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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite, Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues, João Cameira e Rui Rendeiro Sousa.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

sábado, 1 de novembro de 2025

Entre Mortos e Vivos

Por: Paula Freire
(colaboradora do Memórias...e outras coisas...)


 Chama-se Manuel. Vejo-o todos os dias. É um homem alto e magro, de cabelo grisalho. Com a pele marcada pelo calor e pelo frio, os seus dedos calejados cheiram a terra. O odor que neles permanece, nenhum perfume consegue apagar.

Sei que se levanta pelo cantar dos galos, quando as sombras e o nevoeiro da alvorada ainda se erguem sobre as casas da vila, e os trilhos conservam a humidade da noite e a bruma se enrosca nos tornozelos dos caminhantes.

Ao longe, os cães uivam. E Manuel parte para a sua demanda, com passos lentos, acompanhado por vozes que mais ninguém escuta. Olhos profundos e atentos, que veem aquilo que mais ninguém vê.

A rotina é uma obsessão que se lhe adentra pela pele. Cava pedras e raízes, mexe e remexe, recolhe flores murchas e secas, organiza, limpa. Tarefas essenciais a quem se dedica com esmerado cuidado ao seu trabalho. Por entre lápides e ossos, Manuel participa da morte que os vivos lhe deixam a escorrer dentro das mãos. E ninguém lhe encontra fragilidade. Apenas uma paciência que foi aprendendo a construir no meio de jazigos e sepulturas. Porque até a morte exige atenção.

Manuel é o homem do cemitério. Coveiro dos corpos. O que guarda as almas e as memórias da vila. Secamente, é essa a sua função. E ninguém se preocupa em perguntar-lhe se tem sonhos ou se sente medos. Mas, quem sabe, por passar os dias a lidar com as ausências e o silêncio, se tenha tornado indiferente à sua invisibilidade, à desatenção daqueles que passam apressados, como se nada nele importasse muito. 

E, por isso, não reclama. Agradece que o seu lugar seja aquele, entre os mortos que existem para lembrar aos vivos a verdade de que estes não têm consciência.

É por isso que também gosta de os observar. Aos vivos. Aqueles que fingem que veem. Passam nas ruas, a correr, com os olhos em cima dos telemóveis, a discutir contas, a cabeça à roda nas notícias que nem sequer compreendem bem, os gestos vazios de tudo, as conversas sem alma. A falta de atenção aos sorrisos que vão desaparecendo, aos abraços que deixam de chegar, à vida que se esvai e que já poucos reconhecem. A cegueira contagiosa a surgir como uma espécie de morte antecipada…

E, ironicamente, Manuel sente-se parte de um mundo que ignora a sua própria presença. 

Hoje é dia de tradições e todos se dirigem ao cemitério. Vêm tratar das campas. Talvez por respeito, talvez por saudade. Talvez por receio de serem vistos como deselegantes ou negligentes.

Quem não vem é apontado, julgado. A morte nem sempre acorda a consciência dos vivos. Mas desperta ações que têm mais força do que o luto.

A vila inteira passa por ele. Uns cumprimentam-no por cortesia ou interesse, outros acenam-lhe de forma mecânica, outros ainda desviam o olhar. Postura que se justifica pelo incómodo que lhes traz a tranquilidade com que Manuel encara a morte. 

E enquanto o chão aponta para o céu cinzento, todos cumprem o ritual que se impõe, sem perceberem o estrépito que se expande por baixo dos seus passos. 

Entre os túmulos alinhados, Manuel atenta, como sempre, nos presentes. É incrível como a vida destes dias se movimenta dentro do espaço soturno de uma necrópole! Varrem-se folhas, esfrega-se, desencarde-se o pó, zela-se para que cada flor seja colocada no sítio certo, acendem-se velas. Faz-se o que se espera que seja feito, numa vontade de parecer. E para o seu olhar que já viu mais finais do que princípios, quase tudo lhe parece limpo, mas vago. Como que desabitado de sentimento. 

Lembra-se, então, do rapaz. E daquela sepultura antiga que parecia esquecida, com o nome já gasto pelas intempéries do tempo. O sepulcro de um velho que ninguém visitava há anos. 

Naquela tarde, pelo crepúsculo, uma chuva fina e persistente caía. Chamou-lhe a atenção um rapaz ajoelhado, ali, sobre a terra mole e as folhas em decomposição, curvado a uma quietude que doía. As calças encardidas com lama e ele encolhido debaixo de um capuz puído e ensopado, que parecia engolir todos os invernos de muitos anos, com a água a escorrer-lhe pelos braços estreitos.

Os olhos escuros não pediam qualquer explicação nem redimiam culpas. Neles, somente lágrimas puras a acariciar o ar. O rapaz inclinava-se, levantava-se, debruçava-se de novo. Limpava o musgo da campa com as próprias mãos, devagar. Trejeitos difíceis de encenar. Impossíveis de esquecer.

Os lábios moviam-se numa prece silente. Falava com o pai. Manuel apenas conseguia escutar porque estava vigilante. Fascinado. Naquele ser encontrou a humildade. Uma humanidade nua, sem artifícios, uma espécie de flor a desabrochar na dureza crua da vila. Sem encenação. Sem tradições.

Manuel regressa a casa com as roupas sujas e as vozes dos mortos a confessarem-lhe estranhos segredos. Dizem-lhe que o cemitério não é feito só de argila, barro, covas. É o desenho de uma sociedade.

Sabe que, entre mortos e vivos, são os vivos que já estão mortos. Os que vagueiam por cima da terra e não sabem que já não existem.

Adormece com o frio da noite a entrar-lhe pelas frestas das janelas do quarto mal iluminado. E sente que só o rapaz da chuva não o abandona.

Paula Freire -


Paula Freire
- Natural de Lourenço Marques, Moçambique, reside atualmente em Vila Nova de Gaia, Portugal.
Com formação académica em Psicologia e especialização em Psicoterapia, dedicou vários anos do seu percurso profissional à formação de adultos, nas áreas do Desenvolvimento Pessoal e do Autoconhecimento, bem como à prática de clínica privada.
Filha de gentes e terras alentejanas por parte materna e com o coração em Trás-os-Montes pelo elo matrimonial, desde muito cedo desenvolveu o gosto pela leitura e pela escrita, onde se descobre nas vivências sugeridas pelos olhares daqueles com quem se cruza nos caminhos da vida, e onde se arrisca a descobrir mistérios escondidos e silenciosas confissões. Um manancial de emoções e sentimentos tão humanos, que lhe foram permitindo colaborar em meios de comunicação da imprensa local com publicações de textos, crónicas e poesias.
O desenho foi sempre outra das suas paixões, sendo autora das imagens de capa de duas obras lançadas pela Editora Imagem e Publicações em 2021, “Cultura Sem Fronteiras” (coletânea de literatura e artes) e “Nunca é Tarde” (poesia), e da obra solidária “Anima Verbi” (coletânea de prosa e poesia) editada pela Comendadoria Templária D. João IV de Vila Viçosa, em 2023. Prefaciadora dos romances “Amor Pecador”, de Tchiza (Mar Morto Editora, Angola, 2021), “As Lágrimas da Poesia”, de Tchiza (Katongonoxi HQ, Angola, 2023), “Amar Perdidamente”, de Mary Foles (Punto Rojo Libros, 2023) e das obras poéticas “Pedaços de Mim”, de Reis Silva (Editora Imagem e Publicações, 2021) e “Grito de Mulher”, de Maria Fernanda Moreira (Editora Imagem e Publicações, 2023). Autora dos livros de poesia: Lírio: Flor-de-Lis (Editora Imagem e Publicações, 2022) e As Dúvidas da Existência - na heteronímia de nós (Farol Lusitano Editora, 2024, em coautoria com Rui Fonseca).
Em setembro de 2022, a convite da Casa da Beira Alta, realizou, na cidade do Porto, uma exposição de fotografia sob o título: "Um Outono no Feminino: de Amor e de Ser Mulher".
Atualmente, é colaboradora regular do blogue "Memórias... e outras coisas..."- Bragança e da Revista Vicejar (Brasil).
Há alguns anos, descobriu-se no seu amor pela arte da fotografia onde, de forma autodidata, aprecia retratar, em particular, a beleza feminina e a dimensão artística dos elementos da natureza.

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