Local: BRAGANÇA
No fundo de um valle de Trás-os-Montes corre, entre choupos esguios como galgos, um rio manso. Mergulham nas aguas as rodas de madeira das azenhas, que gemem e suam a levar a agua ás terras de milho. A’ noite, ao luar, o rio é a distancia um espelho limpido, que Deus pôs na face da terra, para a lua se vêr nelle.
Foi ahi que, certa madrugada, se encontraram algumas Mouras encantadas, — que ellas tambem viajam nestas bemditas bellezas das terras de Portugal. Viram de longe aquelle maravilhoso lençol de rio, onde se deitava o luar; para lá foram. Corriam para lá, como as borboletas vôam para a luz. Umas eram louras e brancas como açucenas, outras morenas e frágeis como certas tulipas de porte airoso; todas tinham a belleza dos encantos e a mocidade clara das bellezas eternas.
Sentaram-se na relva, depois de se mirarem no rio. Desprendidos os cabelos poisavam-lhes nos hombros. Depois de rirem muito, e depois de jogarem as prendas e os disparates, que seriam estrellas baloiçantes nos labios d’ellas, puseram-se a contar historias dos seus encantos.
— Conta primeiro tu a tua historia, Flôr da Aurora.
*
A esta ordem, que lhe deu a branca Borboleta de Sol, contou Flôr da Aurora a sua vida.
— Sou da terra das amendoeiras sempre em flor, onde o sol é de ouro num ceu de damasco azul, — disse ella, e principiou a narração.
O pae era velho, mouro de raça que muito lhe queria, juntando ao amor de pae a altiva dignidade de sua raça.
Ella, muito nova ainda, era muito amiga do pae e fazia por elle quanto lhe mandasse. Mãe, não a conhecera nunca; faltava-lhe esse amôr, que, por milagre especial, transforma um mundo em um valle de encantos.
Veio uma noite, noite tremenda, que, já tão longe, lhe mettia ainda um mêdo horrivel. Estava escura como um sonho. Ao andar, quando os pés tocavam o chão, a terra vacilava nos seus fundamentos. Respirava-se com mêdo aquelle ár em que se não via nada; os olhos iam abertos na sombra do nada cégos com vista que não apurava objectos. No céo não havia uma estrella. O mundo era uma solidão escura. A Moura sentia a vida, porque o pae a levava pelo braço. Tropeçavam a cada passo.
O seu velho pae conduziu-a pela beira de um regato, que ela ouviu borbulhar no fundo macio do leito. Perto do sitio onde pararam, a agua batia contra o pilar sobrevivente de uma ponte, que os Mouros tinham construido; lamentava-se o ribeiro, ao desviar-se das pedras duras do pilar. Como se a agua se acendesse, no contacto de gotas a chocar contra tantas outras gotas, a Moura viu o rio encher-se de reflexos. Ela então fallou, dirigindo-se ao pae, ternamente.
— Que me quereis, meu Pae, que a tão sombrio lugar me trazeis! Tenho medo. Sinto-me tremer. Não sei o que adivinho, que receio negro me invade e me faz tremer!
Respondeu-lhe o pae, depois de fazer parar a filha junto de uma larga chapada de matto, que sahía da terra em um maciço compacto e negro. A voz do velho era tremula de commoção, e maior temor produziu no espirito da filha.
— Vaes aqui ficar, meu Amor, meu unico Amor, vida da minha vida. Allah o quere e eu lhe obedeço. Lembra-te sempre do que deves ao nome e á honra de teus antepassados. Ficarás aqui, até que o matto, onde estamos e te vou deixar, seja roçado O matto será cortado. No mesmo chão será feita uma plantação de oregãos. Os oregãos serão corta dos e arrancados. Uma vinha os substituirá. E a vinha envelhecerá. Até que um dia, já são velhas as vides que nem fructo darão, serás desencantada. Voltarás nesse tempo aos aduares dos teus antepassados, onde te esperaremos, como as mães esperam impacientemente o filho que vae nascer.
A Moura chorou muito. Nunca o céo chorou em chuva o que os olhos da Moura encantada choraram de lagrimas desoladas e dolorosas, nas sombras tumulares de aquella noite. O pae apertou-a mais uma vez contra o coração e desappareceu na treva nocturna, sem que dia o podesse reter no derradeiro abraço.
— Pae, pae, — bradou ela com desespero, e só lhe respondeu o murmurio das aguas do ribeiro, a seus pés. A noite fechára-lhe toda a vida passada, num tumulo de trévas densas.
E desde então vive, até que a prophecia paterna se cumpra, na solidão poetica de aquelles contornos.
— Um dia, — disse ella, — preguei uma boa partida a uma velhota. Passava por alli, nos sittios por onde eu vagueava; pedia esmola, com um ar muito recolhido, uma alcofa na mão tremula.
A Moura tinha estendido ao pé do velho pilar da ponte, onde o rio cantava canções choradas, uma esteira de figos a seccar ao sol. Admirou-se a velhota.
— Ora esta! — dizia. — Como se comprehende isto! Nem é tempo de figos, nem por aqui sequer figueiras ha! Eu já vou vêr se isto é a sério.
Approximou-se da esteira, curvou-se e tirou um punhado de figos. Vendo-os bons, metteu-os na alcôfa e pôs-se a caminho. Mais adeante apeteceu-lhe comer um figo, e qual não foi a sua surpresa, quando, ao metter a mão na alcofa, encontrou bellas moedas de ouro.
— A velha voltou atrás, — concluia a Moura, — arrependida de ter tirado tão poucos figos. Em breve a vi apparecer outra vez ao pé do pilar. Mal tinha desapparecido a esteira. Eu apressei-me a escondê-la. E a. vélha fez uma cara de mascara zangada. Ri como um estorninho.
*
A roda das Mouras coroou a historia de Flôr da Aurora com uma gargalhada feliz. Riu com vontatade. E disposeram-se todas ellas para ouvir mais contos.
*
— Tambem eu tenho uma partida como essa,— exclamou de um dos lados Vespa do Luar.
— Conta, conta, — bradaram todas para ella.
— Não ides rir, — consentiu Vespa do Luar, — como ristes com a graça de Flôr da Aurora. Mas vereis que foi uma boa pirraça.
Esta Moura vive o seu encanto pelas serras. Anda sobre os penedos como esbeltissima cabra montês. Ha por lá velhas ruínas de povoação extincta, escondidas no carrasco e na urze; o alecrim aromatiza o ar. Vespa do Luar passa por essas reliquias, sem lhes tocar, comprazendo-se de as sentir alli escondidas num esquecimento do tempo e numa ignorancia de lugar, com que comparava o seu encanto.
Um dia appareceu por alli uma rapariga. Era pobre boieira, guardadora de uma só vacca. Alli foi levar o animal, áquelle pasto perfumado, onde se devia de dar bem. Era engraçada a moça! Uma cára de personagem de Murillo, vestida num manequim de presépio, e animada com a alegria risonha e cantante de creança de mimo e de saude. Cantava e fazia meia, emquanto a vacca pastava; tudo porém deixava para perseguir uma borboleta ou uma libellula colorida.
Uma occasião faltou o leite á vacca. A boieira já não cantava; andava triste como a lua. A Moura teve pena da rapariga, e foi-lhe fallar, quando, sentada numa pedra, pensava ella com desalento na sua pouca sorte.
— Que tens tu? — preguntou-lhe Vespa do Luar, poisando-lhe a mão no hombro. A rapariga assustou-se, pois não esperava ninguem alli, e, muito admirada por vêr na sua frente uma senhora tão linda, pôs-se de joelhos, a adorá-la.
— Ergue-te e ouve, — disse-lhe com meiguice a Moura, — ninguem te faz mal, nem eu sou divindade, para se adorar.
Levantou-se a rapariga, muito receosa, olhando, sem pestanejar nem comprehender, a Moura que lhe fallava.
— Olha: tu vês aqui estas tesouras, não é verdade? São de ouro, repara bem. São bonitas, pois não são?
— São, sim, senhora, — respondeu a boieira.
— Pois bem, — propôs Vespa do Luar, — qual é mais bonita, sou eu ou as tesouras?
— Lá isso, — hesitou a rapariga, — Vossemecê é bonita, sim, mas... desculpe... as tesouras ainda o são mais.
— Gostas então mais das tesouras? Dize.
— Não se zangue commigo. Mas eu gosto muito, muito, das tesouras. Gosto mais das tesouras, explicou a boieira.
A Moura deu-lhe um presente e mandou-a embora. Cahia a tarde, e o ar esfriava. A boieira viu o presente e aceitou-o com satisfação.
— Guarda-o como recordação, — recommendou-lhe Vespa do Luar.
Foi-se a moça, a caminho de casa, tangendo a vacca. A certa altura olhou para trás, a espreitar se a Moura a veria ainda. Ia cheia de curiosidade, por descobrir o que era aquelle presente, offerecido pela desconhecida.
Como já não avistasse a Moura, tirou-o da bolsa, em que o mettera, e vira que eram carvões. Enraivecida aquella alminha simples, que parecia feita de mansidão, atirou com os carvões ao chão. Ao baterem na terra tilintaram, o que muito admirou a boieira. Procurando ella os carvões, já os não viu, e observou que se tinham transformado em moedas de ouro, a reluzirem ao sol pallido.
— Ai que era ouro! — exclamou ella, abaixando-se a apanhá-las. Mas de novo se transformaram em carvão, e uma gargalhada de troça lhe respondeu no meio das ruínas, onde crescem a urze e o carrasco, e perfuma o alecrim.
— A tola despresou o presente, porque o viu humilde como ella era; lançou-o fóra por inutil, perdeu-o, — explicou a bom rir Vespa do Luar.
*
— Historias de mal agradecidas essas! Quantas cobiças, como essas, perdem os homens pelo mundo fóra! Ora vou contar-vos uma das minhas, em que entram figos como na tua, Flor da Aurora, e ouro fino como no conto das nossas duas manas.. Não falta a ambição, —discursava Fatima.
— Que a todos perde, — exclamou Rosa do Valle-Claro.
— Quem tudo quere, tudo perde, é a lei, — fallou do lado Estrella do Cannavial.
— Nem mais, nem mais, — disseram quasí à uma todas as Mouras presentes.
— Escutae, — pediu Fatima, — lá na Serra da Estrella... — e, interrompendo-se: — não sei se lhes contei já a minha historia!
— Conte, conte, mana, — reclamaram algumas das mais attentas.
Fatima contou o seu encanto. Os palacios de seu pae tinham o esplendor das mais bellas côrtes da Hespanha, onde elle occupava o prestigio de um dos mais notaveis reis da Mourama. Rei poderoso, gostava do luxo oriental, e com requintes offerecia as suas festas. Foi em uma diversão dessas, quando o enthusiasmo excitava mais os espiritos, que os Christãos atacaram o castello real.
A surpresa foi fulminante; a azafama, em que todos se envolveram, fez-lhes perder tempo e acção. Defenderam-se brilhantemente os guerreiros do burgo mouro, aos quaes o proprio Rei deu exemplos de valentia heroica. Mas a surpresa foi tremenda e os Christãos eram muitos; os Mouros tiveram de ceder.
O Rei conseguiu fugir com a sua filha e alguns thesouros. Por isso ella estava alli a contar este episodio da sua vida.
Andaram, andaram sem cessar. Os chapins de Fatima desfizeram-se nas pedras dos caminhos; ia fatigada, quasi desfallecida. Amparava-a o Rei, cheio de compaixão com a sua alma generosa de pae. Seguiam-nos os poucos fieis, que conseguiram acompanhar o seu soberano, mas tão derreados a caminhada os levava, que elles arrastavam-se desencorajados.
De subito abriu-se um portico, deante do Rei e de Fatima. A hera descia aos festões pelas columnas de marmore, imprimindo o ar magestoso e soberbo de reposteiros senhoriaes. Para lá estendia-se um caminho ladeado de ciprestes aprumados; o chão estava calçado de pedras finas, que brilhavam como um céo de estrellas mui juntinhas. Creou animo todo o grupo de fugitivos, a quem nasceu uma alma nova.
Entraram o portico e pisaram essa avenida luminosa, cada vez mais surprehendidos; mas a surpresa subiu de ponto, quando ao fim pararam num arco deante de palacio extraordinario, admiravel de riqueza e de estylo. O luxo ressumava de toda a parte, como o fructo maduro e cheio de sol. As portas abriram-se e aquella gente, — o Rei, Fatima e a comitiva, — entrou. Conforto de prazeres do luxo, grandesa, em tudo se mostrava e a todos extasiou.
—A minha senhora espera-vos para vos receber, Grandesas, — e o creado, que veio annunciar a recepção, curvou-se com ceremonia, indicando o caminho.
— Sois vós! — bradou uma Dama de grande estado, vestida de branco, e de bom semblante, e ergueu-se do sólio, onde aguardava os visitantes.
Fatima correu de braços abertos para ella e beijou-a com amizade respeitosa.
— Sabeis quem era? — perguntou Fatima ás outras Mouras, que a escutavam.
— Dizei.
— Pois era minha madrinha, a Fada Bondade.
O palacio estava escondido aos olhos de toda a gente, e só os bons e os infelizes tinham o condão de o encontrar, ainda assim nos dias em que precisasse de auxilio, porque a fada os protegia. Nesse conforto delicioso e bom se conservaram todos por alguns dias, o tempo necessario para descansarem, porque não podiam lá ficar, excepto Fátima, que, protegida pela madrinha, ficou até os Mouros voltarem um dia a Portugal.
— E’ este o meu encanto. Só de noite sáio do palacio da Fada Bondade. E lá estarei até meu Pae voltar.
Uma lagrima de saudade cahiu-lhe pelas faces, e brilhou como estrella que foge. Reagiu e, com um sorriso, disse:
— Agora vêde como faço ás vezes as minhas pirraças.
Um dia approximou-se do sitio, onde Fatima estava, uma boa mulher. Passava por alli para ir á povoação vizinha. Sentou-se, cansada como ia, e pôs-se a comer um pedaço de pão. Fatima conhecia-a, pois recompensou-lhe os actos de bondade que praticava, e compadeceu-se de a ver alli cansada e pobre, A mulher, olhando despreoccupadamente para o lado, deparou com um estendal de figos seccos. Procurou o dono, sem o encontrar; e, convencida de que não pertenciam a ninguem, estando para aquelle logar abandonados, decidiu-se a encher de elles um cesto que trazia.
Depois seguiu caminho. Quando chegou a casa, foi buscar os figos ao cêsto. Mas, — oh surpresa! — era extraordinario! O cêsto estava cheio de pedras preciosas, de peças de ouro, uma fortuna que a tirava de miserias e ajudava a praticar as suas obras de caridade.
Não se contentou de tamanha riqueza. Comprehendeu que havia milagroso favor, que tinha transformado os figos seccos em ouro e joias. A ambição começou a roê-la, quís mais. Não lhe chegava aquelle thesouro já fabuloso, a ella que, antes de sahir de casa, era pobre, extremamente pobre. E foi á Serra procurar o resto dos figos, afim de os levar consigo para casa. Mas estes tinham desapparecido. Então, ao chegar ao local, onde os vira, ficou aterrada ao ouvir uma gargalhada escarninha, e uma voz que lhe cantou com ironia:
Era teu tudo o que viste;
Agora tornaste em vão!
Não te perdeu a pobresa;
Póde matar-te a ambição!
A mulher fugiu, assustada; na precipitação da fuga, ia cahindo aos trambulhões pela serra abaixo, e chegou a casa moída.
— Não quis tirar-lhe o que lhe dei, — concluiu Fatima — deixei-lho, que, para castigo, já tinha a sua conta. E eu gostei de dar uma lição, pagando-a com um favor. Dei-a e paguei-a. Só a cara da mulher quando deu pelo desapparecimento dos figos, que não levou! E os saltos de pélla, que dava, enrolada, pela serra abaixo!
*
— Cara por cara, vou contar-vos o que vi a dois rapazes, com quem um dia m encontrei, — disse Branca de Leite.
Um dia, Branca de Leite encontrou dois rapazes estendidos no chão, á beira de um rio. Era verão, o calor suffocava, e elles iam tomar banho, mas, como estivessem cansados, deitaram-se a dormir. Moura não os via e quasi tropeçava num de elles; ambos pareciam adormecidos já; no entanto, este que estava mais proximo da Moura, sentiu passos e abriu os olhos. Viu então uma rapariga formosa, que o fitava com uns olhos profundissimos, dolorosos como luz forte; contra o peito apertava um guarda-joias, como quem traz coisa de especial estimação. O rapaz, de tão assustado que ficou, lembrava-se de acordar o companheiro, mas a Moura dissuadiu-o.
— Não o chames, — disse-lhe Branca de Leite,— não acordará, emquanto eu estiver aqui.
Branca de Leite contou ao rapaz o seu encantamento O pae era um rei mouro, muito rispido e mau. Tinha ella um primo a quem queria muito, desde pequeninos os dois. Certo dia, o primo foi pedi-la ao pae, para casar com ella. O Rei barafustou encolerizado, negando o consentimento pedido. Ella, por sua conta, declarou ao pae que não casava com outro, fosse quem fosse; e o pae castigou-a, encantando-a em cobra.
Queres-me desencantar? — preguntou ao rapaz.
Estáva luxuosamente vestida. Dir-se-hia que fazia horas para um serão nos paços do senhor Rei, seu pae. Cercava-lhe o pescoço um grande collar de ouro, que lhe cahia a meio do peito, pesadamente. Ella devia de apparecer em forma de touro, que iria contra o rapaz, sendo necessario que elle não tivesse medo; depois, appareceria como cobra enorme a tentar comê-lo e não podia elle fugir, nem mostrar mêdo, se deveras lhe quisesse quebrar o encanto; pela terceira vez...
— Pela terceira vez, volto na figura de uma menina de dezoito annos, — explicava a Moura, —beijo-te na testa, e entrego-te esta caixa e todas as joias. Serás o homem mais rico do mundo, e eu ficarei livre.
— E, se tiver medo do touro e da cobra? — preguntou o rapaz.
— Redobras o encanto.
Calaram-se os dois. Por fim a Moura, depois de tentar sugestionar o moço com os attractivos da belleza e da ambição das riquezas promettidas, indagou de elle:
— Não me respondes?
— Não tenho forças para tão grande façanha, — respondeu elle, e, ao olhar para o companheiro que se movia, perdeu a Moura de vista, sentindo-a mergulhar no rio.
Estranhou o dorminhoco as feições alteradas do outro. Ahi entra este a contar a apparição da Moura e aquelle a rir-se, não acreditando. Um a rir-se, o outro ainda excitado pela conversação da Moura, foi um dialogo de caretas impagaveis.
*
— Não fiques sem resposta. Que a historia do leão se deu commigo tambem. Eu tenho de ser desencantada por um homem, que não receie o leão que o ataque.
Fallava agora Lyrio da Fonte.
Estava encantada em um jardim, guardada por um leão. Um dia, pediu a um poeta, que colhia flores naquelle jardim, que a livrasse do leão. Não o receasse. Accedeu o poeta, mas, quando o leão se dirigiu a elle, primeiro de rastos, depois avançando com nobresa, de cabeça alta, a dentuça toda em arreganho sumiu-se por encanto, e o leão, saltando sobre a presa, bateu contra a parede a que o homem se encostára, ao recuar.
Ella tinha dito ao poeta que, ter medo, era ser devorado.
Ao vê-lo recuar, teve-o por perdido. Ficou admirada de o vêr desapparecer, quando o leão o ia tragar. Curiosamente, procurou, e descobriu que elle tinha fugido de gatas e se escondera detrás de uma açucena secca.
— Se o homem tem coragem, volta atrás e dá cabo do leão. Este, ao dar pelo facto, apesar da dôr que lhe causou o choque na parede, riu tanto, tanto, que já apertava o ventre com as mãos. Pois o homem sumia-se atrás da açucena. Eu seria desencantada a rir.
A sociedade das Mouras ria nervosamente, excitada por tanto rir. Era uma gargalhada geral e pegada, de ventania aguda num cannavial. No auge da boa disposição, provocada pelo riso aberto e franco, ouviu-se um berro, seguido de outros dois. Calaram-se todas por encanto. Foi um cataclismo. Após a primeira surpresa houve consciencia do acontecimento. Levantaram-se á uma, como se uma unica mola as movesse a todas. Momentos de terror aquelles! Entreolhavam-se entre si, em silencio. Até mêdo tinham de fallar!
Um vulto corria no luar; projectava-se a mancha movel do seu perfil sobre a mancha immovel da vegetação, estendida ao ar da noite. Só os berros ouvidos podiam ter-lhes indicado a proveniencia e o logar.
Apenas uma das Mouras teve a presença de espirito sufficiente, para indagar da direcção dos berros. E, ao verificá-la, todas já de pé, á escuta, hesitantes, como um bando de tentelhões, assustadas, bradou apressadamente, nervosamente.
— A Zorra Berradeira!
Foi um grito de angustia. Tudo se tinha passado em um instante. Tambem todas tinham comprehendido a situação, mas o brado de uma d’ellas, fosse ella qual fosse, deu o impulso á decisão. Levantou o vôo todo aquelle bando de estorninhos. Debandaram, fugiram em sentido opposto ao da Zorra Berradeira.
A Zorra Berradeira foi Moura encantada, e quem sabe que lindos thesouros e admiraveis bellezas tinha como predicados do seu encantamento! Uma occasião faltou aos seus deveres com Allah, infringiu as regras impostas pelo encanto, a que devia de obedecer. Foi desobediente, e o castigo não se fez esperar. Com figura de mulher, que de longe parece urna cabra negra e de perto um abutre asqueroso, anda pelos campos e pelos cabeços, de noite, altas horas, em berros tremendos, que se ouvem por todos os arredores com signal de desgraça.
A Zorra Berradeira com os seus berros estridulos afugentou a assembleia das Mourinhas. Todas dispersaram numa carreira doida. Podera! Era uma alma damnada, e o contacto peçonhento da réproba não agradava a ninguem. Por todo o campo se viam esvoaçar os vestidos claros das Mouras, como nuvens a desfazer-se no ceu. Os gritos da Zorra Berradeira apressavam-nas mais com o receio de serem perseguidas por ella.
A Moura damnada corria á margem do rio espelhento. Vira no campo claro do luar o bando alacre das Mourinhas, sentadas na relva, e a raiva da sua alma de vibora levou-a a desmanchar-lhes aquelle prazer, que a ella era um fogo de inveja. Salvou- as o terem-na pressentido com os berros agudos, que o rancor a obrigava a dar, O rio, posto entre a Zorra e as Mouras, forneceu-lhes o tempo necessario para ellas fugirem.
Conseguiu atravessar a agua. Os pés levantaram o lôdo, e o espelho da agua perdeu o brilho, ficou baço, como um vidro sujo. A lua foi obscurecida por uma nuvem, que cobriu aos olhos da Zorra a fuga das donzellinhas encantadas. Ella correu para junto de uma bouça, onde tinha visto os vultos brancos das Mouras, abertos á claridade da noite em uma gargalhada alegre.
Mas não encontrou ninguem. Teve um accesso de furia, e nunca os seus berros melhor justificaram o nome da Zorra Berradeira. Na sombra via-se de pé, hirta como uma estatua de bronze, agitando no ar violentamente os braços; os dentes rangiam-lhe e os gritos sahiam da garganta mais gutturaes, estridulos, mais arrastados. Toda a gente pelos casaes em redor, que a ouvia, tremia de mêdo, porque era desgraça imminente.
Quando a lua voltou a rir-se para a terra, cobrindo-a com a graça de um beijo de luz, as Mourinhas tinham desapparecido, e a Zorra, no meio do campo, hirta e de pé, estava horrivel como sombra do phantasma do rancor.
Fonte:CHAVES, Luis Lendas de Portugal: Contos de Mouras Encantadas Lisboa, Livraria Universal, 1924 , p.22-40
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sexta-feira, 31 de julho de 2015
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