quinta-feira, 14 de junho de 2018

João da Cruz e "O negócio ferroviário"

Por decreto de 14 de novembro de 1901 o governo abriu concurso para a adjudicação da linha de Mirandela a Bragança.
Contudo, as perspetivas de aparecerem candidatos eram escassas. José Beça, então governador civil de Bragança Abílio Beça, conseguiu cativar a casa Zagury & C.ª, mas esta queria uma adjudicação direta sem concurso público. Por outro lado, a CNCF, a principal interessada na linha, passava por um processo de reestruturação financeira e não estava em condições de apresentar uma proposta. Havia o risco de o concurso encerrar deserto, o que adiaria a realização do caminho-de-ferro. É neste contexto que João da Cruz surge a licitar com um lanço de 25,99 contos/km.
À entrada em cena do empreiteiro não terão sido alheios os Beças. Quando João da Cruz assumiu a empreitada de várias estradas em Carrazeda, um tio de Abílio Beça – Miguel Augusto – era condutor na direção-fiscal de Bragança, sendo possível que o empreiteiro tenha travado conhecimento com os Beças nesta altura. Absolutamente confirmado é o facto de Abílio Beça ser advogado de João da Cruz desde 1889. Por fim, em 1903, a Gazeta de Bragança confirma que foi José Beça, irmão de Abílio, quem recomendou Cruz para assumir o encargo da construção do caminho-de-ferro.
Só assim se entende que um empreiteiro de estradas, sem capitais próprios suficientes para construir um caminho-de-ferro e sem qualquer tipo de experiência na sua construção, se tenha lançado num empreendimento da envergadura da linha de Mirandela a Bragança, que, contudo, para Abílio Beça era “questão magna e à qual tem ligada a sua palavra e com ella o seu futuro político”.
A relação era simbiótica: Beça retiraria dividendos políticos com a adjudicação da obra e Cruz poderia beneficiar financeiramente do negócio.
Depois de afastados alguns obstáculos burocráticos, o contrato de concessão foi assinado a 24 de outubro de 1902. Contudo, Cruz nunca teve verdadeiro interesse na adjudicação, agindo apenas no sentido de impedir que o concurso ficasse deserto e procurando o trespasse, “um dos processos do corso que a moderna civilização nobilitou”. Pelo trespasse, o concessionário passava os seus direitos a uma companhia, recebendo em troca uma soma avultada ou um cargo confortável nessa empresa. O relatório de 1903 da CNCF comprova que Cruz procurou a companhia para obter a transferência da concessão e ficar com a responsabilidade da construção da obra. A direção aceitou na condição de Cruz angariar primeiro os capitais necessários.
O empreiteiro assim fez e nos meses seguintes, com o auxílio de José Beça, desdobrou-se em contactos em Portugal, Londres e Paris no sentido de cativar investidores. A pequenez do empreendimento (uma curta linha de 80 km) foi um dos obstáculos à angariação de capital. Anos antes, a CNCF sentira o mesmo problema com as linhas do Tua e de Viseu. Por isto, Cruz, a conselho de José Beça, tentou adicionar a linha do Corgo à sua concessão, mas o governo preferiu adjudicar o caminho-de-ferro à Fonseca, Santos & Viana.
O concessionário viu-se forçado a procurar outras soluções. Contactada a casa Burnay, esta propôs-lhe fornecer o capital necessário se Cruz trespassasse a concessão para a CNCF e ficasse como empreiteiro-geral (recebendo em troca 17,5 contos/km). João da Cruz aceitou, porém, nada resultaria no imediato. A sua missão complicou-se ainda mais em dezembro de 1902 com a morte de José Beça, que o vinha ajudando na tentativa de encontrar os capitais para a construção.
Entretanto, o prazo para o início das obras aproximava-se. Se Cruz não o cumprisse, o governo podia cancelar a concessão. Para evitar que isto acontecesse, o ministro das Obras Públicas concedeu ao concessionário duas prorrogações de prazo para o início da tarefa (7.1.1903 e 20.3.1903).
João da Cruz aproveitou os adiamentos para intensificar os contactos com possíveis investidores, porém, nada se realizou. Até que em março de 1903, o empreiteiro foi contactado por John Edwards, um sócio de Henry Burnay, que lhe prometeu o dinheiro necessário, na condição de Cruz baixar o preço do seu trabalho para 17,15 contos/km. O carrazedense aceitou. O acordo final estipulava que deveria trespassar a concessão a uma companhia escolhida por Burnay e pela Fonsecas, Santos & Viana; em troca tornava-se empreiteiro-geral da construção.
A companhia por trás deste negócio era naturalmente a CNCF, que, a 16 de maio de 1903, viu a assembleia-geral de acionistas autorizar a emissão de 2070 contos em 23 mil obrigações com juro de 4,5%. Obtidos os capitais, João da Cruz transferiu a concessão para a companhia. A 6 de julho de 1903, dois contratos assinados em Lisboa estipulavam que a CNCF se tornava a nova adjudicatária da linha e João da Cruz passava a ser empreiteiro-geral da construção80.
Considerando que a linha tinha cerca de 80 km, a CNCF munia-se de capital suficiente para um orçamento com um custo quilométrico de cerca de 26 contos, o mesmo valor com que Cruz licitara e vencera o concurso da concessão. Porém, o empreiteiro, quando aceitou o trespasse, aceitou também fazer a linha por dezassete contos/km. É certo que este valor não incluía o material circulante (locomotivas, carruagens e vagões), mas por 720 contos (9 contos × 80 km) João da Cruz compraria material circulante para dez linhas do Tua (em termos de comparação, em 1904 a CNDF CNCF adquiriu duas novas locomotivas e trinta vagões por apenas quarenta contos). A aceitação de baixos preços pelos empreiteiros fora-se tornando vulgar à medida que a concorrência entre eles apertava.
No caso de Cruz, não era tanto uma questão de concorrência, mas de falta de experiência para orçar obras ferroviárias; e, como veremos, o empreiteiro optou por confiar nas estimativas que lhe foram impostas. Por norma, as companhias procuravam evitar pagamentos em dinheiro vivo, combinando-o com entrega de obrigações/ações suas. João da Cruz seria pago em numerário, mas por um preço relativamente baixo.
O próprio contrato de empreitada era extremamente proveitoso para a CNCF e potencialmente danoso para João da Cruz. O empreiteiro-geral obrigava-se a executar todos os trabalhos ligados à construção, exceto o fornecimento do material circulante. Qualquer imprevisto durante o estudo ou assentamento da via correria por conta do empreiteiro, sem direito a qualquer compensação. O plano de trabalhos proposto podia ser recusado pela companhia, que podia impor a Cruz o seu próprio plano, sem qualquer alteração da sua responsabilidade e dos seus deveres para com a empresa.
O pagamento seria feito mensalmente (deduzido de 10% de garantia pagos ao fim de seis meses), por obras ou quilómetros completos, na condição de o empreiteiro demonstrar que tinha em dia os créditos devidos aos seus empregados e fornecedores. A pena a aplicar no caso de incumprimento era a rescisão contratual. A construção teria que estar terminada em três anos.
A sua ingenuidade neste negócio fica ainda evidenciada pelo facto de não ter criado uma sociedade de responsabilidade limitada que tomasse a cargo empreitada. As fontes referem amiúde a «Empresa Lopes da Cruz», contudo, esta era apenas uma designação faustosa e sem qualquer valor jurídico com que o empreiteiro se autodenominou. João da Cruz assinou o acordo como indivíduo, associando inocentemente ao contrato o seu próprio património. Em caso de incumprimento, eram os seus bens que respondiam perante as penalidades contratuais.

Hugo Silveira Pereira
Centro Interuniversitário de História das Ciências e da Tecnologia 
(Faculdade de Ciências e Tecnologia – Universidade NOVA de Lisboa)

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