[Provérbio mirandês]
Poderá parecer provocação trazer a terreiro um provérbio mirandês que colhi na ainda hoje importante obra de Sant’Anna Dionísio, intitulada Ares de Trás-os-Montes. Não é. É, antes prazenteira e merecida homenagem a Amadeu Ferreira grande paladino da língua mirandesa.
A palavra truta fala grego (trôktês, ou seja voraz), é um peixe carnívoro de águas frias correntes, astuto, talvez por essa razão seja tão cobiçado pelos pescadores, também porque a sua carne é muito saborosa. A astúcia da truta levou escritores de nomeada a torná-la paradigma de personagens dos seus livros, Roger Vailland deu o título de A Truta a um romance caracterizado pela ironia. O tremendo caçador e pescador conhecido pela alcunha O Negro de Milhão sabedor da manhosice das trutas, atacava-as a dinamite, assim o transmitiu a todos nós Artur Mirandela, em divertido texto que faz parte do livro intitulado Trás-os-Montes – Pessoas e Bichos.
A esbelteza das vorazes mas assustadiças trutas inspirou artistas plásticos, escultores, poetas, dramaturgos e romancistas e, certamente, continuará a inspirar. O poeta Eugénio de Castro, teceu um poema A Truta que, “prateada,/cheia de pimentas vermelhas...”
O fecundo escritor Aquilino Ribeiro dedicou páginas garridas de palavras bem aparelhadas às trutas, valendo bem a pena trazer à tona da água o breve trecho sobre fugidias, que faz parte do seu livro Dom Frei Bartolomeu. Escreveu Mestre Aquilino:
”- Pchit, pchit, há trutas, padre-mestre, há trutas! Volte atrás...
- Duvida de mim?
- Rendo-me Reverendíssimo Senhor. Não posso duvidar que seja capaz de fazer milagres...
E ficou. De facto, depois de uma açordinha de pão trigo caseiro abeberado a azeite com um dente de alho, apresentaram-lhe as trutas. Mas eram pequeninas como bogas, e enfiadas pelos olhos numa caruma, como uma canga conjunta. Ao que estavam de tostadinhas, a crepitar nos dentes, eram deliciosas. O cozinheiro tinha-as frito em bom azeite, que o Senhor Arcebispo, embora detestasse acepipes finos, de estômago era delicado. O mais pequeno ranço causava-lhe náuseas insuportáveis. A certa altura disse o padre mestre:
Neste pequeno mas refulgente texto saltam na sertã da análise gastronómica evidências de grande acuidade para todos quantos pretendem perceber os mecanismos de uma confecção culinária. A primeira prende-se com a qualidade dos produtos, alguns deles em desuso para nosso prejuízo, a segunda a sua conservação, “o mais pequeno ranço causava-lhe náuseas insuportáveis”, a terceira a técnica da fritura.
Esta cozedura só é considerada excelente quando a fritura se apresente: dourada, seca e estaladiça. Ora as trutas em causa “estavam tostadinhas, a crepitar nos dentes, eram deliciosas”.
O Dom Frei Bartolomeu dos Mártires jornadeou por terras de Bragança quando se dirigia a Trento, onde participou no célebre Concílio e espantou os conciliares pela profunda cultura, exigência, exemplo e resposta célere e adequada de modo a emudecer o contraditor.
Tivesse o Senhor Arcebispo vivido uns séculos mais tarde e, seguramente, não ficaria satisfeito com o comportamento das personagens religiosas que dão corpo ao romance O Cónego, cujo autor, A. M. Pires Cabral é distinto escritor do terrunho transmontano, melhor dito macedense.
Pela pertinácia do tema, pela relembrança de uma Pensão que conheci relativamente bem, transcrevo das páginas 220 e 221, do livro referido: “Chegou a Bragança já perto do meio-dia. Almoçou na Pensão Rucha, onde no longínquo ano de 1903 tinha sido comensal durante algum tempo – justamente antes da Patrocínia entrar ao seu serviço. O restaurante tinha agora outros donos e havia outra criada à servir à mesa, mas a boa qualidade familiar da comida era a mesma. Depois da sopa de lavrador e que rescendia à linguiça que lá cozera, vieram trutas de escabeche, boas trutas do rio Baceiro, com batatas cozidas”.
No ano de 1903, existiam na cidade o Hotel Brigantino, o Imperial e o Transmontano, a pensão em 1942 também era casa de pasto, tendo como responsável a Senhora Dona Conceição Rucha. No ano de 1950, muda de instalações, ocupando uma casa de boa traça existente na Rua Almirante Reis, onde antes tinha funcionado o Hotel Virgínia, depois pensão com o mesmo nome.
O sentimento do gosto sobrepõe-se à finitude do tempo, as afamadas trutas do Baceiro são marca maior das linhas de água existentes no concelho, a saliência do escabeche leva-nos a recuar nos séculos, aos muçulmanos invasores, pois a eles se deve a invenção desta técnica de conservação dos alimentos. Do “árabe (iskabage), molho feito à base de azeite, vinagre, cebola, alho e louro, que serve para condimentar e conservar peixe e carne”, assim reporta o Dicionário da Academia. O vetusto Cozinheiro dos Cozinheiros compilado por Paulo Plantier ensina que “há diversas formas de fazer escabeches: cozidos ou assados, quentes e frios”.
Os elogios às trutas do Baceiro são inteiramente justos, as do rio Sabor também não podem ser esquecidas na distribuição dos louvores, o conhecido escritor espanhol Júlio Llamazares no livro Trás-os-Montes – Un Viaje Português alude a uma opípara refeição tomada no reputado restaurante Dom Roberto em Gimonde, gabando-as vivazmente ao afirmar: “Pero lo mejor no es eso. Lo mejor, sin duda alguma, son las truchas del Sabor...”
As trutas originaram boas receitas praticadas no arco das sete cozeduras existentes, dando azo a qualificadas e saborosas representações culinárias, no entanto, a simplicidade das receitas escolhidas no referente à saborosidade não perdem no confronto com outras envolvendo grande número de ingredientes e condimentos .
Armando Fernandes
Comeres Bragançanos e Transmontanos
Publicação da CMB
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