“A Serra da Forca é longe e é feia. Tem pasto mas de que vale? O passado deixou ali tanto grito perdido, tanto cadáver insepulto, tanta alma penada, que até mesmo as ladainhas da primavera se desviam e passam de largo. Mas é nos sítios assim amaldiçoados que o povo, talvez para as preservar da coscuvilhice da razão, gosta de plantar lendas bonitas e aliciantes. E vá de inventar que havia um tesoiro naquele ermos de maldição. Encontra-lo é que era difícil. Enterrado entre penedias, guardado por mil fantasmas, quem teria coragem de tentar a empresa? Ninguém. E o monte excomungado lá continuava azulado na distância, agreste e assombrado”.
Novos Contos da Montanha, página 109, 8ª edição- Miguel Torga
É bela esta paisagem agreste; sucedem-se ao redor, as encostas boleadas de xisto, protegidas da nudez por um manto quase continuo de mato rasteira e aromático: giestas, estevas, aqui e ali interrompidos na sua monotonia por terrenos lavrados e por manchas de amendoeiras e olivais. E ao fundo a belíssima panorâmica do rio Douro. Aqui cessa a crista quartzítica, este enorme paredão que constrói a margem direita do Douro na região de Freixo de Espada à Cinta – Torre de Moncorvo. Apesar de as rochas terem idade Ordovícica a sua fantástica estruturação orogénica deve-se aos movimentos alpinos.
A capelinha é consagrada à Nossa Senhora do Castelo (também conhecida como Nossa Senhora dos Prazeres), cuja romaria decorre na pascoela. Foi edificada sobre ruínas de povoações coevas como atestam os restos de cerâmica encontradas de várias épocas, medieval, romana e da idade do ferro.
Ainda existe uma linha de muralha de aparelho grosseiro, formado por pedras de quartzito sobrepostas, que delimitam um perímetro subcircular. A designação “Castelo” está relacionada com a existência de um castelo medieval, ainda usado nos séc. XII e XIII.
Afonso Henriques concedeu a Urros um foral importante (1182), do mesmo tipo que costumava ser atribuído a grandes povoações. Da dominação árabe anterior e dos conflitos com os cristãos que aqui viviam, dão conta de lendas e tradições como a do topónimo matança no termo da freguesia ou a da gruta dos mouros no penhasco onde assenta a capela. Acerca desta diz o padre Argote no século XVIII.
“… no fundo de uns altos rochedos, está uma concavidade subterrânea, a que o vulgo chama o Buraco dos Mouros e por dentro tem a largura bastante para andarem cinco pessoa emparelhadas. Houve pessoas que intentaram investigar o comprimento e fim desta notável concavidade, mas, à vista do muito que corria para o interior, desistiram da empresa: só depõem que dentro acharam largos, formados à maneira de casas”. Dizia ainda o diligente Pinho Leal que a dita caverna, “ feita na rocha, passa por baixo da ermida …e diz o povo que isto foi habitação dos árabes…, ainda que dá indícios de ser antes obra romana, pela sua perfeição, e provavelmente mina metálica “, tinha razão Pinho Leal.
É indiscutível que o topo da ermida se encontra implementada numa charneira de um dobra, local favorável a ocorrência de ouro, que aqui deve ter sido explorado pelos romanos.
O desaparecimento do pequeno castelo poderá estar relacionado com o conflitos entre Dom Afonso II e suas irmãs, apoiadas por Dom Sancho I de Leão, que nesta região foram muito violentos, levando à destruição e despovoamento de algumas vilas e aldeias.
Divisam-se outros locais notáveis, como é o caso do miradouro de São Gabriel (*) e na outra margem o monte Calabre, que se pensa ter sido o berço da cidade de Calábria, sede do Bispado no séc. VII com os seus restos de muralha.
Não aconselho o deslocamento em viatura normal até ao local, confesso que tentei e corri alguns riscos – o viajante ia espatifando o pobre carrinho!
Ermida de Santo Apolinário
Deixe o automóvel no adro do templo renascentista e barroco de Santo Apolinário e se puder não deixe de se envolver em mais uma lenda significativa do nosso imaginário.
A ermida de Santo Apolinário constitui um pequeno santuário rural de romaria, como atestam as estruturas de acolhimento de romeiros existentes no exterior.
A fundação do templo ocorreu no século XV ou XVI, mas poderia já assentar em outro mais antigo de influência mudejar, como se pode observar na utilização do tijolo na porta principal em arco de volta perfeita. A igreja no século em 1719 foi objecto de enriquecimento artístico com caixotões do martírio do santo, encobrindo a pintura mural que recobria a igreja.
No seu interior encontra-se, caso único em Portugal, o sarcófago do Santo de Apolinário de…Ravena, decorado com as cenas do santo.
Ao lado da capela está uma “fonte santa”- que se diz comunicar com o rio Douro (pelo que a água que nela se encontra está límpida ou turva conforme o rio corre limpo ou turvo). O cipreste terá nascido de uma gota de água do rio Douro, que Santo Apolinário ali deixou cair quando transportava uma cabaça.
Segundo a crença local, o santo, bispo da cidade de Calábria, na outra margem do Douro (na actual Quinta da Leda), teria sido preso pelos mouros que o amarraram a dois touros que o arrastaram até ao sítio da capela. Santo Apolinário foi de facto bispo, mas da cidade italiana de Ravena, onde foi martirizado, não pela moirama mas pelos romanos; com os seus afãs e sofrimentos, lançou as sólidas raízes da história cristã daquela cidade.
O certo é que as relíquias de Santo Apolinário de…Ravena existem, guardadas num túmulo da Renascença decorado lateralmente com cenas da vida do Santo e com estátua jacente, assente sobre quatro mísulas em forma de cabeça de leão. Está colocado sobre um caixão rectangular, em xisto que, segundo a tradição foi a primitiva sepultura de Santo Apolinário; o povo pede a sua protecção contra as febres intermitentes. Seria interessante uma análise aos ossos que se encontram no túmulo; mas a ciência não estragaria o mistério atractivo do local?
Diz-nos ainda o célebre antiquário Pinho Leal “ Em algumas escavações que se têm feito junto à ermida, apareceu um portal completo e várias pedras de granito, aparelhadas, qualidade de pedra que não há nestes sítios – onde só existem rochas de xisto e quartzites; do que se conclui que vieram para aqui de algumas léguas de distância. No século passado (século XVIII), foram aqui achadas várias moedas de ouro, prata e cobre, e uma grande pia, também de granito “.
Como se trata de um concentrado de um templo, uma “fonte santa” (ligando-se ao rio Douro e ao culto das águas) e uma árvore sagrada, não estaremos em presença de um anterior templo romano, posteriormente substituído pelo culto ao Santo de Ravena? Mas também outros santos existem de nome Apolinário como o bispo de Valence (França).
O certo é que nome Apolinário, lembra Apolo e provavelmente a semelhança do que acontece em outros lugares sob a evocação de Apolinário se praticaram cultos solares pagãos ou a Apolo. A confirmar esta associação encontra-se a crença segundo a qual uma “criança brava”, se atravessar sob o túmulo do santo é curada, desde que se lhe consagre um galo branco, que é um símbolo solar.
Um dos contos dos “Novos Contos da Montanha” passa-se em Urros?
Não seria aqui que Miguel Torga criou o seu maravilhoso conto “O Sésamo”, em que o pastor Rodrigo, com fama de amalucado e alma de artista, em vez de descobrir “uma grande fortuna escondida na barriga de um monte do monte” descobriu o milagre do nascimento da vida?
Agora depois de tão enigmática visita, espera-o uma dura caminhada ascensional, não aconselhável a gentes com menor preparação física; e chegará então a Senhora do Castelo de Urros, um ermo absoluto embrenhado em notável beleza natural, mais um improvável refúgio de viandantes que procuram restaurar a sua harmonia espiritual. Abre-te, Sésamo!
Fonte de Informação:
http://www.jfurros.no.sapo.pt/freguesia.htm
LEAL, A. Pinho – Portugal Antigo e Moderno: Dicionário, 1.ª edição, Lisboa, Livraria Editora Mattos Moreira & Companhia, vol. III, 1874
Torga, Miguel- Novos Contos da Montanha, 8ªedição, 1944
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