terça-feira, 16 de junho de 2015

A Província de Trás-os-Montes no século XVIII

2. DIVISÃO ADMINISTRATIVA CIVIL E SUAS CARACTERÍSTICAS GERAIS
A Província de Trás-os-Montes é um dos 6 grandes quadros territoriais em que se divide o espaço político-administrativo nacional. No passado, mais que no presente, a Província era uma referência fundamental, social e regional, com acentuado conteúdo histórico. Mas ela nunca constituiu um marcado quadro geográfico.

Se é certo que os limites provinciais se ajustam em grande medida a estes, pelos limites com as Províncias do Minho e da Beira, a Província transmontana comunga muitas das características naturais e geográficas destas outras províncias limítrofes.

A Província transmontana nunca constituiu também uma unidade política. Como se sabe a Província não integra nem nunca integrou qualquer instituição ou governo de cunho e dimensão provincial. As duas entidades ou organizações que então têm apetência a uma maior aproximação à escala da Província são o governo militar e o governo religioso.
O governo militar integra, com efeito, Trás-os-Montes na Província de Armas de Trás-os Montes, com comando provincial e com importantes praças militares, ao nível sobretudo do espaço fronteiriço como Chaves, Bragança, Miranda. A posição fronteiriça, mas também excêntrica no extremo NE do território, levou a Monarquia portuguesa a prestar uma particular atenção à organização militar provincial, mas também ao ordenamento diocesano. Os limites da Província de Trás-os-Montes confinantes com Espanha e Castela constituirão, com efeito, porta de entrada ou ameaça de invasões do território nacional, mas também palco de constantes lutas fronteiriças, pelo que era necessário um particular desenvolvimento do aparelho militar provincial e fronteiriço, que defendesse as fronteiras político militares, mas também as económicas contra o contrabando e a circulação de trânsfugas e foragidos aos poderes de ambas as nacionalidades.


A organização e o elemento militar terão, por isso, uma importância muito desenvolvida no governo político-militar mas também na constituição e vida da sociedade transmontana, actuando em diversos planos da vida política e social das suas comunidades e organizações políticas, particularmente actuantes nos postos superiores da administração pública ou senhorial e da organização concelhia dos municípios fronteiriços. Em alguns períodos históricos, por este facto, a Província transmontana ganhará uma especial evidência na vida nacional, designadamente nos Tempos Modernos, nos períodos correspondentes à Guerra da Restauração e Independência (1640-1668), Episódios da Guerra da Sucessão de Espanha (1703-1715), da Guerra dos Sete Anos (1762) e, já para o fim do Antigo Regime, nas Invasões Francesas (1801 e 1807-10). Mas também aquando das dissenssões e lutas políticas internas entre Absolutistas e Liberais depois de 1820 e ao longo do século XIX que trouxeram Trás-os-Montes ao 1.º plano do palco da luta política e militar, em grande medida em resultado da actuação e papel das suas organizações e elementos militares [39, 77].

A outra instituição e quadro governativo regional que mais se aproxima da Província é correspondente à divisão e organização eclesiástica, neste caso, a diocese bracarense.

Mas a área geográfica da diocese bracarense extravasa então largamente a Província, cobrindo praticamente todo o território do Minho e Trás-os-Montes, constituindo uma forte unidade político-religiosa a partir de Braga, capital da diocese e cabeça religiosa de toda a região a norte do Porto e do Douro, constituindo o que tem sido chamado um «poder eclesiástico regional» [168]. O primeiro desmembramento deste conjunto regional data dos primórdios da Época Moderna, de 1545, com a criação da Diocese de Miranda no nordeste da Província na sequência da proposta de D. João III a Roma, que depois seria transferida para Bragança.

Mais tarde, já no século XX, a diocese bracarense sofrerá um segundo desmembramento com a criação da Diocese de Vila Real em 1922. Finalmente a criação da diocese de Viana do Castelo em 1977 retirar-lhe-á a parte do território correspondente ao Distrito de Viana do Castelo, das terras do Alto Minho.

A Província transmontana conta em 1527-1532 cerca de 11.493 pessoas que representam cerca de 12% do total da população portuguesa. Trata-se de um volume de população superior em número de fogos ao das Províncias do Alentejo, da Estremadura e da Beira, mas com número inferior à do Minho e do Algarve. A Província estende-se por cerca de 35.629 km2, o que corresponde a 12,6% do território nacional. Corresponde-lhe uma densidade de 3.1 fogos por km2, equivalente à média nacional que é de 3,2 por km2. Com maior densidade colocam-se as médias das Províncias do Minho e Beira, muito próximo a Estremadura e aquém o Algarve e o Alentejo [144]. Uma das características principais da organização administrativa e divisão territorial portuguesa de Antigo Regime, isto é, anterior às reformas político-administrativas liberais de 1832-36, é a grande desigualdade das circunscrições em termos de superfície e população, mas também a debilidade geral de meios administrativos, humanos e recursos correspondentes, nos casos mais débeis configurados a exíguos territórios de administração concelhia. Se as comarcas e as provedorias apresentam apesar de tudo maior aproximação em termos de dimensão média provincial e nacional – as comarcas integram diversos concelhos e as provedorias diversas comarcas – as desigualdades são enormíssimas ao nível da divisão concelhia, como se pode verificar da observação do mapa dos concelhos portugueses de Antigo Regime [248, 251].
A dimensão média dos concelhos portugueses é, de facto, conforme dados dos inícios do século XIX, muito pequena. Cada concelho conta, em média, cerca de 938 fogos (isto é, cerca de 3.752 habitantes, multiplicando o fogo pelo índice de 4 moradores) e 106 km2 de superfície mas com assinaláveis diferenças de Província para Província. A Reforma de 1836 reduzindo a cerca de metade o número de concelhos haveria de trazer um crescimento médio significativo aos municípios portugueses, que ganharão então, a grande maioria deles, aproximadamente a extensão geográfica que hoje ostentam.
Mas se as disparidades são significativas de Província para Província, o mesmo se verifica no interior das Províncias. No todo nacional os concelhos transmontanos ocupam um lugar intermédio tanto no que diz respeito à área média dos concelhos, como à média por fogos.


No que diz respeito ao número médio de fogos por concelho, a Província vem em 4.º lugar, depois do Algarve, Estremadura (com Lisboa) e Minho: No que diz respeito à extensão geográfica, as médias não deixam também de registar as grandes diferenças provinciais. A extensão média dos concelhos transmontanos está a meio caminho entre a realidade minhota e beirã, onde predomina o pequeno e médio município e os concelhos do Sul e Algarve onde atingem maior dimensão em relação com o latifundismo e a rarefacção demográfica. A extensão média dos concelhos transmontanos está a meio caminho entre a realidade minhota e beirã onde predomina o pequeno e médio município. A estatística recolhida por Columbano Pinto Ribeiro de Castro, para 1796, fornece os seguintes elementos e distribuição de população por concelhos no interior das quatro comarcas da Província Transmontana, permitindo distinguir o conjunto dos concelhos de Miranda e Moncorvo de mais baixos valores médios de população concelhia, do de Bragança e Vila Real, de valores mais elevados. Mas tais valores médios escondem ainda grandes desigualdades concelhias no interior das comarcas.

Atente-se no caso da comarca de Bragança, que como se sabe, se estende pela parte ocidental da Província, integrando o vasto concelho de Chaves. Bragança e Chaves à cabeça com 7.663 e 7.638 fogos, respectivamente, são indiscutivelmente os grandes concelhos e centros urbanos da comarca; a uma já certa distância ficam Montalegre e Outeiro com 3.609 e 1.068 fogos, respectivamente. Os restantes 16 concelhos têm uma população aquém de 280 fogos. Há mesmo 6 micro-concelhos, com população aquém de 50 fogos: Gostei, Meixedo, Padroso, Padornelos, Val de Nogueira e Vila Franca que não se elevam acima das mais pequenas paróquias. Está-se, nestes casos, em presença de uma realidade municipal extremamente débil, quer do ponto de vista da sua dimensão geográfica, quer da força demográfica que impossibilita compor em toda a extensão um poder e organização municipal suficientemente expressivo.
Neles falta um território e uma população para o exercício de jurisdição e a realização das receitas para levar a cabo um mínimo de tarefas. Como neles é impossível também recrutar e encontrar gente capaz de servir os cargos concelhios adentro do figurino e das exigências que o Estado Moderno do tempo do Absolutismo ou do Despotismo dos finais do século XVIII exige para a administração municipal, em conformidade com as tarefas que lhe impõe, designadamente de uma administração e justiça feita por letrados ou homens de leis capazes de ler e aplicar o ordenamento legal público. «Pessoas literárias» só as registou Columbano Ribeiro de Castro [181] para Bragança, Chaves, Montalegre e uma ou outra em Negrelos, Outeiro, Ruivães e Val de Prados. Nobreza (incluindo alto clero), eventualmente até burguesia para integrar os cargos políticos da governança concelhia, que era a partir da qual os concelhos se integravam no universo da mais alta Sociedade Civil e Política da Monarquia, em número significativo também, só nestas terras maiores.
A pequenês e exiguidade demográfica e social de recursos humanos, é expressão muito directa e está correlacionada com a grande debilidade económica. Ela pode desde logo ser medida pelo nível dos rendimentos próprios concelhios.


São realmente diminutíssimos, em média, os rendimentos próprios dos municípios transmontanos. 144.125 réis para pouco mais chega do que para pagar numa câmara urbana, o ordenado de juiz de fora, do escrivão da camara, às vezes a propina dos vereadores.

Mas também aqui o nível das receitas próprias das câmaras é muito variável e desigual, apresentando, em regra, as câmaras de municípios urbanos (assentes sobre vilas e cidades) a que preside um juiz-de-fora e outros magistrados régios, mais elevados níveis de rendimentos.


Ainda que se considere que estes valores vão sub-avaliados, de qualquer modo são efectivamente muito minguados os rendimentos próprios municipais. No total da comarca brigantina renderam 1.243.200 réis, que significam 1,3% dos dízimos eclesiásticos e 12,3% da décima, e 7,4% das sisas, impostos públicos (régios). Tal serve para medir e situar a força deste municipalismo no contexto das demais instituições sociais e políticas.

Poder-se-ia concluir daqui, isto é, do baixíssimo nível de rendimentos, que a carga fiscal municipal e sua capitação sobre a população concelhia era também reduzida. Mas a realidade nem sempre vai no mesmo sentido. É que quer o funcionalismo municipal quer o local, em especial os rendeiros e vintaneiros que participam na cobrança das rendas, sobretudo das coimas, recebem legalmente um terço da cobrança (mas ilegal e abusivamente ainda mais) o que os torna participantes e interessados na cobrança e realização da receita. Tal tem como principal consequência a pressão para a maior realização possível de receitas camarárias, em especial das coimas ou condenações. Ora em Trás-os-Montes, os municípios dependem essencialmente destas rendas o que é certamente também o resultado dos interesses da administração e funcionalismo municipal. Por isso se compreende também porque é que as coimas e condenações são a principal causa da queixa dos povos e tornam os municípios e seus camaristas, os vintaneiros e os rendeiros, profundamente odiados pelos povos. Que o digam o corregedor José António de Sá [229] e outros que tiveram de se confrontar e dirimir as queixas e as revoltas dos povos contra estes abusos.


Noutras câmaras que assentam os seus rendimentos em ingressos de outra origem (rendas de propriedades e herdades, ou dos foros e baldios, rendas de impostos sobre o consumo), estes abusos, não deixando de se verificar, são menores, porque o recurso às encoimações e seu forçamento é também menor.

Outras características marcantes desta organização e divisão administrativa antiga são a descontinuidade geográfica e a diversidade de estatutos jurídico-políticos das unidades administrativas territoriais, cujos poderes e jurisdições se cruzam e entrechocam [248]. Eles estão bem patentes ao nível da realidade administrativa e judicial da Província Transmontana.
A descontinuidade geográfica é aqui uma realidade desde logo patente ao nível da divisão comarcã.
Ela verifica-se no desenho geográfico da comarca de Bragança, que se distribui por duas grandes áreas descontínuas: uma desenvolvendo-se a partir de Bragança, em Trás-os-Montes Oriental; outra, desenvolvendo-se a partir de Chaves, em Trás-os-Montes Ocidental. Estas duas áreas constituem praticamente duas comarcas em uma, com as evidentes dificuldades para o exercício da actividade do corregedor (ouvidor). Daí que esta divisão geográfica da comarca esteja na base do funcionamento da actividade correccional a dois tempos, feita a partir de Chaves e Bragança, transformadas ambas em quase cabeça de comarca: nos primeiros 6 meses do ano o corregedor servia e transportava-se para a banda ocidental da comarca, nos outros 6 meses actuava na banda oriental [39]. São evidentes as dificuldadesdecorrente do exercício desta jurisdição correccional por parte do ouvidor que se traduzia, essencialmente, numa mais fraca, débil e descontínua presença deste magistrado junto das populações e cuja actuação é fundamental ao bom funcionamento da vida político-administrativa territorial, municipal e concelhia, nesta antiga administração municipal e territorial. Tal divisão e funcionamento contribuiu também, sem dúvida, para uma efectiva divisão administrativa do território flaviense e para fixar uma relativa autonomia e independência desta parte ocidental da comarca, liderada a partir de Chaves e fixar-lhe assim uma personalidade político-administrativa própria, não só na área da comarca brigantina, mas no próprio ordenamento político-territorial transmontano. Se a divisão comarcã, pela sua descontinuidade não favorece uma boa administração, também não concorre para a unidade provincial o desenho das Provedorias. É certo que é bem menos importante o papel dos Provedores e das Provedorias na administração local e provincial. Eles revelam-se sobretudo importantes para a organização económica e financeira da Coroa, já que estes são magistrados cuja tarefa essencial é fiscalizar a cobrança e a centralização das receitas públicas e concelhias.
O território transmontano está dividido em três Provedorias, a saber, Miranda, Moncorvo e
Guimarães, que organizam de um modo mais regular e racional, sem descontinuidades territoriais, o espaço da Província em três grandes espaços, o oriental, o central e ocidental, sobrepondo-se às comarcas e ultrapassando-as. Mas o desenho do território das Provedorias configura mesmo uma articulação do espaço em direcção a áreas que extravasam, na direcção Sul, o território da Província transmontana.

O que é particularmente evidente no Trás-os-Montes ocidental, onde pela Provedoria de Guimarães o território desta parte da Província se articulará mais intensamente com a Província e território Minhoto.

Esta articulação promoverá também um contacto mais intenso desta parte da Província com Guimarães, o território vimaranense e bracarense. Esta aproximação administrativa associada às mais fáceis ligações terrestres rodoviárias perpendiculares neste trato do território, promoverão uma grande aproximação social e territorial, que extravasa o quadro da divisão provincial e comarcã que aliás sempre emergirá quando se pensa o reordenamento político-administrativo desta parte do território do Norte de Portugal.
A irracionalidade da divisão administrativa – bem patente na divisão das comarcas – deve-se em grande medida à forte presença no território da ordem senhorial que disputa à Coroa, o domínio e o senhorio político de algumas comarcas e muitos concelhos, coutos e honras. O exercício de diferentes poderes e jurisdições nas comarcas torna, efectivamente, o exercício do poder político e o funcionamento da administração numa realidade muito complexa, muito competitiva e sobretudo muito conflitual, de que os principais prejudicados são os povos e as comunidades administradas.
O exercício do poder correccional na Província transmontana distribui-se entre 3 grandes donatarios diferentes, ainda que não absolutamente concorrentes porque muito ligados entre si nas pessoas dos seus titulares: os corregedores apresentados pela Coroa para as comarcas régias de Miranda e Moncorvo; o ouvidor da comarca de Bragança, apresentado pela Casa de Bragança (Casa do Príncipe, filho primogénito herdeiro da Coroa) e o ouvidor da comarca de Vila Real, apresentado pela Casa do Infantado (dos Infantes, filhos secundogénitos do Rei). Tal não quer dizer que numa ou noutra terra se não exerçam outras competências correccionais como as que o ouvidor de Braga – posto pelo Arcebispo de Braga – exerce nos seus coutos de Dornelas e Ervededo, encravados na área territorial da comarca de Bragança, as do ouvidor de Alfândega da Fé da Casa de Távora – que se exerce em 14 vilas, 9 das quais na Província de Trás-os-Montes – e ainda os de outros mais pequenos donatarios. Deste ponto de vista, dos grandes donatários e senhorios comarcãos, a Província está bem integrada na Coroa (contando para tal com a contribuição das casas régias de Bragança, da Rainha e do Infantado) e não sofre grande concorrência política de outros grandes senhorios particulares, a saber, dos Grandes ou da Igreja.

in:repositorium.sdum.uminho.pt

1 comentário:

  1. Um relato histórico muito minucioso da Província de Tras os Montes. Indispensável a leitura para quem quiser familiarizar-se com a história político-administrativa desta região. Sem conhecermos o nosso passado nunca poderemos pespectivar o futuro. Os meus parabéns pela divulgação cultural que aqui nos deixa.

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