Na noite seguinte o anjo Gabriel apareceu-lhe, e disse-lhe:
- Há no mundo um pobre músico, que anda de porta em porta, tocando viola e cantando, e que mereceu mais do que tu as recompensas eternas.
O ermitão, atônito, ao ouvir estas palavras, levantou-se, agarrou no seu bordão, foi em busca do músico e mal o encontrou disse-lhe:
- Irmão, dize-me que boas obras fizeste, e por meio de que orações e penitências te tornaste agradável a Deus.
- Ora, respondeu-lhe o músico, abaixando a cabeça, santo padre, não zombes de mim. Nunca fiz boas obras, e quanto a orações não as sei, pobre de mim, que sou um pecador. O que faço é andar de casa em casa a divertir os outros.
O austero ermitão continuou a insistir:
- Estou certo que, no meio da tua existência vagabunda, praticaste algum ato de virtude.
- Em verdade não poderia citar nem um só.
- Mas então como chegaste a este estado de pobreza? Tens vivido loucamente como os que exercem a tua profissão? Dissipaste frivolamente o teu patrimônio e o produto do teu oficio?
- Não; mas um dia encontrei uma pobre mulher abandonada, cujo marido e filhos tinham sido condenados à escravidão para pagar uma divida. Essa mulher era nova e bela, e queriam seduzi-la. Recolhi-a em minha casa, protegia-a em todos os perigos, dei-lhe tudo que possuía para resgatar a sua família, e levei-a à cidade, onde ela devia encontrar-se com seu marido e com seus filhos. Mas quem não teria feito outro tanto?
A estas palavras o ermitão pôs-se a chorar, e exclamou:
- Nos meus setenta anos de solidão nunca pratiquei uma obra tão meritória, e apesar disso chamo-me o homem de Deus, enquanto que tu não passas de um pobre músico.
Guerra Junqueiro: "Contos para a Infância", Publicado originalmente em 1877.
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