O interessante nesta minha nova vida era o contraponto entre o modo de vida que eu conhecia e a nova que estava, lentamente, a apreender.
Eram tão diferentes como o dia e a noite. Tão absolutamente desiguais, que pareciam proceder de planetas diferentes.
São Paulo é uma das maiores metrópoles do mundo onde a vida não pára, onde se trabalha durante a noite como se fosse dia, onde não há tempo para viver as pequenas coisas porque o ritmo é acelerado pelas exigências do mercado.
A minha aldeia é um microcosmo, um resumo do universo, onde tudo enferma de uma pequenez estonteante. Há tempo para tudo. As pessoas andam devagar, sem pressas, sem stress. O ritmo a respeitar é o das estações do ano, do dia e da noite.
Eu, olhar escancarado de espanto, via o tempo passar. Fui acordada do meu devaneio pela minha tia que me dizia se eu queria descascar as batatas. “Não sei tia, nunca descasquei.” “Só me faltava esta, uma patriciazinha que nunca fez nada!” “Deixa tia, eu experimento!” “Não, que ainda te cortas e essas mãozinhas estão mimosas demais para a faca.” “Eu ajudava a minha mãe a limpar a casa quando tinha tempo. Não diga que eu não fazia nada.” “Vê-se!”
Amuei. Se havia coisa de que tinha orgulho era de não fugir às minhas responsabilidades. Podia não estar habituada a cozinhar mas aprendia depressa. Não sabia lidar com os potes na lareira mas aprenderia.
Peguei na bacia das batatas e numa faca e comecei a tarefa. Descasquei a primeira enquanto a minha tia se afadigava a preparar o guisado de coelho. Afogueada, vira-se para mim: “Gostas de coelho?” Acenei afirmativamente. “Pois és cá uma descascadora de batatas como outra nunca vi! Metade da batata fica na casca, bem podem os porcos!”
Levei algum tempo a assimilar o que tinha ouvido. Notava-se no meu ar interrogativo.
A minha tia soltou uma gargalhada, a minha avó tirou-me a bacia do colo. “Deixa que eu faço isso, filha. Vai lavar as mãos.” Ria-se com o seu sorriso inconfundível. Gostava da minha avó, da sua meiguice e ternura…
Entrou o meu avô com uma garrafa de vinho na mão, perguntou se o almoço ainda demorava. Sentou-se no seu lugar, num escano pequeno de costas para a rua. “Está frio. Não pára de chover. Já não tenho que dar aos animais. A égua começa a ficar impaciente de estar na loja…”
“Parece que está a aliviar pai. Vamos lá ver se melhora durante a tarde. Amanhã vou para Bragança com a garota. É preciso que ela compre roupa adequada que aqui não é Brasil.” “Quando voltais?” “Na quinta-feira para a passagem de ano.”
Assistia a tudo como se fosse telespectadora de uma qualquer novela. Sentada num lugar onde pouco ou nada incomodava, junto da arca do sal que estava incrustada na parede, encolhida, não de frio, mas de incerteza.
O cheirinho que se evolava do pote do coelho, fazia fome. Como mais tarde vim a descobrir, era do monte, caçado pelo meu avô. As batatas estavam quase cozidas.
Levantei-me para por a mesa. “Tia, onde está a toalha?” “Não te preocupes, comemos aqui. Traz essa toalha que está em cima do fogão.” “Temos um fogão?!” Exclamei admirada.
“Claro que temos um fogão, ou achas que no verão cozinhamos ao lume?” A minha tia não perdia a oportunidade de se meter comigo e com a minha ignorância.
“Deixa a rapariga. Basta-lhe a saudade dos pais e dos irmãos.”
Foi a deixa para que as lágrimas corressem livres pela minha face. Levantei-me. “Vou ver se ainda chove.” Abri a pesada porta da rua e respirei o ar gélido. Desci o degrau que dava acesso ao terraço e caminhei para a grade de proteção onde me encostei. Olhei para a única rua do lugar, para o largo da Louçana, para a casa da tia Engrácia… As lágrimas continuavam a correr, depurativas. Chorava a minha antiga vida…
Senti que a porta se abria. Enxuguei com a manga do casaco o rosto. Suspirei.
“Vá, anda lá! Estava a brincar contigo para ver se te animava um pouco… Vamos comer. Vais ver uma coisa nova que ainda não descobriste. Foi o teu avô que fez.”
Entrámos. Agradeci o calor e vi o lar como se fosse a primeira vez que o via. O lato estava novamente ao lume, pendurado no ferro que vinha de dentro da chaminé. Dentro dele estavam as cascas das batatas e outras coisas que ainda não sabia reconhecer.
Os pratos estavam empilhados na mesa juntamente com os copos, os talheres e os guardanapos de pano.
“Senta-te ao lado da avó.” “Mas, é preciso por a mesa…” “Ora senta-te. Vais ver uma coisa interessante.” Assim fiz. A minha avó mandou-me encostar ao espaldar do escano e puxou, por cima das nossas cabeças, uma mesa.
“Que legal, avó!” O meu avô observava. Sorrisinho no canto da boca. Peguei na toalha que a minha tia me estendia e pu-la em cima da mesa. O avô partia o pão e distribuiu-o por todos. A minha tia fazia os pratos e entregava-os. Cheirava divinamente. Que venha a próxima cena.
Mara Cepeda
in:nordestecomcarinho.blogspot.com
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(Henrique Martins)
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Os meus parabéns à autora por esta descrição magnífica de um revivalismo emocionante. Não é a ilusão das grandes cidades que trazem a felicidade às pessoas. Encontra-se, a maior parte das vezes, nas coisas simples que muitas vezes desprezamos. O regresso ao escano e às vivências que nos proporcionaram as emoções de uma vida com sentido é um símbolo dessa mudança que só encontramos nas origens.
ResponderEliminarObrigada Daniel,
ResponderEliminarA felicidade é feita de pequenas e simples coisas. A vida louca, no sentido de não se ter tempo para viver, das grandes cidades, conduz à impessoalidade e ao desapego do que é, verdadeiramente importante.
As minhas vivências aldeãs são poucas, muito poucas, no entanto, marcaram-me para toda a vida. A ruralidade, a simplicidade e o dolce fare niente em muda contemplação da paisagem, preenche os vazios que não conseguimos preencher, cada vez mais exigentes do ter e querer.
Mara Cepeda