Com a morte do rei Carlos II de Espanha, em 1700, abriu-se uma tremenda luta política e militar, na qual se envolveram todas as nações europeias e que ficou conhecida como a Guerra da Sucessão de Espanha. E o palco maior dessa guerra foi a região da Catalunha. Barcelona fervilhava então de soldados e muitos Transmontanos por lá andavam alistados.
Da comarca de Torre de Moncorvo partiu mesmo um corpo militar, cremos que um batalhão, comandado por Leopoldo Henrique Botelho de Magalhães, o qual acabou por casar em Barcelona com uma senhora da aristocracia chamada D. Teresa de Molins. Sobre o assunto foi mesmo escrito, por Francisco Botelho de Morais e Vasconcelos, um livro editado com o título seguinte: - Progressos Militares de Leopoldo Henrique Botelho de Magalhães. (1)
Não sabemos se foi neste corpo militar que Salvador Lopes se alistou como soldado. Sabemos tão só que ele nasceu em Torre de Moncorvo e, ficando órfão, foi levado para Bragança com outro irmão, onde se criaram e aprendiam as artes do fabrico da seda quando a guerra rebentou. O irmão ficou em Bragança e Salvador, feito soldado, meteu-se a caminho da Catalunha.
Outro voluntário que se encontrava em Barcelona era um “soldado milanês” que antes vivera em Lisboa “em casa do Marquês das Minas, ensinando a seus filhos algumas línguas, porque sabia francês, genovês, napolitano, espanhol e português e para o qual o dito marquês havia conseguido d´el-Rei alvará para vender pelas ruas publicamente especiarias e outras coisas” (2)
Um terceiro personagem que então andava por Barcelona chamava-se Manuel Lopes. Era também natural de Torre de Moncorvo, irmão do citado Salvador Lopes e criara-se em Lebução, em casa de uma tia paterna. Também ele aprendera a arte da tecelagem da seda.
Manuel chegara de barco a Barcelona em 16 ou 17 de Fevereiro de 1703 e, no mês seguinte, junto ao pórtico do convento de S. Francisco encontrou-se com o citado “soldado milanês” de quem muito ouvira falar em Lisboa a um amigo comum, chamado José, que era intérprete e que ensinava hebraico a alguns cavalheiros e “tinha em casa muitos livros hebraicos”. (3) Aliás, o mesmo intérprete governava-se também a vender especiarias pelas ruas, munido do alvará régio que o soldado milanês lhe deixara, quando partira para a Catalunha. E vendia muito! – contou Manuel Lopes, na tal conversa à porta do convento de S. Francisco. Mas veja-se a apresentação do intérprete feita por Manuel Lopes perante os inquisidores:
- E haverá 4 anos, conheceu em Lisboa José, intérprete, na ocasião de ele confessante ir ver Gabriel Rodrigues, que também era da nação dos judeus, tratou e comunicou com o dito José, que assistia na mesma casa, e referiu que desde Livorno, onde professava as cerimónias da lei dos judeus, havia passado a Lisboa, onde se batizara e se mantinha na observância da dita lei. E o sobredito José, por ser intérprete de línguas, tinha uma renda dada por el-rei e pela inquisição, e vivia na rua de Santo Antão e casou, haverá 2 anos, com uma sobrinha do dito Gabriel Rodrigues, de que não sabe o nome, nem por que parte fosse parente. (4)
No seguimento daquela conversa com o soldado milanês, Manuel Lopes foi preso no calabouço do quartel de Artarazanas, não conseguindo nós vislumbrar as verdadeiras razões do mandato de prisão. Um alferes que acompanhou o caso perguntou-lhe se foi alguma coisa relacionada com o santo ofício, respondendo ele que talvez fosse por desconfiarem que ele e o soldado milanês planeavam fugir para Lisboa. Desculpa esfarrapada, certamente.
Facto é que, pouco tempo depois, no dia 28 de Março, Manuel Lopes se dirigiu ao tribunal da inquisição de Barcelona, pedindo para ser recebido pelos senhores inquisidores. Foi-lhe concedida a audiência e autuadas as suas declarações.
Disse chamar-se Manuel Lopes, de 20 anos de idade, soldado de infantaria, da companhia do capitão D. Manoel de Calderón e que antes fora tecelão de sedas.
Contou que nasceu no mar, quando os seus pais seguiam de barco, de Génova para Livorno e que, em pequeno, foi circuncidado e educado na lei de Moisés, sempre frequentando a sinagoga e a escola judaica, a partir dos 4 anos, explicando, longa e pormenorizadamente os ritos, orações e cerimónias que os judeus usavam fazer em Livorno.
Disse que aos 8 anos foi metido num barco e enviado por seu pai para Lisboa, para casa de um tio, João Dias Pereira, de quem se falará mais adiante, que o mandou para casa de um mestre a aprender a arte de tecer a seda. Com ele viveu e trabalhou por 12 anos. Durante todo esse tempo, viveu entre o judaísmo e o cristianismo, uma vida dúplice de marrano, frequentando as igrejas cristãs e fazendo rezas e cerimónias judaicas em casa, com seu tio e restantes familiares.
Nomeou muitos cristãos batizados que praticavam o judaísmo e que conheceu, tanto em Livorno, como em Portugal.
Acrescentou que, ao findar do mês de Novembro de 1702, o tio e mais familiares foram presos pela inquisição de Lisboa e ele caiu em si, reconhecendo que andava errado na religião, e resolveu alterar o rumo de sua vida, abandonando o judaísmo e tornando-se verdadeiro cristão.
Para isso decidiu ir a Roma, lançar-se aos pés do santo padre e pedir o batismo. Dificuldades e percalços do caminho, obrigaram-no a ficar em Barcelona e alistar-se como soldado, para sobreviver. Na impossibilidade de chegar a Roma, ali estava ele, determinado a fazer-se cristão, pedindo, humildemente a água do batismo.
Enganava-se o Manuel, se esperava uma resposta rápida dos senhores inquisidores. Sim, acostumados que estes estavam a receber confissões semelhantes, sempre duvidando da sua veracidade, obviamente que seguiram muitas perguntas, exames vários e muitas mais confidências, ao longo de intermináveis sessões. A vida nas cadeias do santo ofício corria lenta e o futuro sem pressa.
Se era judeu e na sinagoga de Livorno andou aprendendo as coisas da lei de Moisés, haveria de explicá-las, repetir as orações que rezavam e falar das cerimónias que faziam. E também nomear os homens e mulheres que pelo mundo conheceu e que, sendo batizadas, se tornaram judeus. Tudo isso contou e ficou registado no processo.
Uma das sessões foi dedicada à genealogia e nela disse que, 3 anos atrás, o tio recebera carta de Livorno informando que seus pais (António Lopes Pereira e Maria Gomes) tinham falecido. Irmãos, disse que não tinha. Nem irmãos, nem irmãs.
Por 8 dias, Manuel desdobrou-se em confissões, implorando que lhe dessem o batismo cristão. Seguiram-se 15 dias de silêncio e espera. Claro que, em paralelo, os inquisidores tiravam informações. E estariam já com um juízo firmado sobre a veracidade das declarações do soldado judeu quando, no dia 20 de abril, decidiram dar-lhe um curador, pois que era menor de 25 anos. Significava isso que as coisas começavam a complicar-se para o soldado judeu que ficou aguardando, às ordens do santo tribunal, sob a responsabilidade do curador “que diligentemente defenderá o menor nesta causa e não o deixará indefeso, e em tudo fará de bom e leal e diligente curador”. (5)
O tempo amadura a fruta e verga os homens, mesmo os mais valentes. Assim aconteceu com Manuel Lopes. Deixado entregue a si mesmo, na solidão do cárcere, por mais de 6 meses, acabou por pedir audiência aos mesmos inquisidores, que, em 8.11.1703, o receberam, perguntando: porque pediu audiência?
Respondeu que queria dizer a verdade pois que, nas audiências de Março e Abril tinha confessado mentiras e ocultado a verdade, explicando:
- A razão que teve para não confessar, em especial, era que havia nascido no mar e não estava batizado e ser circuncidado foi para que o santo tribunal o não prendesse se dissesse que era cristão batizado e pensou que com o haver dito que não era, não seria preso, mas agora que está preso, vai confessar a verdade de tudo o que calou e ocultou. (6)
NOTAS:
1-ABREU, Carlos de – Francisco Botelho de Morais e Vasconcelos Autor de Progressos Militares de Leopoldo Henrique Botelho de Magalhães Análise e Tradução. Trabalho apresentado no congresso internacional de Coimbra sobre o escritor Francisco Botelho de Morais e Vasconcelos, em 2019
2-ANTT, inq. Lisboa, processo 630, de Manuel Lopes, tif 285.
3- Idem, tif 281. O intérprete José casou por aquela altura, em Lisboa, com Ana Cardoso, de uma família de Chacim, filha de Isabel Henriques, de quem falaremos oportunamente e que foi relaxada. – Inq. de Coimbra, pº 10578.
4-Idem, tif 48-49.
5-Idem, tif 81: - E se por sua culpa e negligência resultar algum mal ao dito menor, pagará por sua pessoa e bens. Para além de pagar Com “sua pessoa e bens”, o curador foi obrigado a indicar um fiador, que disso mesmo prestou juramento.
6-Idem, tif 94.
António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães
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