Alheira
“Uma alheira, com a pele fendida; Tostada do calor da fritura, a derreter aquele unto doirado, e rescendente a alho – quem haverá aí, senhores, que não se tente?
[In Roteiro Sentimental. Manuel Mendes]
O escritor Manuel Mendes foi escritor múltiplo, o seu romance Pedro inspirou Alfredo Tropa e o sempre lembrado Afonso Praça a dele fazerem um filme, tendo também escrito um texto relativo à alheira que pertence ao volume Roteiro Sentimental – Douro. No aludido texto Manuel Mendes defende a tese de a alheira ter sido uma invenção dos judeus do Nordeste, de modo a enganarem os esbirros da Inquisição, e assim escaparem às suas garras. Denominou-a de chouriça da resistência. Discordo dele, sendo levado a pensar que Manuel Mendes não meditou bem antes de escrever relativamente às origens da alheira, deixando-se levar pelo entusiasmo, concedendo credibilidade a um suposto estratagema que já foi apelidado de lenda.
A discordância tem como base diversas razões, pertinentes razões, assim o penso, que principiam por uma pergunta: que tripas usavam os judeus para conceberem as alheiras? De porco, não podiam ser. Então quais?
Os adeptos da lenda podem lembrar a tripa de vaca, é o caso de Amílcar Paulo, estudioso dos costumes das comunidades judaicas no Nordeste. Poder podem, mas não podem ignorar as leis dietéticas do Talmude, que impõem rigorosas regras na aceitação e preparação dos produtos, as tripas pela sua natureza ainda mais, além de terem de as lavar nas ribeiras e consequente desinfecção, necessariamente, suscitavam olhares desconfiados dos não judeus, porque não faziam parte (nem fazem) do receituário mosaico: asquenazi e sefardita.
O normativo judaico proíbe o consumo de carne no seu próprio sangue, os animais têm de ser sacrificados segundo o ritual shekitah, um corte no pescoço de modo a permitir que saia a máxima quantidade de sangue possível, aos judeus está vedado ingerirem sangue, dado a alma residir nele. Os animais só podem ser abatidos por um magarefe profissional, shoet, devendo saber seccionar a traqueia deles de um só golpe, de modo a causar-lhes a menor dor possível. A seguir os corpos dos animais são examinados por um investigador, bodek, um inspector, mashgiah, a fim de considerarem a carne apta, ou seja kosher.
As prescrições talmúdicas obrigam a o talhante ter o máximo de cuidados na extracção do nervo e dos tendões dos animais, quando assim não acontece os quartos traseiros dos animais ficam inaptos, logo não podem ser cozinhados. A gordura existente debaixo do abdómen dos animais também está proibida, porque em tempos antigos alumiava os altares.
Para a carne ser kosher, logo permitida, tem de ser eliminado todo o vestígio de sangue, sendo colocada de molho em água fria durante meia hora, polvilhando-a bem com sal por todos os lados, deixando-se a secar durante uma hora antes de voltar a lavar-se por três vezes em água fria.
Pelo exposto não parece viável a utilização de tripas na confeção de alimentos à época, por parte das comunidades de cristãos-novos. De resto, se as alheiras fossem assim tão importantes para os judeus ludibriarem a Inquisição, devemo-nos interrogar sobre a causa de não serem confecionadas noutros importantes centros judaicos existentes no País, a principiar por Lisboa e a acabar no Porto, passando por Santarém, Tomar, Castelo Branco, Belmonte e Trancoso.
Acerca do recheio outras dúvidas se levantam, além da carne das aves de curral, carneiro e vitela ou vaca, mais nenhuma podia ser incorporada. A caça é interdita, o coelho doméstico também, quanto ao peru, veio do Novo Mundo, e só a partir do século XVIII é que entra no ciclo alimentar europeu.
A alheira é um excelente enchido, o mais custoso dos enchidos de massa, mas é um comer sazonal, na época dos negregados tempos da Inquisição não existiam métodos de conservação do enchido fora da época. Por esta razão endurecia ou ficava rançoso caso fosse imerso em azeite, levando ao ridículo quem pretendesse comê-lo nos meses de Julho e Agosto, manifestamente fora da época. Tendo em conta a sazonalidade, os familiares do Santo Ofício sendo biltres, mas nada estúpidos, não se deixavam enganar.
Por fim o Santo Ofício quando pretendia saber quais seriam os cristãos-novos arreigados à velha fé, mandava os seus membros subirem à torre de menagem do castelo, ou a outras, em dia de sabat para verificarem quantas casas de cujas chaminés não brotava fumo.
Outro argumento de peso, assim me parece, será a prova provada de os cristãos-novos de Bragança não terem nas alheiras o véu encobridor das suas práticas. Com efeito, segundo o testemunho de J. Albino Lopes Borges, os rituais praticavam-se de forma rigorosíssima durante as festas “do dia do Kipur ou do jejum grande e da Páscoa”. Iniciava-se o jejum ao “pôr-do-sol indo até ao nascimento das primeiras estrelas do dia seguinte”. “Não comiam, não bebiam, não fumavam, passavam todo o tempo em oração.
Se vinha alguém à rua e encontrava um enterro isso era tido por mau agouro; o mesmo acontecia se encontravam um Cristão, um padre, ou viam uma igreja. Faziam, por isso, toda a diligência de ficarem fechados em casa. Depois do jejum, à noitinha, tinham uma ceia grande, de toda a limpeza, isto é, sem carne e só de peixe, oferecida a Deus. Antes de iniciar o banquete procedia-se à bênção da mesa.” A refeição decorria num ambiente de grande alegria, metia vinho, cantava-se e dançava-se. O Sr. Albino Lopes Borges diz ainda: “Nas comemorações da Páscoa, por não amassarem pão ázimo, privavam-se do
fermentado. Só às sextas-feiras e sábados deixavam de comer carne de porco”.
As informações do respeitado judeu bragançano podem ser lidas no volume VI, páginas 171 a 173, da Etnografia Portuguesa de José Leite de Vasconcelos.
O facto de Albino Lopes Borges admitir o consumo de carne de porco tem de ser entendido como uma prática pública de enganar os vigilantes fundamentalistas católicos que sabiam da ancestral repugnância dos judeus pela carne de porco, mais uma razão para a estória das origens da alheira poder considerar-se uma lenda. Na obra Un Banquete Por Sefard, L. Jacinto Garcia dá-nos a conhecer outros casos similares, em que o marrano, acintosamente assim chamado pelos cristãos-velhos, também publicamente consumia a odiosa carne. Marrano significa porco de um ano.
No referente a truques os judeus de Castela compravam presuntos e toucinho que colocavam de forma visível na entrada das casas, mesmo nas janelas. Nunca tocavam na dita carne e, em vez despistarem os vigilantes, ganharam terríveis chufas, comentários jocosos e quadras ferinas a chamar-lhes simuladores, como esta:
Está bien parecer colgado, como el tocino em casa de marrano.
Puerco en casa de judio, non es provecho, sino atavio.
Puerco en casa de judio? Hipocresía o desvario.
No tembléis tocino, decía el judio, que no hay em casa quien mal os haga.
Embora haja notícias de uma receita de alheira em Mangualde (muito diferente, assemelha-se à receita do butelo), tudo indica que ela é um enchido específico de determinadas zonas de Trás-os-Montes, por exemplo no Barroso e noutras periferias não possuía carta de alforria. A alheira é vivaz exemplo da criatividade local, fruto do isolamento, pois no mais, como ensinam os tratados de história da alimentação onde há tripas, há enchidos.
As receitas escolhidas para melhor completarem este texto, esplendorosas receitas, convenhamos, são a prova provada de as alheiras justificarem plenamente a classificação do enchido de massa de maior custo nas terras portuguesas, atente-se nas carnes envolvidas e nas receitas.
Estas receitas de matriz bragançana são uma amostra de outras, que entram na esfera de uma carta de comeres personalizada.
Da tabafeia os dicionaristas dizem o seguinte: “Chouriço, recheado de carne e intestinos de várias qualidades, e próprio para se comer logo depois de feito.” O Padre Francisco Manuel Alves, no opúsculo Portugal – Trás-os-Montes, que elaborou para ser apresentado na Exposição Portuguesa de Sevilha (1929), fala nas tabafeias, não esquece o carácter sazonal das mesmas “fabricadas de Outubro a Fevereiro”, no entanto, não dá pormenores sobre a receita, mas a sazonalidade é mais um argumento a fazer cair por terra a tese de este enchido ter sido invenção judaica. O erudito Padre Francisco Manuel Alves noutro documento afirma que em Bragança às alheiras, chamam tabafeias. No entanto, quem se der ao trabalho de cotejar as receitas de alheiras e da tabafeia encontra diferenças na sua composição.
O etnógrafo José Leite de Vasconcelos no volume VI da Etnografia Portuguesa fala na tabafeia e, acrescenta:
”É, em Bragança, uma espécie de chouriço feito de dobrada, galinha, pimenta, etc...” Nas reticências ficaram importantes pormenores dos ingredientes que a compõem como uma receita integrada neste trabalho o comprova.
O notável Cozinheiro dos Cozinheiros de Paulo Plantier fala em tobafada, talvez uma variante da receita da tabafeia, que insere no capítulo de Fumeiro de Carne de Porco à Transmontana. A maioria dos receituários modernos não menciona a tabafeia, na Cozinha Transmontana, Alfredo Saramago descreve a receita e analisa-a corretamente, dois receituários dos anos sessenta do século passado também a registam, a Cozinha Tradicional Portuguesa de Maria de Lourdes Modesto que a (entala entre parêntesis) numa receita de alheiras, e o Manual de Gastronomia de J. Albano Marques, também menciona a tobafada. Saliente-se que Fernando Castelo Branco no capítulo Culinária e Doçaria inserido na obra Arte Popular Portuguesa afirma serem: “celebradas as tabafeias de Bragança”.
A tabafeia de matricialidade bragançana, era enchido de relevo no burgo bragançano, ficou obscurecida pela alheira desde há umas cinco dezenas de anos, isto porque ainda em 1952, os anúncios apregoavam as “tabafeias (enchidos frescos)” vendidas por: Artur das Neves (Mirandela), José Augusto de Carvalho, José Veloso, viúva de Marcial Veloso Barata, Maria da Assunção e Maria da Conceição Rocha. Desde os anos quarenta que as tabafeias feitas na casa do Sr. Artur Mirandela suscitavam grande procura, o mesmo em relação às vendidas pelo Sr. Armando Barata e das senhoras referidas.
A tabafeia é um enchido oneroso pelo custo e variedade de ingredientes, além de exigir muito tempo e trabalho na execução da receita.
Podendo e devendo ser marca excelentíssima de Bragança, chegou a altura de reabilitar-se a tabafeia, até porque a cozinha é a arte da grande paciência adverte o historiador e gastrónomo Nestor Luján, na obra Historia de La Gastronomia.
Publicação da CMB
Muito bom artigo. Esclarecedor, sucinto e bem escrito.
ResponderEliminarA ideia das tabafeias serem de uso dos cristãos novos não passa de uma lenda que Amílcar Paulo divulgou e que não passa disso mesmo, de uma lenda.
Muito bom artigo. Esclarecedor, sucinto e bem escrito.
ResponderEliminarA ideia feita de que os cristãos-novos comiam tabafeia em lugar da alheira não passa de uma bem intencionada lenda que Amílcar Paulo ajudou a divulgar mas que não passa de isso mesmo, de uma lenda...completamente inverosímil!
Muito esclarecedor.
ResponderEliminar