Local: Vila Verde, VINHAIS, BRAGANÇA
Quando os Mouros dominavam quase toda a Península Ibérica e batiam já em retirada, a norte e nordeste da mesma, havia um cavaleiro cristão, valente e audacioso. Batalhava com todo o vigor, próprio dos monheses. Nas pelejas mais encarniçadas, saía pela sua argúcia e arte, sempre vitorioso. Isto valia-lhe do comandante das hostes de Santiago, de tempos a tempos, algumas licenças para descansar e recompensar dos excessos das suas bravuras.
Como o cavaleiro não era capaz de estar inactivo, aproveitava aquele período de licença, que era um mínimo de seis meses, para ir clandestino à sua terra natal, tendo que atravessar todo o território ocupado pelos sarracenos, desde a costa do Golfo da Biscaia até ao Bairro de S. Miguel, na povoação de Vila Verde do Vez, que naqueles tempos remotos, pertenceu aos donatários de Póvoa Rica (hoje Vila de Vinhais).
Escondido e embuçado com trajes regionais daquela época, não se esquecendo do arnês, do escudo e da espada para uma possível emergência, ia passar o tempo que sobejava das viagens de ida e regresso, junto de seus avós, pais e irmãos, ajudando-os nos pesados trabalhos agrícolas, poiso seu mister, antes, depois, e nos intervalos das pelejas, era de agricultor.
Ao nascente do referido Bairro de S. Miguel, a cerca de um quilómetro, existia uma torre fortificada, reduto com barbacãs, ameias, fosso profundo a toda a volta, onde segundo a lenda que verbalmente é transmitida de geração em geração, um rei Mouro, dadas as sucessivas derrotas em todas as frentes de combate, resolveu instalar no seu interior a sua filha predilecta, Fátima-Yusef, que nascera da sua principal odalisca.
Como séquito, seguiu uma escolta de guerreiros experimentados, cujo chefe estava incumbido de velar pela singular dama que, afinal, era uma princesa de fina estirpe.
Pelas redondezas constou logo a chegada da Moura. O Cavaleiro Cristão estava cheio de curiosidade. Por isso, pediu a um dos pastores que apascentava o gado nos terrenos à volta da torre, que lhe emprestasse o capote e o bornal e o deixasse conduzir o gado.
Assim fez dias consecutivos ate que conseguiu avistar a dama que assomou as barbacãs e as ameias da torre.
Aquela, conforme o viu, ficou extasiada com a beleza do seu semblante, da cor dos seus cabelos louros, dos seus olhos de íris azul-escuro, dos seus gestos e movimentos másculos e sedutores.
Ele, surpreendido, ficou mais extasiado ainda, pois estava na presença de uma dama que lhe prendeu todos os movimentos, dada a sua beleza física incomparável. Ela possuía uma tez moreno-trigueiro, cabelos negros, faces um pouco compridas e acarminadas, olhos de íris negro, em forma de amêndoa, sobrancelhas finas e bem arqueadas. Trajava vestido branco de seda rutilante, coberto de jóias, e na cabeça um diadema cravejado de pedras preciosas, tendo ao alto e ao centro, em prata brilhante, a lua em crescente, símbolo da sua religião.
O Cavaleiro conhecia perfeitamente a língua árabe (dado o contacto que tinha com aqueles que caíam prisioneiros) mas estava tão perturbado, que não conseguiu dizer, assim como ela, uma única palavra. Estavam enamorados, mas em completa mudez. Ele, por ver na lua em crescente, um credo diferente do seu, e ela, por visto, pela abertura do capote, num movimento fortuito, a sua espada com a cruz formada, símbolo da religião Cristã.
Embora em credos opostos, continuavam enamorados e mudos. Os anos passavam-se e ele sempre que tinha licenças, não deixava de visitar os seus familiares e a sua amada.
Mas… da última vez que se ausentou, o pastor que tantas vezes lhe tinha emprestado o capote a sacola e o gado, invejoso, traiu-o descobrindo ao chefe dos guerreiros tudo o que se tinha passado e o que ele próprio tinha presenciado.
O chefe irritado saiu com os seus homens de armas e chacinou toda a familia do Cavaleiro arrasando todo o bairro de S. Miguel, incluindo a sua capelinha.
No regresso a torre o comandante dos guerreiros invectivou a princesa pela sua maneira leviana de proceder, informando-a que ia levá-la ao rei seu pai, e que lhe ia contar tudo o que se tinha passado.
A princesa não lhe deu resposta e aguardou a saída com toda a serenidade.
Porém, na retirada, ao passarem por Pena-Cabreira, a arguta donzela, adiantando-se, escondeu-se num carreiro estreito, abrupto e desconhecido para todos os guerreiros, apanhando-os de surpresa, e, desde o chefe até ao último dos seus guardas, foi-os empurrando para o abismo, com mais de 50 metros de altura, caindo no sorvedouro da cachoeira turbulenta, nas escarpas eriçadas da margem do rio Tuela.
Diz a lenda que a princesa, após o lançamento do último guerreiro no abismo, desapareceu na gruta de uma fraga e que ali ficou encantada para sempre pensando no amor perdido do Cavaleiro Cristão.
Mais consta que, quando o Cavaleiro voltou e vendo os seus desaparecidos e tudo arrasado, ouvindo o que tinha acontecido, monta num javali, de dentuças saídas no maxilar superior do focinho (parecidas com as defesas de marfim dos elefantes, mas em miniatura). Desditoso, procura por todo o termo, tendo em mente a possibilidade de encontrar a princesa. Em vão vasculhou Penha-Escrita, Matrocos, as grutas de Castrilhão, Rigueiro de Ladrões, o Castro da Ciradelha e depois as fragas cinzeladas em baixo-relevo com as figuras do lagarto, focinho do gato e pata de boi (marcas deixadas pelas legiões Romanas, nas regiões desconhecidas, para orientação do exército atrasado que servia de apoio). Chegou na manhã de S. João à gruta onde lhe pareceu ouvir gemidos longínquos e o chiar de um tear em movimento, na fraga que, depois o povo, passou a chamar da Moura-Encantada.
É voz do povo e com muita convicção, que a princesa ainda lá está encantada, e que o Cavaleiro Cristão voltou aos combates, fazendo por morrer, com propósito deliberado, cheio de cutiladas e de glória, no mais encarniçado da luta e que o javali, fiel ao seu dono, continuou à procurada Moura, ficando por fim petrificado no alto do Castelar, a olhar para a Fraga da Moura Encantada, que se encontra lá no fundo, entre a Torre e Pena-Cabreira.
Na verdade, lá está (para autenticar em parte a lenda), ao sul da Costa, no lugar de Castelar, uma pedra que, vista à distância e do local onde existiu o Bairro de S. Miguel, com o formato de um javali.
No sitio onde foi o referido bairro; são agora umas cortinhas, onde se encontram muitas pedras miúdas (por as grandes terem sido baldeadas), existindo ainda o caminho que formava a rua do antigo bairro.
As pirâmides de cantaria da capelinha, resistiram à erosão e estão colocadas na portada do actual cemitério assim como alguns perpianhos.
Por ter fendido, a sineta que existiu até ao ano de 1677, foi refundida naquele ano, encontrando-se até há pouco tempo, no campanário da igreja paroquial de S. Miguel, cujo orago é o nome cristão da freguesia de Vila Verde, que é composta por Vila Verde e Prada, tendo a sineta aquela data timbrada.
Os rapazes, mantendo a tradição, continuam na noite de S. João, a «roubar» todos os asininos existentes no povoado, montando-os em pêlo, seguindo o itinerário percorrido pelo javali e o Cavaleiro Cristão, tomando as orvalhadas e a ir escutar a Moura a tecer no tear de ouro maciço, depois de prenderem pela arreata, a coluna de burros, à volta dos restos onde existiu a antiga torre, que os vândalos desmoronaram, só deixando umas pequenas paredes, na miragem de um suposto tesouro. Lastimamos profundamente que assim tivesse acontecido, pois teríamos um valioso tesouro arqueológico para estudar, embora na parte existente, haja um laborioso trabalho a encetar.
Presenciamos, no silêncio de uma manhã de S. João, juntamente com os companheiros de juventude, de ouvidos postos na entrada da estreita gruta, que atravessa a fraga, um chiar e martelar, que mais parecia um eco remoto, igual ao bater dos pedais e movimento dos pentes e lançadeiras dos teares de madeira, ainda hoje existentes na povoação, e, que a voragem dos tempos, não conseguiu subverter.
A tradição continua todos os anos revivida na noite de São João pela juventude sonhadora e irrequieta do povoado.
Fonte:AFONSO, Belarmino Raízes da Nossa Terra Bragança, Delegação da Junta Central das Casas do Povo de Bragança, 1985 , p.100-103
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