“Se na volta calhar ter morto o carniceiro de Montesinho algum chibo dos de carne branca, é atestar-lhe sem dó nem piedade, que é pitéu de se irem os dentes atrás dele.”
[in Memórias do Abade de Baçal, Tomo XI, pág, 305.]
Na rica colecção documental intitulada Babylonian Collection, da Universidade de Yale, descobriram-se três tabuinhas pontuadas em escrita cuneiforme, trezentas e cinquenta linhas, as quais recolhem quarenta receitas culinárias. O texto integral após ser traduzido e analisado veio à luz do dia dando a conhecer ao Mundo forte registo dos hábitos alimentares dos povos da Mesopotâmia no recuado tempo (1600 a.C.) desse mesmo mundo. Um exemplo de preservação do património.
O estudo das receitas deu a conhecer as técnicas culinárias empregues na preparação dos produtos, e no referente à mimosa carne de cabrito além de referir um caldo que inclui a cabeça, patas e rabo após boa chamuscadela, utilizava-se a água quente para desplumar as aves e retirar os pêlos da pele dos cabritos. Esta milenar técnica, no essencial, prevaleceu como se deduz na interpretação da receita de cabrito à moda da Serra de Montesinho.
A carne de cabrito justifica, especiais cuidados, dada a sua macieza e, daí todos os cuidados são poucos quando é colocada na grelha mesmo sobre lume brando. As divergências no modo da confecção culinária do cabrito são estridentes, enquanto no El Gran Dicionário de Cocina de Jorge Pradános é elogiada a receita portuguesa de grelhar o cabrito por cima de brasas de vide, depois de aromatizado com folhas de eucalipto, outras obras de referência desaconselham tal método. Em contrapartida defendem o cabrito assado num primeiro plano, frito, estufado, guisado e de caldeirada num segundo. Pela delicadeza da sua carne não precisa de ser marinada antes da confecção, devendo a cozedura deixá-la rosada ou alourada, seja nos assados, seja noutras preparações.
Também existem divergências acerca da melhor idade para ser apreciado, o rifão diz: “cabrito, de um mês, e cordeiro, de três”, em Os Meus Amores, de Trindade Coelho, no capítulo Prelúdios da Festa, António Fagote sentencia: “leitão de mês, cabrito de três”, enquanto os chefes da alta cozinha defendem o seu consumo entre as seis semanas e os quatro meses.
Alguns gourmets acham a carne de cabrito insípida, aconselhando o uso de condimentos e aromáticos quando é preparada, o refinado Alexandre Dumas no Grand Dictionnaire de Cuisine, acusa-o de “com três ou quatro meses, o cabrito é totalmente isento de sabor montês e aroma caprum”. O autor de Os Três Mosqueteiros não esquece a tradição de no dia de Reis, em certas províncias francesas, o cabrito ser temperado com sal, vinho branco açucarado e quatro especiarias, antes de ir a assar.
Os receituários de referência anotam múltiplas receitas consagradas ao cabrito, sejam oriundas da cozinha oral e matriarcal, sejam da cozinha histórica e escrita, sejam ainda provenientes da cozinha de autor.
Se dúvidas existissem acerca do relevante papel do cabrito no ritual culinário da região de Bragança, o Cancioneiro Popular Português desvanece-as, como podemos perceber lendo no capítulo Ritmos, uma sequência de “Álvaro quer”, recolhida em Parada, concelho de Bragança. Atente-se:
“ – Queres tu, Álvaro, ora?
– Quero merendar que já é a hora.
Para merendar quero eu abo abelha,
Para merendar, merendar dará – o ela.
Para merendar cabrito assado,
Com pimenta e sal picado.
Para merendar cabrito cozido,
Com pimenta e sal moído.”
Comeres Bragançanos e Transmontanos
Publicação da CMB
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