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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

domingo, 28 de julho de 2024

EMIGRARES… (CONTO)

Por: Fernando Calado
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)

O tio Zé lá estava sentado à sua porta, moendo os dias e as amarguras de recordações passadas e de riquezas antigas por terras de Cuba.
Ainda novo emigrou, levado pelo sonho dourado de enriquecer à sombra do açúcar, do café e principalmente do tabaco. O sonho realizou-se e o tio Zé, nos tempos áureos da ditadura de Fulgêncio Batista passeava-se como um fidalgo pelas longas avenidas de Havana fumando, ostensivamente, charutos havanês.
Mas a História, inesperadamente, inverteu a promissora carreira do Tio Zé que não resistiu à demolidora nacionalização da revolução Socialista de Fidel Castro.
E assim, de um dia para o outro, o Tio Zé regressou à humílima casa que tinha na sua pequena aldeia do Nordeste transmontano, deixando para trás infindos campos agrícolas onde abundavam as colheitas do açúcar, do café e do tabaco.
E agora, lá estava o Tio Zé, todos os dias, sentado à sua porta, de bengala na mão, não se cansando de murmurar, como quem reza um responso de esconjuro:
- Morra Fidel Castro!
- Abajo Ernesto Che Guevara!
E assim passava os dias o Tio Zé, abanando a cabeça e oferecendo aos que passavam uma bebida estranhíssima que quase ninguém usava…pois todos preferiam o vinho que abundava nas adegas frescas junto ao ribeiro.
- Quieres um café!
Dizia o Tio Zé num espanhol arrevesado
E mais por agrado do que por outra coisa, os vizinhos lá iam tomando o café do Tio Zé que tinha sempre a cafeteira ao lume, onde deitava duas brasas acesas para que o café assentasse!
Estava o Tio Zé envolto nos seus pensamentos, aproveitando um sol melado de fim de tarde, quando chega o Tio Manuel, um homem grande que tinha andado na Grande Guerra…na Guerra de 14, como ele gostava de dizer.
O Tio Manuel apreciava tomar banho no único chuveiro que havia na aldeia e que o Tio Zé improvisou, na sua adega, com a criva de um regador. Também os garotos depois das lides domésticas se juntavam no quintal do Tio Zé gritando em grande alvoroço:
- Tio Zé deixa-nos tomar banho no vosso chuveiro?!
Que grande modernice tinha trazido o Tio Zé das terras do fim do mundo!
Como de costume, depois de tomar banho e de pentear o cabelo para trás, o Tio Manuel sentou-se na soleira da porta e a conversa, sem pressa, desfiou-se à volta das façanhas que cada um tinha protagonizado por terras de Cuba e pelas terras de França, mergulhadas numa guerra mortífera:
- Tu que pensas Zé, para a Guerra de 14 fomos 200 mil homens portugueses e morreram lá mais de 10 mil…eu, lá me safei misturado com as tripas e os corpos dos mortos…quieto…a fazer-me de morto…assim, deixei-me levar para a vala onde eram enterrados os que caíram nas trincheiras…e ao anoitecer…pernas para que te quero, fugi para um povo, onde fui tratado como um rei.
Então era ver o Tio Manuel tirar do bolso velhas fotografias de namoradas coquetes que na sua imaginação pródiga teria tido, por terras de França, enquanto o Tio Cubana atirava à queima-roupa:
…mulheres, tu sabes lá o que são mulheres, Manuel, eu em Cuba chegava a ter a três mulheres e governava-as a todas…cada uma em sua casa!
- Eu, até cheguei a namorar com uma freira!
Digladiava assertivo o Tio Manuel.
- Mas não era uma freira qualquer, era uma daquelas que quase não se lhe vê a cara que trazem umas palas, assim para a frente…e alongava cerimoniosamente os braços para exemplificar o cumprimento das palas.
- Conho…e como lhe davas um beijo!
Pergunta desconfiado o Tio Zé.
Sem se desmanchar, solenemente, responde o Tio Manuel:
- Com um canudo!
O Tio Zé acenou com a cabeça, como quem concorda com a resposta para o enigma e sem mais delongas vai buscar a cafeteira para presentear o seu amigo com um café…embora o Manuel tomasse a custo o café, somente na esperança que o mesmo fosse acompanhado com um quarteirão de aguardente.
Depois deste ritual, o Tio Manuel despedia-se do seu vizinho, levantando-se a custo, sempre murmurando:
- Já me doem as dobradiças…se me apanhasse no tempo em que namorava com a freira!
- Se tu conhecesses a minha Cármen de Havana, que até lhe mandei por um dente de ouro, então sim…
E a conversa ficava por aqui, até ao dia seguinte, em que de novo, os dois homens que viviam de sombras e dos sonhos dum passado de estrangeiros, haviam de relatar, pela milésima vez, as suas proezas com as mulheres longínquas e passear, demoradamente, pelos infindos campos de Cuba…ou sobreviver no terror das trincheiras da Grande Guerra de 14.

Fernando Calado
nasceu em 1951, em Milhão, Bragança. É licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto e foi professor de Filosofia na Escola Secundária Abade de Baçal em Bragança. Curriculares do doutoramento na Universidade de Valladolid. Foi ainda professor na Escola Superior de Saúde de Bragança e no Instituto Jean Piaget de Macedo de Cavaleiros. Exerceu os cargos de Delegado dos Assuntos Consulares, Coordenador do Centro da Área Educativa e de Diretor do Centro de Formação Profissional do IEFP em Bragança. 
Publicou com assiduidade artigos de opinião e literários em vários Jornais. Foi diretor da revista cultural e etnográfica “Amigos de Bragança”.

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