Manuela Gonçalves morreu vítima de cancro MÁRIO CABRITA GIL-CORTESIA DA FAMÍLIA |
A criadora de moda portuguesa Manuela Gonçalves, uma das precursoras da moda em Portugal, morreu com cancro nesta terça-feira, 20 de Setembro, avançou ao PÚBLICO uma fonte próxima da designer. Tinha 77 anos.
Manuela Gonçalves sofria de cancro há dois anos e morreu no Instituto Português de Oncologia de Lisboa (IPO), onde estava internada há uma semana, informou o DJ Leonaldo de Almeida, amigo da designer desde os anos 1970.
Natural de Bragança, Manuela Gonçalves estudou moda, como bolseira, na conceituada Central Saint Martins, em Londres, e era lá que estava no dia em que a revolução de Abril chegou às ruas, em 1974. “É a primeira criadora de moda portuguesa com uma formação específica”, lembra a directora do Museu de Moda e do Design (Mude), Bárbara Coutinho.
Quando regressou a Lisboa, no pós-25 de Abril, a jovem começou a trabalhar para marcas industriais, mas destacou-se quando criou a sua marca, na década seguinte — primeiro na Loja Carmim, na Rua Castilho, em Lisboa, depois, em 1979, na conhecida Loja Branca, na Praça das Flores, na mesma cidade, recorda, por sua vez, Anabela Becho, historiadora de moda. “Não havia muitas mulheres na moda em Portugal”, lembra a historiadora, que classifica a criadora como uma das responsáveis pelo “despontar da moda portuguesa”.
A par de Manuela Gonçalves, só a consagrada Ana Salazar marca a moda nacional no feminino da década de 1980. “Na altura podia dizer-se que só nós fazíamos moda de autor. Fazia-se confusão — e ainda hoje — com as pessoas que tinham lojas de roupas”, recorda a designer de 81 anos ao PÚBLICO. Salazar define a obra da colega como “um trabalho minimal e especial”, que “transmitia bem a sua expressão artística”, com atenção ao cliente. “Fazíamos as coisas de forma diferente, a pensar nas pessoas que íamos vestir e não a seguir tendências, que agora são ditadas pelas casas de moda internacionais”, reflecte, lembrando que até tinham “clientes em comum”.
Bárbara Coutinho também enquadra o trabalho de Manuela Gonçalves como “de grande importância para a afirmação de cultura de moda” no contexto da “efervescência cultural” da Lisboa dos anos 80 — “que se queria moderna e cosmopolita”. E, assinalam ambas as historiadoras, Manuela Gonçalves não foi pioneira apenas no género, mas na silhueta. A criadora, analisa Anabela Becho, rompe com “a silhueta clássica” dos anos 70, “das calças de ganga à boca de sino”, e traz inspiração de outras paragens: “Há uma consonância grande com o trabalho dos japoneses da época.” A directora do Mude concorda: “É um trabalho que não seguiu modas, mas, sim, uma influência conceptual.”
As peças de Manuela Gonçalves primavam pelas “formas mais soltas” e “desconstruídas” com as mangas “estilo quimono” a ser uma das suas assinaturas, analisa a investigadora Anabela Becho, para quem há uma forte componente material do trabalho da criadora portuguesa a destacar, na atenção dada aos tecidos. “Fazia os seus próprios tecidos e percebe-se que são materiais com uma composição natural, lãs naturais e trabalhadas”, observa, elogiando este carácter mais artesanal.
Já Bárbara Coutinho elogia a “geometria das formas”, conjugada com os drapeados e a atenção ao detalhe, que faz com que as peças “tenham ganho um carácter atemporal”. “Essa certa austeridade nas soluções construtivas permite uma versatilidade no uso”, acredita. Versatilidade essa que se estendia também ao género: Manuela Gonçalves criava tanto para homem, como para mulher, diluindo as fronteiras entre essas peças.
Nesse sentido, Anabela Becho não hesita em classificar a expressão artística da criadora como “próxima da alta-costura”, dado o seu carácter experimental não só material, como criativo. Grande parte das peças da designer, destaca, eram feitas por medida para clientes habituais, como a jornalista e apresentadora de televisão Maria João Seixas.
Distância da moda de espectáculo
Em 1991, na primeira edição da ModaLisboa, a criadora participou e Eunice Muñoz desfilou com um coordenado desenhado por si. Não voltaria a repetir a participação. O amigo Leonaldo de Almeida recorda alguns desfiles que a designer — a quem carinhosamente chama “Manelinha” — fez, nos anos 80, de forma independente na Gare Marítima de Alcântara ou no mítico bar Frágil, em Lisboa, onde a moda pulsava naquela década.
Nesses desfiles em nome próprio, “as colecções ganhavam um sentido performativo muito evidente”, aponta Bárbara Coutinho: “As pessoas que passavam as suas roupas vinham do mundo da música e das artes. Esse carácter de performance revestia os desfiles de um grande valor cultural.”
Apesar de estar no epicentro dos primeiros passos da moda de autor nacional, Manuela Gonçalves nunca se aproximou demasiado do movimento de criadores portugueses que se começava a formar e optou sempre por um “caminho solitário”, avalia Anabela Becho. “Distanciou-se do lado mais espectacular da moda que surgiu com a ModaLisboa”, reforça.
Leonaldo de Almeida define a amiga como alguém muito discreto que, aliás, “nunca quis dar entrevistas”. Numa rara entrevista à jornalista Maria Assunção Avillez, recorda a historiadora, Manuela Gonçalves terá dito uma frase que Anabela Becho destaca como um resumo do seu trabalho: “Não gosto que digam que faço moda. Prefiro que digam que faço roupa.”
Becho lamenta que a personalidade discreta de Manuela Gonçalves tenha feito com que não fosse devidamente reconhecida pelo trabalho pioneiro que fez e que tenha caído no esquecimento, na sequência do fecho da sua loja, no início dos anos 2000. “Quem não aparece, esquece”, lastima.
No Mude, Manuela Gonçalves não foi esquecida e há várias peças da criadora no acervo do museu — três delas patentes na exposição Portugal Pop. A Moda em Português 1970-2020, na Casa do Design em Matosinhos. “Ela contribuiu para a história da cultura da moda em Portugal, deve não só ser lembrada, como continuar a ser uma referência no ensino”, termina Bárbara Coutinho.
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