Sabemos hoje, sem lugar a quaisquer dúvidas, que não podemos falar de “economias fechadas”, mesmo durante o Antigo Regime, no Portugal interior. O Nordeste Trasmontano, em última instância, Bragança no século XIX, constitui o exemplo mais paradigmático da inexistência de economias fechadas.
Os homens movimentam-se, os produtos circulam, as trocas efetuam-se, logicamente, com a maior ou menor intensidade que os transportes e comunicações, as necessidades da população, o jogo da oferta e da procura, e o capital disponível permitem ou exigem. Mas as comunicações e transportes em Portugal em geral, e na região de Bragança em particular, nos inícios do século XIX, com exceção das partes em que os rios eram navegáveis, registavam um nível muito rudimentar, não havendo estradas que a ligassem às principais cidades do Reino. Segundo Adrien Balbi, eram mais fáceis e rápidas as comunicações entre Lisboa e os Açores do que entre Lisboa e Bragança.
Em 1821, a Praça do Comércio de Bragança deixava bem claro que a Cidade necessitava de uma estrada que a ligasse a Vila Real e ao Porto, assim como uma ligação ao Rio Douro, que por 1812 era já navegável em toda a sua extensão no território português, ou seja, do Porto a Barca de Alva (de tal modo que desempenhou um papel relevante nas invasões francesas), e que constituía o veículo determinante da circulação de pessoas e mercadorias por todo o interior do Norte de Portugal. Os carros de bois e os burros continuavam a ser, em Trás-os-Montes, os únicos veículos usados no transporte de cargas, reservando-se o cavalo para a condução de pessoas. Por 1820-1821, existiam em Trás-os Montes, segundo a Intendência Geral da Polícia, mais de 7 200 bestas destinadas a transportes – em Bragança, em finais de 1814, ainda de acordo com a mesma Intendência, existiam 371 carros de bois, o meio utilizado essencialmente na condução de mercadorias.
Em 1839, a Junta Geral do Distrito de Bragança lamenta “o estado miserável em que se acham as estradas e pontes de comunicação no interior do Distrito: esta província é a primeira que se encontra vindo de fora do Reino, pela parte do Norte, e o estrangeiro que vier viajar o nosso País e dele fizer ideia pelo Distrito de Bragança dirá logo que entra em um País de bárbaros”; “além disso, é sabido por todos que o comércio da nossa província se faz por terra desde todos os seus pontos até ao Porto e é tal o nosso desleixo que nem uma só ponte exceto a de Mirandela se acha em termos de servir, que nem uma só estrada se pode pisar sem perigo de que os caminhantes morram afogados em lama, ou em um precipício”.
Na ausência de estradas e do caminho-de-ferro, este, só construído em finais do século XIX, o rio, até 1860, sobretudo, a partir de 1835, quando Portugal e Espanha assinaram a Convenção da Livre Navegação do Douro, transformou-se no veículo por excelência das mercadorias que transitavam entre o Porto e o Norte de Portugal por um lado, e a região de Castela-Leão por outro lado, uma vez que os custos do transporte fluvial revelavam-se incomparavelmente mais baixos que o transporte terrestre. A Régua constituía, então, o grande porto do Douro, vila que disporia, em 1843, de 800 barcos de mercadoria.
Mais do que estradas, poderíamos falar de caminhos, uma vez que, de terra batida, ficavam intransitáveis no inverno e em muitas partes não permitiam a passagem de carros de bois, obrigando mesmo os viajantes a circularem a pé, com os cavalos ou bestas à arreata. As pessoas, em vez de trilharem estradas, marchavam de “precipícios em precipícios”.
A construção de estradas e a sua manutenção estavam à conta das populações, obrigadas a trabalhar com os seus carros e enxadas, mas apenas os pobres, já que as “gentes ricas” estavam isentas de tais serviços.
A estrada principal “com preferência a quaisquer outras”, que a Junta Distrital de Bragança suplicava, era a que ligava Bragança a Mirandela, e daí, por Vila Real, até ao Porto. Por outro lado – acrescenta este organismo em 1848 – tornava-se muito necessária a ligação de Bragança até ao Rio Douro, na foz do seu afluente, o Sabor, uma vez que não existia qualquer “ponte de desembarque para as fazendas” que Bragança importava do Porto.
Tudo continuou na mesma, até que, já na Regeneração, em 1854, se iniciou a construção da estrada Bragança-Mirandela, assim como a estrada da Régua a Bragança, por Vila Real. Passados nove anos, estavam construídas quatro léguas, das quais só duas completas e aproveitáveis.
A inexistência de verdadeiras estradas, condicionando de forma constrangedora a economia da região, manteve-se ainda na segunda metade do século XIX. Em 1864, o Governador Civil de Bragança lamentava “o esquecimento dos governos passados por esta parte do território português que se denomina o alto da Província de Trás-os-Montes. O Distrito, ou por estar situado no limite norte de Portugal, e por isso mais afastado do poder central, ou pelas dificuldades provenientes da natureza do seu território bastante acidentado, tem sido descurado neste grande movimento de melhoramentos materiais empreendidos em todo o País. Deve remediar-se esta situação tão funesta aos povos deste Distrito. Apesar da falsa opinião que se forma do seu solo, da sua riqueza e das condições atuais de civilização dos seus habitantes, teria há muito tempo destruído pela base estas falsas asserções se não lho obstasse a carência absoluta de estradas, sem meios de trocar os seus produtos e de, pela comunhão de ideias, poder progredir no sentido moral acompanhado com a facilidade de comunicações. Contudo, a despeito deste estado excecional no nosso País, a agricultura tem terreno de uma grande fertilidade e tem uma grande qualidade e variedade de produtos. Tudo isto daria aumento de riqueza, mas vemos nulos os seus resultados se os poderes públicos não olharem seriamente pelas necessidades de comunicação destes povos”.
Informava também sobre os atrasos na construção viária dentro do Distrito, pois desde 1854, quando se começara a construir a estrada de Bragança a Mirandela, autorizada até ao seu completo acabamento, apenas estava concluída a parte entre Bragança e Paço em 16 km e de Mirandela ao Vimieiro em 14 km. Faltavam construir 23 km para que a estrada se completasse e os habitantes esperavam, “ansiosamente, que o Governo resolvesse esta construção que há muitos anos os preteria perante os progressos materiais”.
Afirmava ainda que, se não se facilitasse a troca de géneros produzidos, a procura nunca superaria a oferta.
Inevitavelmente, os produtos teriam de ser consumidos nos pontos onde se produziam, pela impossibilidade de os distribuir e transportar para um local onde pudessem ter um preço compensador. O Distrito tinha todo o direito de usufruir dos benefícios de uma boa viação, desenvolvendo a agricultura como segura fonte de riqueza, pois as “povoações estavam isoladas e assim o progresso era impossível. Era justo atender as suas queixas, pois, pelos mapas das estradas feitas nestes últimos doze anos, este Distrito contribuiu para as urgências do Estado, como qualquer outro do Reino, mas não tinha sido contemplado na mesma proporção”.
Por 1866, encontravam-se concluídos 50 km, mas parte desta estrada estava já intransitável, levando dois deputados bragançanos, em 1867, a interpelar o Governo por não se ativarem os trabalhos de construção da mesma, e a proporem ainda a abertura de uma estrada internacional entre Bragança e Espanha. A estrada a macadame, proveniente de Vila Real, chegou a Bragança em 1876.
Em 1877, o agrónomo do Distrito, Xavier Pereira Coutinho, vai defender que uma linha de caminho-de-ferro iria diminuir o valor dos transportes e ajudaria a resolver a situação agrícola da região. Mas acrescentava que uma linha de caminho-de-ferro, por si só, apenas faria sentir a sua ação benéfica nos lugares por onde passasse, uma vez que se tornava necessário construir estradas “em conexão com a linha”, o que era inviável a curto prazo.
A ligação terrestre Porto-Bragança só vai estar concluída na década de 1880. Mas a estrada de Bragança à foz do Rio Sabor, no Douro, que por 1866 ainda nem tinha os estudos concluídos, demorou mais duas décadas a ser construída, ou seja, quando Bragança reclamava já o caminho-de-ferro, que tinha chegado a Mirandela em 1887.
Em 1890, a Câmara de Bragança representou à Câmara dos Deputados no sentido de ser construído o caminho-de-ferro de Mirandela até à Cidade, atendendo a que todas as capitais de distrito gozavam já dos “benefícios da viação acelerada”, enquanto Bragança, capital de Distrito, sede de bispado e aquartelando dois regimentos, centro de uma vasta região agrícola, onde se fazia um ativo comércio em cereais, gado bovino e leguminosas – assim lembrava a representação –, continuava sem caminho-de-ferro.
Prejudicado pelas lutas partidárias no Distrito e sobretudo, pela animosidade do Partido Progressista a tal projeto, o caminho-de-ferro chegou a Bragança em 1906, tendo sido inaugurado em dezembro. A linha férrea em Bragança acabou por funcionar como fronteira delimitativa do perímetro da Cidade. E a sua estação levou à construção de uma avenida de ligação à Cidade, ou melhor, ao alargamento da via existente, a Rua Conde Ferreira – tais obras, apesar dos esforços da Câmara, apenas se iniciaram na década de 1920.
O desenvolvimento dos transportes, sobretudo do caminho-de-ferro, teve uma forte influência em Bragança e na região. A ele ficamos a dever a propagação das doenças que se abateram sobre certas plantas, como por exemplo, a filoxera, que se abateu sobre o Município, de 1882 a 1889, dela tendo resultado uma forte emigração.
Efetivamente, a melhoria dos meios de comunicação foi suficiente para fomentar a emigração. Tal movimento, uma vez desenvolvido com a crise da filoxera, continuou, porque os que partiam atraíam outros: de 1880 a 1913 estima-se que 31% dos habitantes tenham partido.
Na viragem do século XIX para o século XX, Bragança passou a ser o núcleo fundamental das estradas do Nordeste Trasmontano, de onde irradiavam três estradas principais, uma para Mirandela, outra ao longo do Vale do Sabor até ao Rio Douro, uma terceira para leste até Miranda do Douro e uma última para oeste até Vinhais e Chaves.
A debilidade das comunicações e transportes de Bragança e da sua região continuava a ser escandalosa, como era também “deplorável a escassez quase completa de estradas” no Distrito. Por exemplo, em 1909, apenas estavam construídos três quilómetros de estradas municipais em Bragança, valor muito inferior àqueles que se registavam em Chaves (28 km) e Vila Real (16 km). Das estações ferroviárias existentes entre Mirandela e Bragança “não irradiam estradas transitáveis para as povoações mais importantes dos concelhos adjacentes à via”.
Como referia a Illustração Trasmontana, em 1908, tanto em Bragança como em Vila Real, “o desleixo pela viação chegou ao inverosímil”; “a maioria dos políticos quase sempre estranhos à região, tendo em pouca conta os interesses regionais, e só aspirando a ascensão a esferas superiores, preocupavam-se somente com os velhos manejos eleitorais, de modo a criarem jus a superiores benesses”. “A votação não aumentaria, a máquina eleitoral estaria sempre bem montada… O círculo de tal era de Fulano, o outro além de Sicrano, etc.; portanto, não valia a pena perder tempo com essas afastadas terras. Seria preferível olhar pelas que ficavam mais ao pé da porta…”
Esta situação manteve-se durante boa parte do século XX. Como Vergílio Taborda refere, na década de 1930, fora destas estradas, a circulação ainda se mantinha “no último degrau da hierarquia”, apenas acessível ao carro de bois ou ao dorso de besta.
Título: Bragança na Época Contemporânea (1820-2012)
Edição: Câmara Municipal de Bragança
Investigação: CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade
Coordenação: Fernando de Sousa
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