Por: Luís Abel Carvalho
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)
Foi numa manhã de sexta feira Santa do ano de 1963, que Maria Júlia deixou a sua amada aldeia a cavalo num burro, em direcção à estação do comboio, com uma mala castanha de cartão prensado, reforçada com duas tiras metálicas e com uma seira de vime. Na mala levava a melhor ( pouca) roupa, juntamente com alguns miminhos de casa: queijos, salpicão, chouriças, um naco de presunto, uma tiras de entremeada da barriga para assar, morcelas e na seira, o que deveria comer durante os dois dias da viagem: essencialmente centeio com queijo, azeitonas, bacalhau frito com ovo, chicharro frito, duas latas de atum e duas de sardinha em conserva e figos secos.
Julinha, como era carinhosamente tratada por todos desde criança, ia com o coração a sangrar por deixar o seu único filho de sete anos. O filho – Alfredo Miguel – ficaria a cargo dos avós paternos, uma vez que os maternos não queriam saber do neto. Julinha ia ter com o seu marido a França, para onde tinha ido “ d´assalto “ havia já dois anos. Era uma mulher de trinta anos, resoluta, baixa, de olhos pequenos e inteligentes e muito trabalhadeira. Casara com o António Raimundo, conhecido pelo “ Tó Manco “, contra a vontade de seus pais. Quando anunciou o desejo em se casar com o Tó, os pais reagiram violentamente . “ Se te casares co “ Tolhido ”, nunca mais te falemos e nunca mais boltas a entrar por aquela porta adentro. Nunca mais boltas a pôr aqui as patas nesta casa e num iremos ó teu casamento e nem ó baptizado dos raparigos que tibers, oubistes bem? Chamavam-lhe o “ tolhido “ no mais cruel desprezo que um ser humano pode ter por outro e, essencialmente, para humilharem a filha.
( Maria Júlia bateu o pé e fez vencer o amor).
Julinha era uma transmontana determinada, dos sete costados – antes quebrar que torcer -, entregou-se de corpo e alma e casou-se com o Tó, já grávida de quatro meses. ( Não há nada como um facto consumado).
Efectivamente, os Pais não foram ao casamento, não foram ver o netinho quando nasceu e não foram ao baptizado. Para eles, aquela criança não existia. Julinha enfrentou tudo de peito aberto, como poucos o sabem fazer. Tinha, no entanto, o carinho e o apoio incondicional dos sogros.
O Tó ficara assim deficiente quando um carro de bois , carregado com sessenta sacas de batatas, lhe passou por cima das duas pernas. Da perna direita ainda conseguiu recuperar, mas da esquerda ficou sempre a coxear.
Julinha apanhou o comboio até ao Pocinho e aí apanhou outro até Barca D´Alva, estação fronteiriça com Espanha, em Fregeneda / La Fuente de San Estebam, na província de Salamanca. Domingo de manhã, depois de passar os Pirinéus em Andaia, abraçava o seu homem que a esperava na estação de comboios de Lyon.
Foram viver para uma povoação a cerca de quinze quilómetros a leste de Lyon, nas margens do rio Ródano. Logo no dia a seguir, segunda-feira, Julinha começou a trabalhar numa cantina, emprego que lhe tinha arranjado uma portuguesa de Malhadas. O Tó tinha alugado uma barracão de madeira, com sala e casa de banho. A cozinha ficava na sala, junto à janela. Um fogão a gás de duas bocas e uma mesa com quatro cadeiras era a mobília da cozinha.
O Tó trabalhava numa empresa de construção civil, que contruía estradas e arruamentos, onde fazia diariamente duas três horas extraordinárias, de pá e pica, na maioria dos dias com a água até quase aos joelhos, usando galochas. Essas horas extraordinárias eram selvaticamente mal pagas mas, mesmo assim, sempre contribuíam para melhorar as remessas para o banco em Portugal, que lhe comia parte do suor em taxas, comissões e impostos – tal como hoje!
Além da cantina, onde passava o tempo a lavar pratos, panelas, talheres, limpar mesas, lavar e esfregar o chão e limpar casas de banho, Julinha fazia ainda a limpeza de um café, três dias por semana. O Tó ajudava-a na primeira hora – entre as cinco e as seis da manhã! - e depois ia à vidinha dele. Ao sábado fazia a limpeza das escadas de um prédio.
À base de muitos sacrifícios e privações, lá conseguiam amealhar uns tostões para mandarem para a conta do banco e assim alimentar os abutres banqueiros. Poupavam principalmente na comida, pois Julinha levava para casa as sobras da cantina para ela e para o Tó.
Depois de dois anos a esfregar chãos, escadas, pratos, panelas e tachos e engolir a seco as saudades do seu filho, Julinha veio com o marido passar o mês de Agosto à sua saudosa aldeia. Nunca aprendeu a ler e nem a escrever o Português, rabiscando apenas o nome mas, quando veio só quase falava o “ franciú “ ou seja, o “ franceguês”. Veio com a ideia fixa de ensinar o filho a falar francês, pois queria levá-lo para França quando este fizesse a quarta classe e nada melhor do que começar já. De modo que só falava francês com o garoto: obrigava-o a repetir as palavras, corrigindo-lhe a pronúncia. O facto é que o gaiato já sabia muitas palavras e Julinha insistia, satisfeita e orgulhosa, no ensino do francês. Até aos sogros se dirigia maioritariamente das vezes em francês! Mesmo na rua, quando era cumprimentada, respondia : Je bá biãn. E tuá?
Ele era mézon, çá bá, çá bá pá, uí, mercí, bocú, mangê, tussuite, parlê, avec com , moá ser bocú ... e por aí adiante.
A casa onde viviam os sogros ficava num canelho, um pouco fora da aldeia, num terreno com vinha e amendoeiras.
Um dia ao entardecer, seriam horas da ceia, Julinha vai à janela e chama:
- Alfredo Miguel! Alfredo Miguel!
- Diga – respondeu - lhe o filho.
- Bien icit, sir bó plet.
- Atrás duma parede, informou-a o filho no seu melhor português :
- Já bou, que ´stou a cagar.
Julinha, como era carinhosamente tratada por todos desde criança, ia com o coração a sangrar por deixar o seu único filho de sete anos. O filho – Alfredo Miguel – ficaria a cargo dos avós paternos, uma vez que os maternos não queriam saber do neto. Julinha ia ter com o seu marido a França, para onde tinha ido “ d´assalto “ havia já dois anos. Era uma mulher de trinta anos, resoluta, baixa, de olhos pequenos e inteligentes e muito trabalhadeira. Casara com o António Raimundo, conhecido pelo “ Tó Manco “, contra a vontade de seus pais. Quando anunciou o desejo em se casar com o Tó, os pais reagiram violentamente . “ Se te casares co “ Tolhido ”, nunca mais te falemos e nunca mais boltas a entrar por aquela porta adentro. Nunca mais boltas a pôr aqui as patas nesta casa e num iremos ó teu casamento e nem ó baptizado dos raparigos que tibers, oubistes bem? Chamavam-lhe o “ tolhido “ no mais cruel desprezo que um ser humano pode ter por outro e, essencialmente, para humilharem a filha.
( Maria Júlia bateu o pé e fez vencer o amor).
Julinha era uma transmontana determinada, dos sete costados – antes quebrar que torcer -, entregou-se de corpo e alma e casou-se com o Tó, já grávida de quatro meses. ( Não há nada como um facto consumado).
Efectivamente, os Pais não foram ao casamento, não foram ver o netinho quando nasceu e não foram ao baptizado. Para eles, aquela criança não existia. Julinha enfrentou tudo de peito aberto, como poucos o sabem fazer. Tinha, no entanto, o carinho e o apoio incondicional dos sogros.
O Tó ficara assim deficiente quando um carro de bois , carregado com sessenta sacas de batatas, lhe passou por cima das duas pernas. Da perna direita ainda conseguiu recuperar, mas da esquerda ficou sempre a coxear.
Julinha apanhou o comboio até ao Pocinho e aí apanhou outro até Barca D´Alva, estação fronteiriça com Espanha, em Fregeneda / La Fuente de San Estebam, na província de Salamanca. Domingo de manhã, depois de passar os Pirinéus em Andaia, abraçava o seu homem que a esperava na estação de comboios de Lyon.
Foram viver para uma povoação a cerca de quinze quilómetros a leste de Lyon, nas margens do rio Ródano. Logo no dia a seguir, segunda-feira, Julinha começou a trabalhar numa cantina, emprego que lhe tinha arranjado uma portuguesa de Malhadas. O Tó tinha alugado uma barracão de madeira, com sala e casa de banho. A cozinha ficava na sala, junto à janela. Um fogão a gás de duas bocas e uma mesa com quatro cadeiras era a mobília da cozinha.
O Tó trabalhava numa empresa de construção civil, que contruía estradas e arruamentos, onde fazia diariamente duas três horas extraordinárias, de pá e pica, na maioria dos dias com a água até quase aos joelhos, usando galochas. Essas horas extraordinárias eram selvaticamente mal pagas mas, mesmo assim, sempre contribuíam para melhorar as remessas para o banco em Portugal, que lhe comia parte do suor em taxas, comissões e impostos – tal como hoje!
Além da cantina, onde passava o tempo a lavar pratos, panelas, talheres, limpar mesas, lavar e esfregar o chão e limpar casas de banho, Julinha fazia ainda a limpeza de um café, três dias por semana. O Tó ajudava-a na primeira hora – entre as cinco e as seis da manhã! - e depois ia à vidinha dele. Ao sábado fazia a limpeza das escadas de um prédio.
À base de muitos sacrifícios e privações, lá conseguiam amealhar uns tostões para mandarem para a conta do banco e assim alimentar os abutres banqueiros. Poupavam principalmente na comida, pois Julinha levava para casa as sobras da cantina para ela e para o Tó.
Depois de dois anos a esfregar chãos, escadas, pratos, panelas e tachos e engolir a seco as saudades do seu filho, Julinha veio com o marido passar o mês de Agosto à sua saudosa aldeia. Nunca aprendeu a ler e nem a escrever o Português, rabiscando apenas o nome mas, quando veio só quase falava o “ franciú “ ou seja, o “ franceguês”. Veio com a ideia fixa de ensinar o filho a falar francês, pois queria levá-lo para França quando este fizesse a quarta classe e nada melhor do que começar já. De modo que só falava francês com o garoto: obrigava-o a repetir as palavras, corrigindo-lhe a pronúncia. O facto é que o gaiato já sabia muitas palavras e Julinha insistia, satisfeita e orgulhosa, no ensino do francês. Até aos sogros se dirigia maioritariamente das vezes em francês! Mesmo na rua, quando era cumprimentada, respondia : Je bá biãn. E tuá?
Ele era mézon, çá bá, çá bá pá, uí, mercí, bocú, mangê, tussuite, parlê, avec com , moá ser bocú ... e por aí adiante.
A casa onde viviam os sogros ficava num canelho, um pouco fora da aldeia, num terreno com vinha e amendoeiras.
Um dia ao entardecer, seriam horas da ceia, Julinha vai à janela e chama:
- Alfredo Miguel! Alfredo Miguel!
- Diga – respondeu - lhe o filho.
- Bien icit, sir bó plet.
- Atrás duma parede, informou-a o filho no seu melhor português :
- Já bou, que ´stou a cagar.
Fontes de Carvalho
Fontes de Carvalho, pseudónimo de Luís Abel Carvalho, nasceu no Larinho, uma aldeia transmontana do Concelho de Torre de Moncorvo, Distrito de Bragança. É o filho do meio de três irmãos.
Estudou em Moncorvo, Bragança e no Porto, onde se formou em Engenharia Geotécnia. É casado e Pai de três filhos.
Viveu no Brasil, onde passou por momentos dolorosos e de terror, a nível económico e psicológico. Chegou a viver das vendas de artesanto nas ruas e a dormir debaixo de Viadutos.
No ano de 1980 e 1981 foi Professor de Matemática em Angola, na Província de Kwanza Sul, em Wuaku-Kungo. Aí aprendeu a desmistificar certos mitos e viveu uma realidade muito diferente da propagandeada.
Em Portugal deu aulas de Matemática em diversas cidades, nomeadamente em São Pedro da Cova, Ponte de Lima, Cascais (na Escola de Alcabideche, onde deu aulas aos presos da cadeia do Linhó), Alcácer do Sal, Escola Francisco Arruda e Luís de Gusmão, em Lisboa. Frequentou durante quatro anos, como trabalhador-estudante, o curso de Engenharia Rural, no Instituto Superior de Agronomia.
Em 1995 fundou a empresa Bioprimática – Reciclagem de Consumíveis de Informática, onde trabalha até hoje como sócio-gerente.
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