“O cordeiro que aqui ofereço,
Branco como a neve pura,
A Vós meu Deus, ofereço,
Com humildade e candura.
Esta vítima que ofereço
É uma clara figura
Dos cordeiros que esperamos,
Para a Redenção futura.”
[Abel – Excerto do Auto de Adão e Eva – Teatro Popular Português – Trás-os-Montes, Volume I]
O manso cordeiro além dos valores simbólicos que representa é louvado enquanto manjar por muçulmanos, judeus e cristãos alcançando a categoria de comer de excelência nos dias festivos comemorativos das efemérides exaltantes destas influentes religiões no contexto mundial. Alimento pascal dos judeus e cristãos, também os muçulmanos no fim do Ramadão imolam cordeiros em comemoração do sacrifício de Abraão.
Um tratado de cozinha muçulmana da época dos Almóadas insere várias receitas tendo o cordeiro como referente principal, sendo três na forma de assado. Na obra Un Banquete Por Sefard – Cocina y Costumbres de los Judios españoles, encontram-se três receitas de cordeiro, na Cocina Judia de Débora Chomski o número aumenta para dez, enquanto que a Encyclopedia Jewish Food enumera doze.
O cordeiro corporiza uma tradição espiritual inspiradora de pensadores, escritores, músicos, pintores e... também de cozinheiras e cozinheiros sublimes. As razões de tanto interesse radicam no facto de ser expressão da inocência, da doçura, da simplicidade, e – fundamental –, da obediência. A cor branca significa pureza, a crucificação na quinta-feira santa recorda o sacrifício do cordeiro preparado para a Páscoa judaica, assim como o facto de o seu sangue ter salvo os judeus quanto estavam no Egipto, ao ser usado na marcação das portas das suas casas e assim ficado livres do extermínio divino.
Os folcloristas acrescentam à auréola do cordeiro, ele nascer negro no solstício de inverno, depois ir ficando branco, ainda mais, num branco imaculado, atingindo o grau de pureza.
É vítima sacrificial por excelência, S. João Batista exclama ao ver Jesus: “É Ele o cordeiro de Deus que tira os pecados do Mundo”. A aliança entre o cordeiro e a festa Pascal é evidente na primeira epístola de Pedro (1,18-19): o cristão é liberto como antigamente Israel se libertou do Egipto, pelo sangue de um cordeiro, Jesus Cristo.
Estas e outras recorrências ao cordeiro para designar Cristo encontram-se profusamente vincadas no Antigo Testamento, só no Apocalipse a palavra é empregue vinte e oito vezes nessa intenção. Um concílio ocorrido em Constantinopla no ano de 692, estabeleceu que a arte cristã passasse a representar Cristo na cruz como um cordeiro sacrificial. Sabemos que as primitivas comunidades de cristãos representavam Cristo recorrendo à figura de um cordeiro, ou à do Bom Pastor tendo um cordeiro ao colo.
O historiador Luís Alexandre Rodrigues ao descrever as festas realizadas em Bragança pela Companhia de Jesus, na sequência das canonizações de Santo Inácio de Loiola e de São Francisco Xavier, no ano de 1623, narra o facto de num dos painéis de um carro triunfal, o beato Luís “era figurado, entre muitos outros, por um cordeiro que o mote hi sequuuntum agnum quocunque ierit (Com este cordeiro estarei em boa companhia) sancionava”. Este é outro exemplo a comprovar a associação do cordeiro à figura de Jesus Cristo, não constituindo surpresa tal associação ocorrer no seio da Igreja, em Bragança.
O professor Orlando Ribeiro ensina-nos que: “Para a ‘cria da ovelha’ existem três designações: a latina anho, conservada apenas em Entre-Douro-e-Minho e ocidente de Trás-os-Montes, a inovação cordeiro, que deve ter reduzido à área anterior e se usa hoje na maior parte de Trás-os-Montes, no oeste da Beira e na Estremadura, e outra inovação posterior borrego, actualmente empregada no sul e no leste da Beira mas que penetrou na Estremadura e no centro da Beira e no sueste de Trás-os-Montes”. Sem qualquer propósito de emendar o ilustre Professor, o termo reixelo é nas terras transmontanas outro apodo do dócil cordeiro.
O anho – borrego, cordeiro ou reixelo – de leite é o mais disputado, morto antes de ser desmamado, entre os 30 e os 40 dias de idade, pesando à volta de dez quilos, a sua delicada carne proporciona criações culinárias de jubilosa expressão gustativa, a ficarem na memória do gosto de quem as avalia.
O cordeiro ou borrego branco, esquecida a opção congelado, aparece entre o Natal e Junho, é consumido a partir dos sessenta dias, pode chegar aos vinte e cinco quilos, a carne após boa cozedura fica tenra, a gordura é branca. O cordeiro cinzento também conhecido pelo nome de pastante, porque passou a alimentar-se de pasto, chega aos quarenta quilos, sendo abatido depois dos seis meses e até aos nove. A carne é firme, em consequência da alimentação recebida a gordura deixou de ser branca, passa a cinzenta, daí o nome de cinzento. Em termos de sazonalidade o cordeiro cinzento surge nos meses de Setembro a Dezembro.
Em Espanha a carne do cordeiro merino castelhano foi a mais consumida durante séculos, a raça merina, criava-se com o fito de produzir lã, estando proibida a sua exportação, tornando-a cobiçada pela finura dos trajes confeccionados com ela. A partir dos finais do século XVIII a raça merina saltou de Espanha, difundindo-se pelos cinco continentes. A restrita raça espanhola deu lugar à francesa raibouillet, à merina australiana, às fleishschat e landschaf alemãs, e à merina da Nova Zelândia.
Na obra Produtos Tradicionais Portugueses editada pelo Ministério da Agricultura em 2001, sobre o cordeiro bragançano afirma-se o seguinte: “A carne do Cordeiro Bragançano é obtida a partir da raça churra Galega Bragançana que, como características principais, apresenta uma acentuada desproporção entre a altura e o tórax e a deste ao solo (animais pernalteiros), com os membros muito finos. Tem a cabeça deslanada, de perfil subconvexo, estando os cornos ausentes nas fêmeas. As arcadas orbitais são salientes e os olhos grandes. São frequentes as manchas pretas ou castanhas em torno dos olhos, focinho e orelhas. No tronco, o peito é estreito, o garrote e espádua pouco destacados, a linha dorso-lombar é horizontal, a garupa pouco volumosa e um tanto descaída e a cauda é comprida. Os membros são altos finos, deslanados”.
O cordeiro tal como o carneiro não entra nas graças de muitos porque consideram o sabor das suas carnes impregnadas de bodum, logo ordinárias. Os seus adeptos exaltam a sapidez da carne de cordeiro, os chefes e as cozinheiras ao prepará-la não devem esquecer a obrigação de lhe retirarem as gorduras adjacentes responsáveis pelo característico e intenso cheiro.
A análise de receitas de cordeiro originárias de países dos cinco continentes permite-nos concluir que as criações culinárias associam a carne a elementos vegetais de sabores fortes. Eis alguns exemplos: cordeiro e açafrão, cordeiro e alcachofras, cordeiro e alcaparras, cordeiro e alecrim, cordeiro e alho, cordeiro e amêndoas, cordeiro e amendoins, cordeiro e anis, cordeiro e canela, cordeiro e cardomomo, cordeiro e castanhas, cordeiro e cebolas, cordeiro e cerejas, cordeiro e cominhos, cordeiro e cravinho, cordeiro e chutney, cordeiro e hortelã, cordeiro e mel, isto sem falar nos múltiplos molhos.
No referente a preparações o cordeiro é preferentemente assado, aparecendo também na forma de ensopado, estufado, frito, guisado, grelhado, panado e refogado.
A ovelha velha, a canhona, também integrava os comeres bragançanos, normalmente, objecto de tratamento culinário em guisado de lenta cozedura, após a carne ter ficado pelo menos de um dia para o outro imersa numa marinada composta por vinho tinto, alhos, azeite, banha, cebola, colorau picante, louro e malagueta.
Armando Fernandes
Comeres Bragançanos e Transmontanos
Publicação da C.M.B.
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