Numa busca de resíduos da memória que nos fazem enternecer e entristecer debaixo do estafado eufemismo de arrumar o arrumado há dezenas de anos encontrei um espelhinho redondo, de bolso, debruado a plástico e tendo nas costas o emblema do Glorioso ou das papoilas saltitantes que o saúdo Luís Piçarra cantou até a voz lhe emudecer consequência de sofrida no Norte de Angola onde se encontrava a alegrar os soldados envolvidos na estúpida como todas são, a guerra colonial derivada da falta de visão e entendimento do fluir da História por parte do Botas natural de Santa Comba.
Limpei a fna camada de pó ao espelho, olhei-me, mirei-me, rodei o registador da imagem, voltei ver-me, o visto não me alegrou, qual madrasta da Branca de Neve perguntei ao espelho o motivo de as cãs possuírem a cor da neve da Sanábria, os sulcos na testa imitarem os rasgados pelo arado em terreno pedregoso, a barba plagiar o restolho das searas no dia de uma seara no dia destinado no calendário litúrgico a honrar duas Senhoras, a venerada em Tuizelo e a alumiada noite fora na Serra de Nogueira assim julgo que continua a ser dado o apego ao jogo chamado da batota ou não estivesse recheado de truques e tropeços cujos jogadores (há um carro de anos) procuravam ultrapassar em insensibilidade facial e gestual os exímios prestidigitadores de póquer aberto e/ou sintético.
O espelho imitando o da dita Madrasta respondeu irado, convulso, engasgado, dizendo-me para ler as memórias de Adriano ou então falar com Mefstófeles no propósito de inventar um novo retrato colocado ao contrário absorvedor das ruínas faciais bem compostas há um carro de anos. A resposta seca quanto fontelas nos montes de Vinhais no auge da canícula, áspera e riscante como se fosse silvedos nas paredes das desertas aldeias em Setembro calorento, cópia da dada pelo Padre Carção aos fregueses de Lagarelhos num dia de Páscoa ao contemplar a chuva violenta a bater nas vidraças da pequena igreja da lavra dos Jesuítas, não me causou satisfação, causou-me desgosto impedindo-me de ir em busca do tempo perdido (desculpe o Senhor Proust), incitou-me a rebuscar a razão e utilidade do espelho na adolescência tardia.
Nesse tempo muitos rapazes bragançanos engravatavam-se aos domingos, no casaco colocavam uma carteira mirrada de dinheiro, o espelhinho e unte pequeno, de tartaruga, à saída da missa das onze e meia ou do meio-dia olhavam o espelho, o pente compunha as fartas melenas, endireitavam os nós das gravatas, puxavam os punhos da camisa, empinavam o peito e ala, chegava a altura de contemplar as meninas de seios salientes e coxas roliças num primeiro instante, as outras no segundo olhar, a rapaziada seguia com o olhar as namoradas sem elas saberem, atiravam dichotes uns aos outros, no domingo seguinte repetia-se o onanista espectáculo. Importa sublinhar o acréscimo do corta-unhas nos bolsos de um ou outro pois a moda vigente assim o determinava. Agora, os jovens substituíram os antigos adereços pelo telemóvel ou a tablete, os sapatos deram lugar às sapatilhas cromáticas, calções coloridos em detrimento das calças, os pentes desapareceram dando lugar a bonés multi-usos, no dorso pólos sem serem do Norte ou do Sul, sem esquecer chaves de motas, trotinetes e automóveis.
As mutações transformaram os espelhos pequenos, redondos, em objectos de museu, os pentes préstimo ante a avalanche de cabeças rapadas e rastas, os corpos exibem-se à descarada levando os jecos da minha idade a carregarem nas vogais ao soltarem imprecações por terem vivido antes da presente época destrunfando por cima dos corpos no confronto das novas cidades de Sodoma e Gomorra sem perigo dos olheiros serem convertidos em estátuas de sal como aconteceu à mulher e flhas de Lot.
O espelho, o pente, num ou noutro casaco também entrava o corta-unhas, este instrumento tinha a vantagem de retirar sinais de o seu detentor possuir vestígios de Vale da Porca ou vale de Porco aumentando o seu perfl asseado o que os valorizava na eira de Espinhosela, leia-se Praça da Sé.
Os adolescentes de buço rebentado, outros a ostentar bigodes estilo Cantinflas, dada a carência reinante não mudavam muito no tocante à aparência ornamental, prevaleciam as meias solas, as cuadas nas calças, os casacos virados, os colarinhos delidos nas camisas, as dores de crescimento obrigavam à mostra dos tornozelos (eu até consegui levar o Sr. Queiroz a salientá-los), por isso mesmo, os adereços exibidos a que acrescento o emblema do clube desportivo colocado na banda esquerda do casaco ajudavam a compor a vestimenta qual pouco mudava de estação para estação, o feiro era conforme a roupa, bem pior estavam os remendados sobre remendos. Relembro: só uma escassa minoria vestia a estrear não herdando roupa do irmão mais velho, só essa minoria adquiria à sua vontade, fora do gosto paterno.
As odiosas comparações sendo-o devem ser evitadas, neste contexto, impõe-se a excepção – antes ou agora –, a resposta de La Palice afina pelo agora. Podemos discordar do laxismo familiar na satisfação das exigências filiais no respeitante a roupas e sapatilhas, podemos discordar da assombrosa consumição de aparelhos e maquinetas comunicacionais, podemos censurar os dislates alimentares, porém, para lá do retorno ao paraíso caso pudesse retroceder na idade, deploro termos vivido pobremente, ao estilo sarnento salazarista da Casa Portuguesa a canção do forçado conformismo, se assim não fosse os da «benemérita» PIDE na esteira da benemérita Guarda Civil espanhola tratava de afagar o corpo, que não o espírito.
O denominado elevador social só funcionava mediante suor, lágrimas e quantas vezes sangue, curiosamente alguns dos prendados via nascimento não aproveitaram o maná, os deserdados repletos de marcas dos sacrifícios cometidos de modo a entrarem no ascensor têm conseguido penetrar no almejado patamar provocando o sarcasmo dos afortunados de nascença e a inveja dos antigos companheiros de Escola. É a vida diria como disse o Engenheiro Guterres, uma porra dizia a minha avó Delfina, embora sendo analfabeta não era parva, longe disso. No seu entender valia o rifão – se queres vai – só os calaceiros pediam. Apoquenta-me o futuro da cultura, especialmente da escrita em papel, a inserida em pautas de música tradicional, a oral sem registo algum. Aos livros devo tudo, mesmo tudo, os cursos/recursos derivados de três universidades trouxeram-me réditos materiais, a minha verdadeira Universidade (Gorky) as Bibliotecas Itinerantes ensinaram-me os valores da frontalidade, da liberdade, da sabedoria, o que não foi pouco, foi tudo.
Armando Fernandes
in:jornalnordeste.com
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quarta-feira, 14 de agosto de 2019
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