Os trabalhos preliminares começaram no dia 11 de maio de 190388, sob direção do engenheiro Costa Serrão, um técnico de 48 anos, com uma vasta experiência de obras públicas em Portugal e no ultramar, e que tinha sido apresentado a Cruz por José Beça.
Na sua primeira avaliação ao trabalho, considerou que o projeto original do governo (de 1888) podia “ser classificado de construção bastante difficil e dispendiosa”, ficando “bem á evidencia demonstrada a necessidade impreterivel de procurar, por meio de variantes ao projecto, a reducção do custo d’algumas partes da obra”.
Nos meses seguintes, o engenheiro concentrou-se em retificar a diretriz da via-férrea no sentido de obter um projeto mais fácil e barato de construir. Com as alterações, sucessivamente aprovadas pelo ministério, João da Cruz suspirava de alívio: “foram estes resultados tão satisfatorios […] que tornaram viavel a construcção do caminho de ferro de Mirandella a Bragança”, confessava já depois de inaugurada a linha.
No dia 20 de julho de 1903, os trabalhos eram inaugurados festivamente em Bragança. O início de qualquer obra era normalmente caracterizado por um enorme otimismo. A Gazeta de Bragança noticiava o “raiar [d]a aurora de melhores tempos”, “uma nova era” e como “a vida será bem outra”.
Porém, no final do ano, João da Cruz debatia-se com graves dificuldades financeiras. A construção de uma estrada de ferro era feita em várias frentes ao mesmo tempo, mas o empreiteiro só recebia por obra ou quilómetro completo, o que exigiu o empate no imediato de uma soma de capital que João da Cruz não dispunha. Depois de investir 42 contos do seu próprio bolso e de levantar capitais através da agência do Banco de Portugal de Bragança, confessou em dezembro à CNCF “não poder manter nem sustentar o seu contracto por falta de recursos”.
A CNCF acedeu assinar um adicional ao contrato (7.12.1903). Ambos reconheciam que as formas de pagamento originais obrigavam o empreiteiro “a empregar na execução da empreitada quantia superior áquela de que lhe convem dispôr para tal fim”. Cruz solicitava “que lhe sejam feitos pagamentos parciaes por conta de certos materiaes […] e das unidades de trabalho executadas, que não constituam as obras completas ou os kilometros completos”. Os diretores da CNCF disponibilizaram-se a pagar até 90% do valor dos materiais indicados e das unidades de trabalho concluídas, aos quais seriam deduzidos os 10% da garantia. Em troca, Cruz pagava 1% de comissão e 6,5% de juro sobre as importâncias que recebesse.
A solução foi um subterfúgio de curto prazo. Como mais tarde o próprio reconheceu, “não era com os abonos que ficou fazendo a companhia […] que eu podia executar os trabalhos”. Para continuar a empreitada, viu-se forçado a contrair crédito próprio e “a cahir, por ultimo, nos braços dos agiotas”.
De qualquer modo a partir de inícios de 1904, o ritmo dos trabalhos acelerou com cerca de 1500-2000 operários a laborar diariamente. Era um número relevante se nos lembrarmos que o grande empreiteiro-engenheiro britânico Samuel Peto, no auge da sua carreira, controlava uma força de trabalho de dez mil homens. Todavia, o período do Verão afrouxava a cadência dos trabalhos, pois “não havia operarios que resistissem a trabalhar […], devido ás sezões”.
As colheitas e a construção da linha do Corgo a alguns quilómetros de distância dificultavam a angariação de trabalhadores e elevavam o custo do trabalho. Segundo João da Cruz, mandei durante a epocha das ceifas, emissarios por toda a parte, contractar pessoal, chegando a pagar o jornal de 550 réis […], para não paralisarem por completo os trabalhos [, contudo] a escassez de operarios foi enorme […] e, aquelles que appareciam, eram da peor especie, produzindo uma quantidade de trabalho insignificante.
Além de incompetentes, alguns trabalhadores eram conflituosos. Em maio de 1904, a direção da construção confessava-se em dificuldades para manter a ordem na obra. Em Macedo de Cavaleiros, levantou-se “um grande partido de trabalhadores para virem, em massa, exigir o augmento do salario”. O governador civil, Abílio Beça, solicitou ao presidente do conselho Hintze Ribeiro “se digne providenciar seja ordenado destacamento, indispensavel para auxiliar manutenção ordem e policiamento de dois mil operarios da construção da linha”. Os pacificadores chegaram a Macedo em meados de maio, pondo fim ao motim.
O próprio terreno levantou dificuldades inesperadas ao assentamento da linha, o que retardou a sua conclusão. É esta a memória que foi passada aos descendentes do empreiteiro e que é perfeitamente crível, uma vez que as técnicas de levantamento do terreno eram na altura incipientes e não podiam prever todas as dificuldades que se atravessariam no caminho dos construtores.
Além destes problemas, João da Cruz debateu-se ainda com questões jurídicas, levantadas pelos proprietários dos terrenos adjacentes à via. As fontes confirmam dois processos de embargo, mas provavelmente houve mais. Um dos processos mais intricados foi o relativo às expropriações dos terrenos de Clemente Menéres, proprietário de vastas terras a norte de Mirandela, por onde o caminho-de-ferro passava. Menéres pediu 22 contos pelas propriedades que ia perder, oferta que João da Cruz considerou “exageradíssima, […] que eu estava muito longe de esperar”. Menéres aceitou baixar a indemnização para quinze contos, verba ainda assim intolerável para o empreiteiro, que se confessava obrigado ao “grande desgosto de consentir num processo de expropriação judicial com quem tanto desejava considerar”.Menéres sentiu-se pessoalmente afrontado e cortou relações com Cruz. O imbróglio seria desbloqueado pelo governo, que em março de 1904 aprovou as expropriações por utilidade pública. Menéres receberia nove contos além de outras compensações variáveis.
Em meados de 1904, João da Cruz enfrentava novamente dificuldades financeiras e confessava não ter como continuar a obra. A CNCF sugeriu-lhe companhias que lhe podiam emprestar dinheiro. Cruz só as descreveu por abreviaturas (S. T. e F.). Alguns dos créditos passaram sob a forma de letras comerciais descontadas pela agência do Banco de Portugal de Bragança. O prazo de vencimento era de apenas três meses, sendo que a reforma das letras implicava uma amortização de 5%. A agência confirmava a difícil situação do empreiteiro, citando no seu relatório anual o protesto de letras aceites por Cruz no valor de 26,5 contos por demora na sua reforma.
No início de 1905, viu-se novamente obrigado “a pedir auxilios financeiros a todos os meus amigos, para poder cumprir […] o contracto”. Entre esses amigos, contavam-se Abílio Beça – que dispôs “de parte dos seus haveres, ao mesmo tempo que solicitava dos seus amigos que concorressem tambem com dinheiro para as empreitadas” – e também Costa Serrão – que entrou “com algum capital com que procurou valer-lhe [a Cruz] em horas afflictivas”. Cruz recorreu também à agência do Banco de Portugal para movimentar dinheiro, contudo, o seu crédito esgotava-se e a sede em Lisboa do banco proibiu a sua agência de tomar “novas letras s/ Lisboa e Porto ao mesmo Lopes da Cruz”, impondo condições à reforma de letras antigas e ameaçando com o protesto em caso de falta de amortização.
O empreiteiro recorreu novamente à CNCF, ameaçando parar a obra. Em 15 de fevereiro e 31 de maio de 1905, as partes assinavam mais dois adicionais. O preço do metro cúbico das terraplanagens era alteado, mas em troca o juro a pagar pelo empreiteiro era aumentado para 7%. Estes adicionais funcionavam como um empréstimo encapotado, de modo que a dívida de Cruz ia aumentando sempre e os pagamentos que lhe eram devidos seguiam o percurso inverso.
A situação do carrazedense face à CNCF era ainda pior devido ao facto de estar dela dependente para a realização de algumas tarefas. Em 1904, o assentamento da via e reforço dos aterros foram adjudicados à concessionária, já que o empreiteiro não dispunha de locomotivas e vagões para tal. O transporte de material e pessoal para a obra foi também feito e cobrado pela CNCF.
O recurso a subempreiteiros para determinadas tarefas era recorrente mesmo no sistema dos large contracts (Cruz subadjudicou várias obras pelo menos a Lopez & Maurice, à Empresa Industrial Portuguesa e a próprios funcionários da CNCF). Por vezes, os empreiteiros-gerais eram enganados pelos seus
subempreiteiros, mas não parece que isto tenha acontecido com João da Cruz que reconhecia que fora “a boa vontade da maior parte dos meus auxiliares, que tornaram viavel a construcção”.
Malgrado as dificuldades, as obras prosseguiam, não sem baixas a lamentar. Documentalmente, temos o caso “d’um trabalhador que perdeu a vista e a mão direita com a explusão d’um tiro” e de uma criança atingida após uma detonação, mas certamente registaram-se mais acidentes.
A partir de 1905, vários trechos do caminho-de-ferro foram sendo sucessivamente inaugurados, com algum atraso e respetiva multa para João da Cruz: a 2 de agosto de 1905 até ao Romeu, a 15 de outubro de 1905 até Macedo e a 18 de dezembro de 1905 até Sendas.
Por esta altura, Cruz endividou-se mais. De Lisboa trouxe “muitas dezenas de contos de reis em notas de pequena espécie, em prata e nickel”. Em Bragança, em 1905 e 1906, aceitou letras no valor de 38,1 contos de Narciso Garcia (16,5 contos), Carlos Gama (4,5), Henrique da Cunha Pimentel (7,6 contos) e Abílio Beça (9,5 contos). Em janeiro de 1906, contraiu um empréstimo de 15,4 contos junto da Carris do Porto, hipotecando os 10% que a CNCF retinha como garantia. A 14 de julho de 1906, mais 22,5 contos eram-lhe emprestados, com hipoteca de várias propriedades e bens, por António Manuel Teixeira. A dívida em Lisboa descontada na agência de Bragança atingia no final de 1906 os 23 contos. Mas, não sendo estes créditos suficientes, solicitou novas concessões à CNCF, “d’esta vez porém a Companhia não se commoveu, e não acedeu”.
A 30 de julho de 1906, João da Cruz informou a CNCF de que não podia continuar a obra por ausência de fundos. Dois dias depois, a companhia rescindia o contrato, alegando justa causa, que, de facto, tinha. Segundo o contrato, “se a Companhia reconhecer que os trabalhos não seguem com o conveniente desenvolvimento para que possam ser concluídos nos prazos fixados, terá o direito de rescindir o contracto e de tomar posse das obras”.
Pelo parágrafo único do mesmo artigo, o empreiteiro não só não tinha direito a qualquer indemnização como ainda perdia todas as somas que a companhia lhe devesse. Fora com estas somas que o empreiteiro garantira vários empréstimos para fazer a obra. Ao perdê-las, João Lopes da Cruz ficou arruinado.
Hugo Silveira Pereira
Centro Interuniversitário de História das Ciências e da Tecnologia
(Faculdade de Ciências e Tecnologia – Universidade NOVA de Lisboa)
Número total de visualizações do Blogue
Pesquisar neste blogue
Aderir a este Blogue
Sobre o Blogue
SOBRE O BLOGUE:
Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço.
A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)
(Henrique Martins)
COLABORADORES LITERÁRIOS
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Henrique Martins, tentei partilhar do MEMÓRIAS... e outras coisas... alguns destes artigos sobre as obras relativas à execução da última empreitada Mirandela - Bragança da Linha do Tua e o face não me permite tal! Porque será? Por diversas razões tenho muito interesse no historial desta obra. Uma das razões prende-se com o facto de conhecer uma das netas de João da Cruz, a qual, é casada com um amigo (eng. Paulo Lobo Fernandes) que foi meu companheiro de trabalho na Sonae e na Somague, até à minha aposentação.
ResponderEliminarSerá possível a sua aquisição de outra forma qualquer? Na expectativa de informação sobre este assunto, subscrevo-me, caro amigo, com toda a consideração. Abraço