Projecto Aldeia Pedagógica de Portela foi alargado de forma a alcançar idosos residentes em lares de Bragança.
Infância da Ressurreição Gonçalves arranja-se toda. Cabelo preso num ó, brincos de ouro a pender das orelhas, a camisola cinzenta como as calças, o casaco preto abotoado até meio. Daqui a pouco, um grupo de idosos há-de chegar à aldeia de Portela, a dez minutos da cidade de Bragança, já no Parque Natural de Montesinho. E ela há-de juntar-se a umas vizinhas para lhes ensinar serigrafia.
“Puseram-me [o nome] da Ressurreição por ter nascido no domingo de Páscoa”, explica, para início de conversa. Conta 85 anos, um pouco menos que o marido, João António Pires. Duas vidas de trabalho. “Era pequeno, mal podia andar, já andava com as vacas”, diz ele. “Agora, não. Agora, a gente é fidalga. Se tivesse a saúde que tinha dantes e a vida que tenho agora”, suspira a mulher.
Já não criam vaca mirandesa nem porco bísaro, mas ainda têm galinhas e horta. Num terreno próximo de casa, cresce milho, batata, feijão, abóbora, couve, alho, cebola, tomate, pimento. Ele não se dá parado e ela arranja sempre que fazer. Infância da Ressurreição é mestre de compotas, licores e chás na Aldeia Pedagógica de Portela.
Vale a pena recuar no tempo para perceber por que está Infância da Ressurreição naqueles preparos e o que é isso de ser mestre de compotas, licores e chás. Foi tudo ideia da Azimute, que nasceu há 14 anos como associação juvenil virada para a preservação ambiental, o desporto de aventura e a cultura.
“Muitos concelhos têm quinta pedagógica, não é?”, pergunta João Cameira, da Associação Azimute. “Por que não ter uma aldeia pedagógica? Os visitantes poderiam ver como se faz pão, compotas ou licores, conhecer o ciclo do ferro, visitar a horta e a capoeira, aprender a reconhecer ervas. Fala-se tanto em envelhecimento activo e em promover as relações entre gerações”
A Azimute começou por propor à Câmara de Bragança que lhe cedesse uma das suas muitas escolas primárias desactivadas para usar como sede e centro interpretativo da natureza. Recorreu a fundos comunitários para recuperar a aldeia de Portela, na freguesia de Gondesende, vazia havia pelo menos meia dúzia de anos.
Primeiro, explorou apenas a ideia original. Depois, recorda o presidente, João Cameira, quis ir mais longe. Começaram por fazer uma acção de limpeza da floresta, que ali contém carvalhais, bosques de azinheira, soutos de castanheiros e matos diversos, incluindo urze, esteva e giesta. Livraram-na de frigoríficos e outros monos abandonados ao deus dará. A certa altura, puseram-se a pensar em formas de fazer dos residentes aliados. Eram pouco mais de 30 pessoas, quase todas em idade avançada. Muitas artes e muitos saberes tinham para ensinar. Experimentaram fazer licores e compotas com Infância da Ressurreição e as vizinhas. E se elas pudessem ensinar outras pessoas?
Idosos que são mestres
A Portela não é uma aldeia qualquer. Predominam pequenas casas construídas com pedras de xisto sobrepostas — um andar para curral, celeiro ou adega e outro para habitação. Entre as moradias, resistem estruturas de utilização comunitária, como a forja, o lagar, o forno de cozer pão. Era aproveitar o cenário e o saber.
“Muitos concelhos têm quinta pedagógica, não é?”, pergunta, de forma retórica, João Cameira. “Por que não ter uma aldeia pedagógica?" Os visitantes poderiam ver como se faz pão, compotas ou licores, conhecer o ciclo do ferro, visitar a horta e a capoeira, aprender a reconhecer ervas.
Foi há cinco anos. Com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, envolveram os idosos na preparação das visitas, na definição das actividades, na execução dos materiais de suporte ao projecto — como, por exemplo, o merchandising que vendem na sede da associação. Chamaram-lhes mestres. Há mestre da horta, mestre do galinheiro, mestre do pão, mestre de compotas, licores e chás, mestre da forja, mestre dos cogumelos, mestre das ervas aromáticas e todos eles têm recebido, sobretudo, miúdos trazidos por escolas, associações ou mesmo famílias.
Tinham objectivos bem claros: "Lutar contra a discriminação e os preconceitos relacionados com a idade; incentivar as relações interrelacionais; disseminar os conhecimentos sobre o mundo rural e as tradições junto da comunidade escolar; ocupar os idosos, tornando-os membros activos da comunidade; promover a participação na sociedade; quebrar o seu isolamento e a sua solidão.” E, no ano passado, a Aldeia Pedagógica de Portela foi distinguida pelo Instituto de Empreendedorismo Social como iniciativa de elevado potencial de inovação e empreendedorismo.
Decidiram alargar o projecto aos idosos das instituições particulares de solidariedade social do concelho de Bragança. Ganharam o prémio BPI Sénior para pôr essa ideia em prática. Os idosos integrados em centros de dia ou unidades residenciais iriam aprender ou recordar artes e saberes com os idosos de Portela.
“Há pessoas que nos lares chegam ali e parece que calçam as pantufas e nunca mais as descalçam. Não lhes apetece fazer nada. Temos de ter vontade. Tem de haver vontade de viver. E vontade de ser útil. Isto também faz parte da vida. Fazer alguma coisa contribui para um envelhecimento mais suave”
José Lopes Augusto, 83 anos
Vontade de viver
Já está a acontecer. A equipa da aldeia pedagógica já foi aos mais concorridos lares do concelho fazer oficinas de velas e cosmética natural. E os idosos das instituições estão a ir à aldeia fazer oficinas de serigrafia. Até ao final do ano, hão-de aqui vir fazer também oficinas de fotografia digital e reciclagem.
Segunda-feira depois do almoço, dia 30 de Maio, uma dúzia de idosos do centro de dia e do lar residencial da Obra Social Padre Miguel viaja em duas carrinhas brancas até à aldeia. E quatro mestres e dois formadores recebem-nos na sede da associação, onde guardam utensílios rurais.
“Vamos usar uma técnica de impressão que se chama serigrafia. Temos nestas telas imagens que vamos passar, com tinta, para papel ou para pano”, explica Mónica Silva, a coordenadora do projecto, no centro da sala. “Vamos fazer isso com a ajuda das nossas mestres. Temos aqui a Infância, a Imperatriz, a dona Maria Idalina e a dona Maria Assunção. Vocês vão ver que começando é fácil. Vou pedir a uma das nossas mestres para começar a exemplificar. Quem quer exemplificar?”
Infância da Ressurreição voluntaria-se. A impressão pode fazer-se em materiais como papel, plástico, madeira, vidro, tecido. O primeiro exercício fez-se com papel de tamanho A4. “Metemos um papelzinho por baixo”, vai dizendo Mónica. Os idosos estão sentados em cadeiras encostadas às paredes, atentos ao que vai sendo dito e mostrado. “Pomos a tinta. Assim. Agora, vejam como a nossa mestre vai fazer. Pega numa espátula e vai puxando a tinta até cá abaixo. Puxa novamente. E vamos ver.” Mostra a folha de papel branco na qual se lê: “Sou como o Vinho do Porto.”
O primeiro a arriscar-se é José Lopes Augusto, de 83 anos. “Já foram ao lar duas vezes. Fizemos trabalho em conjunto nas duas vezes que lá foram. Aprendi a fazer moldes em gesso. E o outro já não me lembro. Ai, velas com óleo alimentar. Foi bonita a decoração que fizemos. Um coração de gesso. É engraçado.”
Maria Idalina é mestre do galinheiro. Mostra o galo, as galinhas e os pintainhos aos visitantes. Há quem fique espantado ao perceber que os ovos saem do rabo das galinhas e não de uma máquina qualquer. Ovos com alguns excrementos agarrados é coisa que nunca sequer tinham imaginado
O exercício corre-lhe bem. “Eu estou há seis anos no lar. Em princípio, não tinha necessidade de lá estar, mas tenho a minha mulher com uma doença muito grave, que é Alzheimer. Eu fui para a ajudar. Não estava a fazer nada sozinho em casa. Não tenho mais família. Tenho a filha mas está em França. Fui para ali para a ajudar.”
Fez carreira na guarda prisional. “Lá estive 30 e tal anos. Lá fiz a minha obrigação. Agora, estou a gozar a reformazita”, conta. Arranja com que se entreter. “Faço parte de um grupo de cantares. Ensaio uma vez por semana. Vou à piscina duas vezes por semana. Nos outros dias, vou à ginástica."
Não falta quem tenha atitude distinta da de José. "Há pessoas que nos lares chegam ali e parece que calçam as pantufas e nunca mais as descalçam. Não lhes apetece fazer nada. Temos de ter vontade. Tem de haver vontade de viver. E vontade de ser útil. Se a gente se dá boa paz de estar sentadinho e traçar a perna, envelhece mais depressa. Interessa ter mais um bocadinho de saúde.”
Um a um, com maior ou menor dificuldade, os idosos vão experimentando a técnica, primeiro em papel, depois em sacos de pano, que fazem parte do merchandising da aldeia. José está contente. Gosta desta ideia de pôr idosos a lidar com idosos. “Dá estímulo uma pessoa velha estar a ensinar outra pessoa velha. Mostra que ainda consegue fazer. A partir daí, a outra vê que ainda é capaz, que nada é impossível.”
Impossível é negar a possibilidade das oficinas como momento de alegria e de partilha. É suposto servirem também para desenvolver a motricidade, a precisão manual, a criatividade, a atenção, o raciocínio, mas isso caberá a uma equipa da Universidade Católica avaliar. Se tudo correr bem, adianta João Cameira, para o ano o projecto poderá chegar a outros idosos institucionalizados, porventura, noutros concelhos.
A vida tal como ela é
“Isto para nós é um distraimento”, resume Maria Idalina, de 80 anos. Não se limitam a ensinar. Já ali aprenderam coisas novas. Foi ali, na sede da Azimute, que aprenderam a serigrafia que agora ensinam a outros idosos. E a fotografar com uma câmara digital muito simples. Viram as fotografias delas expostas na biblioteca municipal. “Passa-se o tempo mais depressa. É muito bom.”
Maria Idalina é mestre do galinheiro. Mostra o galo, as galinhas e os pintainhos aos visitantes. Há miúdos que ficam espantados ao perceber que os ovos saem do rabo das galinhas e não de uma máquina qualquer. Ovos com alguns excrementos agarrados é coisa que nunca sequer tinham imaginado.
Maria Idalina e o marido, Hermínio, não limpam o galinheiro antes de cada visita. A ideia é mostrar a vida tal como ela é. E há quem fique acanhado por causa do cheiro. “Uns têm medo de serem atacados. Outros querem pegar nas galinhas ao colo e fazer-lhe festinhas”, diz ela.
Os homens envolvem-se menos. João António, por exemplo, nunca teve paciência para andar a mostrar a horta ou o galinheiro, nem para ensinar a reconhecer cogumelos silvestres e ervas aromáticas, mas a mulher, Infância da Ressurreição, está sempre pronta para receber quem aparece e mostrar como é que se faz, por exemplo, licor “de muita coisa — licor de ananás, de casca de nós, de hortelã-pimenta, de cidreira”.
Jornal Público
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