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SOBRE O BLOGUE:
Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço.
A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)
(Henrique Martins)
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N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.
quarta-feira, 22 de julho de 2015
A Lenda da Fraga Amarela
Por: João de Sá
A Fraga Amarela é uma disforme protuberância granítica postada a cerca de uma légua da Vila, para as bandas do poente, em terras bravias onde só medram urzes e carquejas.
Lugar ermo, sem a pausa verde de uma courela. Cenário de vértices de granito e xisto. Paisagem máscula, apenas percorrida por caçador furtivo ou pegureiro solitário; sobrevoada, a espaços, por aves de rapina ávidas do cadáver insepulto de uma rês.
De noite, nem vivalma nas proximidades. Viandante que demandasse o burgo em busca de médico ou veterinário passava de longe, embora o desvio lhe prolongasse a jornada.
Mesmo durante o dia, ninguém se acercava do rochedo, como se um círculo de fogo tivesse erguido limites proibidos em torno dele. Um solene temor pairava naquele espaço de enfeitiçamento. Do seu corpo mordido pelo tempo libertava-se um misto de maldição e ventura.
O imaginar das gentes simples fora engrandecendo uma lenda que emprestava ao penedo um dualismo de vida ou de morte: o espírito do Bem escondera nele um incalculável tesouro, enquanto o génio do Mal ali deixara um mortífero veneno. Ninguém suspeitava, porém, a que face da pedra correspondia a riqueza desejada por tantos.
A lenda era mais antiga do que a Fonte e o Arco dionisíaco da Vila.
Provavelmente fora ideada por imaginativo sarraceno, em hora de saudade das paisagens morenas do Sul. Novos e velhos acalentaram-na depois, através das idades, incapazes de um gesto de intrepidez que quebrasse o encantamento.
As crianças ouviram-na à lareira, nas noites de Inverno, e nunca mais esqueceram a alternativa proposta: a fortuna ou a morte. E os adolescentes, querendo ostentar afoiteza, mascaravam a sua pusilanimidade com um encolher de ombros e algumas balbuciações a sugerir descrença e desinteresse pelo mágico oferecimento.
Recordavam-se certas mortes ali ocorridas. A do Chico pedreiro, que uma madrugada abalara com alavanca, malho e guilhos, disposto a violar o segredo, sem que voltasse a haver notícias dele. A do Manuel lenhador, que, dizia-se, apenas sentira nas mãos as arestas da fraga, logo ficara pulverizado na agrestia da paisagem. A da Vicência, ocorrida
quando contemplava mudamente o sortilégio de pedra, numa raiva surda de inventar estrelas na fundura de um negrume que se lhe colara à alma.
Mercê de todas estas ocorrências, o penhasco tornara-se o espelho dos bons e maus sentimentos das gentes do lugar. Espécie de esfinge.
Trágica divindade numa aspereza onde ninguém se aventurava a dar passada. Entrar inteiro ali equivalia ao voluntário fretamento da barca do percurso sem retorno, desconhecendo-se o rosto e os desígnios do barqueiro. E o que todos temiam, sobremaneira, era precisamente o peso das suas culpas projectadas no mutismo do colosso de granito.
Quantos sonhos ganharam forma para além dos olhos, numa contemplação fugidia, ante a hirteza da pedra! É que o invisível caudal do êxito podia vir a ser um bálsamo sobre as chagas dos seus malogros. O raiar de um astro no horizonte de uma interminável sucessão de quedas.
O termo da humilhação de jamais passarem do último degrau, do tributo pago ao destino pelas suas vidas rastejantes.
Quantos remorsos vieram à tona de charcos interiores, espicaçados pelo perfil anguloso da rocha! Ao contemplarem-na, de longe, as almas voltavam-se do avesso. Quase se materializavam. E azedumes antigos subiam às gargantas, logo regressando aos pegos do rancor, mal se apagava na distância a implacável potestade.
Um dia, numa tarde de Agosto emoldurada por uma claridade faiscante de eiras, Altino chegou à Vila. Ninguém sabia quem era nem donde vinha. Como bilhete de identidade, o seu próprio corpo – dezoito anos afeiçoados pelos vaivéns de outras paragens. Um ritmo de gazela no andar. Olhos e mãos de violador de encantos.
O jovem foi ficando, não obstante dizer-se que levantaria âncora na primeira oportunidade. Comia hoje aqui, amanhã além, a troco de serviços casuais. Argumentava que também as aves não empenhavam a vagabundagem dos seus corpos à fatalidade incómoda da subsistência.
Espírito tranquilo, sem conflitos, Altino nunca se plasmou à paisagem humana da Vila. Havia nele algo do nomadismo dos ventos. Gostava de dormir ao ar livre, tendo por tecto o céu, pois sentia-se opresso na estreitura de um quarto. Mas, ainda que alheio às quezílias das gentes do seu fortuito ancoradouro, também a lenda da Fraga Amarela repassou de inquietude a sua propensão para o assombro.
Numa manhã de Setembro, Altino demandou a região interdita.
Levava nos olhos a cristalinidade das nascentes. E o ritmo do seu corpo não passava de um acorde do canto obscuro da própria terra.
Chegado às cercanias do rochedo, sentiu-se dominado por um temor desconhecido. Um silêncio cavo abatia-se sobre as coisas, insulando-as, revestindo-as de maior alheamento. Grossas nuvens: franjadas de chumbo, pairavam no alto.
Depois, imprevistamente, o vento ergueu-se e engolfou-se nas galerias de pedra, vociferando, partindo algemas que sempre o acorrentaram, cujos estilhaços fendiam os ares. Liberto, zunia nos gumes e nos buracos, sublevando para além do círculo embruxado, a paz dos campos conformados com a mesquinhez do seu destino. E em breve os trovões, os relâmpagos e a chuva se associaram à insolência dos ventos.
Encharcado até aos ossos, tiritando, Altino procurou um refúgio. A Fraga Amarela estava a dois passos, inamovível, indiferenteà rebelião dos elementos, oferecendo-se à sua urgência de abrigo.
Hesitou por instantes, manietado pelas palavras que ouvira e lhe ziguezagueavam no sangue, dilatando-lhe as veias. Mas num rasgo de audácia, impelido por uma força que ele mesmo desconhecia, correu resolutamente para a enorme caverna que se abrira na base da rocha.
Ao contrário do que esperava, nada aconteceu. Tudo permanecia como dantes. Nem experimentou o travo do veneno nem o deslumbramento do ouro. E à medida que se foi acostumando à obscuridade da gruta, verificou que não estava só.
Pombas e milhafres, lobos e cordeiros, coelhos e cães dispunham-se pelos cantos, semiadormecidos, e punham os olhos mansos na abertura do covil, como no primeiro alvorecer da terra, muito antes do gesto de sangue que cavou abismos entre os corações das feras e dos homens.
E de súbito as nuvens fenderam-se no espaço, e um raio de sol veio dourar as profundezas da caverna.
João de Sá (1928-2012)
Faleceu, em 23 de Fevereiro de 2012. Nome grande das letras transmontanas, nascido em Vila Flor.
Integrado na antologia A Terra de Duas Línguas (2011), como forma de homenagem a um poeta, ficcionista e memorialista discreto e genuíno, fica a lembrança do seu trato amável, a par de obras que urgem um estudo aprofundado.
Principais títulos: Flores para Vila Flor (1996); Um caminho entre as oliveiras (1997); Mãe-d’Água. Ficções e memórias (2003); Assalto a uma cidade feliz (2006); Vila à flor dos montes (2008); Vozes além da fala (2008); E de repente é noite (2009); Pelo sinal da terra (2010); e Cantos da montanha (2010).
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