lanço de 25,99 contos/km.
À entrada em cena do empreiteiro não terão sido alheios os Beças. Quando João da Cruz assumiu a empreitada de várias estradas em Carrazeda, um tio de Abílio Beça – Miguel Augusto – era condutor na direção-fiscal de Bragança, sendo possível que o empreiteiro tenha travado conhecimento com os Beças nesta altura. Absolutamente confirmado é o facto de Abílio Beça ser advogado de João da Cruz desde 1889. Por fim, em 1903, a Gazeta de Bragança confirma que foi José Beça, irmão de Abílio, quem recomendou Cruz para assumir o encargo da construção do caminho-de-ferro.
Só assim se entende que um empreiteiro de estradas, sem capitais próprios suficientes para construir um caminho-de-ferro e sem qualquer tipo de experiência na sua construção, se tenha lançado num empreendimento da envergadura da linha de Mirandela a Bragança, que, contudo, para Abílio Beça era “questão magna e à qual tem ligada a sua palavra e com ella o seu futuro político”.
A relação era simbiótica: Beça retiraria dividendos políticos com a adjudicação da obra e Cruz poderia beneficiar financeiramente do negócio.
Depois de afastados alguns obstáculos burocráticos, o contrato de concessão foi assinado a 24 de outubro de 1902. Contudo, Cruz nunca teve verdadeiro interesse na adjudicação, agindo apenas no sentido de impedir que o concurso ficasse deserto e procurando o trespasse, “um dos processos do corso que a moderna civilização nobilitou”. Pelo trespasse, o concessionário passava os seus direitos a uma companhia, recebendo em troca uma soma avultada ou um cargo confortável nessa empresa. O relatório de 1903 da CNCF comprova que Cruz procurou a companhia para obter a transferência da concessão e ficar com a responsabilidade da construção da obra. A direção aceitou na condição de Cruz angariar primeiro os capitais necessários.
O empreiteiro assim fez e nos meses seguintes, com o auxílio de José Beça, desdobrou-se em contactos em Portugal, Londres e Paris no sentido de cativar investidores. A pequenez do empreendimento (uma curta linha de 80 km) foi um dos obstáculos à angariação de capital. Anos antes, a CNCF sentira o mesmo problema com as linhas do Tua e de Viseu. Por isto, Cruz, a conselho de José Beça, tentou adicionar a linha do Corgo à sua concessão, mas o governo preferiu adjudicar o caminho-de-ferro à Fonseca, Santos & Viana.
O concessionário viu-se forçado a procurar outras soluções. Contactada a casa Burnay, esta propôs-lhe fornecer o capital necessário se Cruz trespassasse a concessão para a CNCF e ficasse como empreiteiro-geral (recebendo em troca 17,5 contos/km). João da Cruz aceitou, porém, nada resultaria no imediato. A sua missão complicou-se ainda mais em dezembro de 1902 com a morte de José Beça, que o vinha ajudando na tentativa de encontrar os capitais para a construção.
Entretanto, o prazo para o início das obras aproximava-se. Se Cruz não o cumprisse, o governo podia cancelar a concessão. Para evitar que isto acontecesse, o ministro das Obras Públicas concedeu ao concessionário duas prorrogações de prazo para o início da tarefa (7.1.1903 e 20.3.1903).
João da Cruz aproveitou os adiamentos para intensificar os contactos com possíveis investidores, porém, nada se realizou. Até que em março de 1903, o empreiteiro foi contactado por John Edwards, um sócio de Henry Burnay, que lhe prometeu o dinheiro necessário, na condição de Cruz baixar o preço do seu trabalho para 17,15 contos/km. O carrazedense aceitou. O acordo final estipulava que deveria trespassar a concessão a uma companhia escolhida por Burnay e pela Fonsecas, Santos & Viana; em troca tornava-se empreiteiro-geral da construção.
A companhia por trás deste negócio era naturalmente a CNCF, que, a 16 de maio de 1903, viu a assembleia-geral de acionistas autorizar a emissão de 2070 contos em 23 mil obrigações com juro de 4,5%. Obtidos os capitais, João da Cruz transferiu a concessão para a companhia. A 6 de julho de 1903, dois contratos assinados em Lisboa estipulavam que a CNCF se tornava a nova adjudicatária da linha e João da Cruz passava a ser empreiteiro-geral da construção80.
Considerando que a linha tinha cerca de 80 km, a CNCF munia-se de capital suficiente para um orçamento com um custo quilométrico de cerca de 26 contos, o mesmo valor com que Cruz licitara e vencera o concurso da concessão. Porém, o empreiteiro, quando aceitou o trespasse, aceitou também fazer a linha por dezassete contos/km. É certo que este valor não incluía o material circulante (locomotivas, carruagens e vagões), mas por 720 contos (9 contos × 80 km) João da Cruz compraria material circulante para dez linhas do Tua (em termos de comparação, em 1904 a CNDF CNCF adquiriu duas novas locomotivas e trinta vagões por apenas quarenta contos). A aceitação de baixos preços pelos empreiteiros fora-se tornando vulgar à medida que a concorrência entre eles apertava.
No caso de Cruz, não era tanto uma questão de concorrência, mas de falta de experiência para orçar obras ferroviárias; e, como veremos, o empreiteiro optou por confiar nas estimativas que lhe foram impostas. Por norma, as companhias procuravam evitar pagamentos em dinheiro vivo, combinando-o com entrega de obrigações/ações suas. João da Cruz seria pago em numerário, mas por um preço relativamente baixo.
O próprio contrato de empreitada era extremamente proveitoso para a CNCF e potencialmente danoso para João da Cruz. O empreiteiro-geral obrigava-se a executar todos os trabalhos ligados à construção, exceto o fornecimento do material circulante. Qualquer imprevisto durante o estudo ou assentamento da via correria por conta do empreiteiro, sem direito a qualquer compensação. O plano de trabalhos proposto podia ser recusado pela companhia, que podia impor a Cruz o seu próprio plano, sem qualquer alteração da sua responsabilidade e dos seus deveres para com a empresa.
O pagamento seria feito mensalmente (deduzido de 10% de garantia pagos ao fim de seis meses), por obras ou quilómetros completos, na condição de o empreiteiro demonstrar que tinha em dia os créditos devidos aos seus empregados e fornecedores. A pena a aplicar no caso de incumprimento era a rescisão contratual. A construção teria que estar terminada em três anos.
A sua ingenuidade neste negócio fica ainda evidenciada pelo facto de não ter criado uma sociedade de responsabilidade limitada que tomasse a cargo empreitada. As fontes referem amiúde a «Empresa Lopes da Cruz», contudo, esta era apenas uma designação faustosa e sem qualquer valor jurídico com que o empreiteiro se autodenominou. João da Cruz assinou o acordo como indivíduo, associando inocentemente ao contrato o seu próprio património. Em caso de incumprimento, eram os seus bens que respondiam perante as penalidades contratuais.

Hugo Silveira Pereira
Centro Interuniversitário de História das Ciências e da Tecnologia 
(Faculdade de Ciências e Tecnologia – Universidade NOVA de Lisboa)

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