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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira..
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

D. João da Câmara: "O Primeiro Sorriso"

 Mal se tinham acendido as luzes no Coliseu, quando ele entrou devagarinho, triste, um pouco asmático, meneando a cabeça pálida.

Parece que mais lhe pesava a corcunda naquela noite.

Andando pelo corredor estreito, que divide os camarotes dos lugares mais baratos, foi encostar o queixo à teia de pinho, pintada de branco, junto do caminho atapetado, que a cantora devia seguir do camarim para o palco.

Era uma artista célebre a que se estreava. Com oito dias de antecedência tinha-se espalhado com profusão pela cidade, colado aos vidros das portas dos armazéns de música, pendurado em quadros às esquinas das ruas, o retrato litografado de mademoiselle Eva d’Avenay.

Um dia, o corcunda, passeando depois do jantar, como costumava, pela rua do Ouro, erguendo a cabeça, deu, de súbito, com um daqueles retratos na loja dum livreiro.

Parecido ou não, representava uma mulher lindíssima. Ficou extático um momento; sentia tremer-lhe o coração um pouco, e como que dois dedos apertarem-lhe amorosamente a garganta.

Entrou envergonhado, e com voz sumida perguntou ao caixeiro se aquilo se vendia.

— Um tostão.

Ele que nunca olhara para mulher senão cá de muito baixo, coitado, assentado no meio da espinha as abas do chapéu, que (fato pouco vulgar) por detrás é que amoleciam, podia finalmente, por um tostão (barato!) contemplar uma mulher bonita á vontade, sentado comodamente, sem ser visto e sem ter de corar.

Quando saiu da loja, levando na mão o rolinho de papel pardo, que embrulhava a litografia, caminhou mais depressa, quase alegre, menos asmático.

Chegou a casa, desdobrou o retrato sobre a mesa, encostou nela os cotovelos, e com as fontes apertadas nos punhos cerrados, passou parte da noite em contemplação da estranha formosura.

Parecia-lhe que afinal aquela mulher tinha que refletir para ele uma parte de tanto amor, que todo lhe estava dando e que era o primeiro que sentia.

Desejos haveria tido, mas amar... Quem? Se, quando passava, todos se riam e ninguém, ninguém jamais sorrira para ele!

Quando recordava tempos longínquos, via, como através de um nevoeiro, uma mulher a quem ele estendia os bracinhos magros, que se lhe debruçava sobre o pequenino berço — tão pequenino! — e que o envolvia nutria atmosfera de amor, beijando-o muito. Mas essa mulher também não sorria.., chorava.

Chorava naturalmente de vê-lo tão fraquinho, tão feio, tão enfezado. Se o visse agora, cheio de rugas precoces, com os cabelos alvejando-lhe nas fontes, e triste sempre, sempre tão triste!

Por isso contemplava aquele retrato, como se fora possível aquela mulher loira, voltar a cabeça no papel e enviar-lhe, só para ele, aquele sorriso que, por todas as esquinas, por toda a parte, ela enviava.., para quem? — para coisa nenhuma; que o retrato era a três quartos e ninguém sabia para onde olhava.

***

Os porteiros, cada um à sua porta a receberem os bilhetes, cantarolavam os bocejos e assoavam-se com estrondo para espertar. O teatro continuava às escuras.

Um homem gordo entrou devagar, com as mãos nas algibeiras do colete, assobiando por entredentes. Sentou- se, deitou as pernas para cima da cadeira que lhe ficava defronte, pôs o lenço entre o pescoço e o colarinho e, tirando um palito da algibeira, pôs-se a espalitar os dentes, com um ar massado.

Duas ou três filas mais adiante, um outro abanava-se pachorrentamente com o chapéu, virando um bocadinho a cara para lhe ir o fresco às orelhas.

Conheciam-se e começaram conversando em voz alta:

— Olá, conselheiro! Então também deitou até cá?

O homem gordo encolheu os ombros:

— Não há mais nada que fazer!

E depois de espalitar um bocado:

— Que isto cheira-me a fiasco.

— Ora! — disse o outro com ar convencido e para estar de acordo. — A tal mulher...

— A gente cai em cada uma...! — terminou o conselheiro.

E, encostando a cabeça para trás, deu largas a um bocejo formidável.

Um arrumador, que passava naquele instante, sorriu- se aduladoramente, curvando-se muito.

— Senhor conselheiro...

— Adeus, seu José.

E fechou os olhos, como se estivesse dormindo.

Ah! se o corcunda não andasse tão rasteiro, se não fosse tão fraquinho, como perguntaria àquele homem, frente a frente, com que direito bocejava, quando ele estava ali sentindo o coração a estalar-lhe no peito!

Os músicos com os instrumentos dentro de saquinhos de chita, começaram a entrar, limpando o suor, resmungando árias, espreguiçando-se.

Deram oito horas. Chegaram umas carruagens a trote largo. O teatro encheu-se rapidamente.

Ouvia-se o sussurro das conversações e o ranger das varetas dos leques.

Os lugares junto da teia, a que se encostara o corcunda, eram da predileção de muitos; pouco a pouco foram-no empurrando e ele, apertado, aflito com a asma, que logo o atacou violentamente, ouvia por detrás umas risadinhas zombeteiras. Sentiu numa orelha bater-lhe uma bolinha de papel. Um velho mal-encarado, ao lado dele, estava de figa feita.

E resignado, agarrando-se aos balaústres da teia, esperava que fosse aquela noite a primeira feliz da sua vida.

Abriram as torneiras do gás e a luz jorrou de repente.

Houve um sussurro maior. Muitos, que ainda não se tinham visto, cumprimentaram-se. Os elegantes das cadeiras apontaram os óculos para os camarotes e começaram tirando os chapéus.

O teatro transbordava.

Os músicos afinavam os instrumentos.

Ouviam-se por entre as variações alegres da flauta as notas harmônicas das rabecas. O homem dos timbales batia notas surdas com a mão esquerda e apertava com a direita as escaravelhas.

Afinal entrou o regente, de casaca e gravata branca, cumprimentando os colegas, enquanto descalçava a luva.

Bateu na estante e ergueu alto o braço.

Houve uns schius! assobiados por alguns amadores, que a toda a sala impuseram silêncio.

O regente olhou para todos os músicos, demorou-se um instante e depois, descrevendo com a batuta um quarto de. circunferência, fez sinal às rabecas, que logo começaram tocando muito piano, em uníssono.

Era com certeza mademoiselle Eva d’Avenay quem ali atraía a maior parte dos espectadores. Os conversadores pouco a pouco foram elevando o tom e, como as rabecas sozinhas continuavam tocando pianíssimo  havia o que quer que fosse fantástico naquele maestro de grande cabeleira caindo-lhe até à gola da sobrecasaca, elevando alto, muito alto, a batuta, e deixando depois cair o braço a tremer, a tremer, comandando uns arcos que se mexiam como puxados por um só homem, mordendo cordas que não tinham som.

Decididamente o corcunda sufocava.

De repente, a um sinal enérgico do regente, os metais vibraram enchendo a sala de notas alegres, vivas, que num instante, como por encanto, cortaram as palestras.

Foi um relâmpago de alegria. O regente sorriu-se delicadamente e as rabecas continuaram sozinhas no meio da distração geral.

Um gaiato gritou lá de cima:

— Muito bem!

Tinham acabado felizmente.

A respiração do corcunda era um apitozinho.

***

Instantes depois, corria-se uma cortina e encaminhava-se para o palco mademoiselle d’Avenay.

Houve um sussurro admirativo. Muita gente ergueu- se. Ouviram-se vozes:

— Abaixo!

Ela, já no palco, sorria impassível, cumprimentando o público, olhando em volta, muito serena.

Alguns entusiastas davam palmas.

O conselheiro olhou para o amigo e fez-lhe uma cara como quem diz: — de truz!

O regente muito amável curvou-se para a cantora e fez-lhe baixinho uma pergunta.

Respondeu que sim, muito risonha, muito amável.

As rabecas preludiaram.

Ela consertava o decote e alisava o cabelo na testa.

Era uma mulher em todo o esplendor da beleza dos anos, de elegância distinta e inteligente; alta, com o busto quebrado um pouco na cintura, o peito forte, braços admiráveis, ombros muito redondos, e nas costas, bem ao meio, uns dois ou três sinais, que pareciam ter-lhe sido dados, de caso pensado, pela natureza, para que ninguém julgasse que aquele busto era de mármore. Os olhos azuis tinham um olhar profundo e os cabelos loiros e finos emolduravam uma testa muito lisa, como de virgem de 15 anos.

Quando cantava, a boca simpática, fresca, sorria sempre, alegrando-se aos cantos com duas pregas infantis.

Do lugar onde estava, o corcunda via-lhe o perfil sereno, a longa trança dourada todo o vulto branco salientando-se na massa escura dos espectadores aglomerados nos degraus em anfiteatro do outro lado da sala.

Quando ela acabou de cantar, toda a platéia aplaudia, delirante.

O corcunda bem queria dizer — bravo! mas sumira-lhe a voz.

Mademoiselle d’Avenay cantou três vezes naquela noite e o delírio crescendo sempre!

Agradecia muito reconhecida, pondo a mão no peito, fazendo ranger a seda do vestido.

Já os músicos se tinham retirado, já o iluminador começava fechando as torneiras do gás e ainda novas ovações ecoavam na sala.

Ela tornava a subir ao palco, agradecendo, muito amável, sorrindo como no retrato, para o ar, para coisa nenhuma.

E por onde passava deixava no rasto um cheiro forte, bom, que embriagava o corcunda.

***

Achou-se afinal sozinho.

Umas famílias, que se tinham encontrado à saída, conversavam, enquanto as senhoras vestiam os xales e os homens acendiam os cigarros.


Que fazia ali o corcunda? Viera na esperança de que essa mulher ideal, como ele .não sonhara poder haver no mundo, reparasse no pobre verme e do seu pedestal lhe fizesse a mercê dum olhar.

Mas nem ela o vira, nem ele pudera ajudar à ovação. Bem tinha deitado os bracinhos por entre os balaústres para aplaudir; se não fosse a asma, teria gritado: bravo! mil vezes. Mas se era tão fraquinho...!

Estava extenuado, meio morto; a cabeça estalava-lhe.

Sentou-se num dos degraus da geral e escondeu o rosto entre as mãos.

Pouco a pouco, ia perdendo a memória do que se passara, conservando apenas a consciência de que era um desgraçado.

Acordaram-no uns passos de mulher.

Ergueu a cabeça.

Mademoiselle d’Avenay, toda embrulhada em rendas brancas, saía do camarim muito risonha, conversando com uma velha, que a acompanhava.

Levantou-se. Ela tinha de passar por ali e ele tremia. Quase sem forças, desvairado, mal pôde pronunciar:

— Bravo! Bravo.!

Ela parou um pouco assustada. Vendo-o tão pequenino, na meia escuridão, julgando-o provavelmente uma criança, tocou-lhe com dois dedos na cara. Mas, picando-se nas barbas, retirou a mão e disse:

— Pardon, monsieur.

E quando passou... sorriu-se para ele.

Nota:
Texto-fonte: D. João da Câmara. Contos, 1900

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