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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

domingo, 9 de outubro de 2016

ALMEIDA (António Caetano de)

Por alcunha o Retórico, em alusão ao seu muito saber. Morreu em Bragança, onde era professor do liceu, a 29 de Dezembro de 1865. Ignoramos as demais circunstâncias pessoais.
Ainda hoje vive na lenda a sua memória aureolada de profundo saber e de não menos profunda excentricidade.
A sua indumentária era esfarrapada e sebenta, virgem de consertos e de lavagens, mesmo a roupa branca, até que caía a pedaços, povoada de parasitas, que extraía dos sovacos e castigava quando exorbitavam mandibulamente, entre a unha e a mesa da cátedra – intra vestibulum et altare, na frase bíblica ou sobre a própria ara, como dizia o célebre grego, mui naturalmente em frente dos alunos.
Estava hospedado na taberna da Xoana da Stalage (espanhola), uma das mais ordinárias de Bragança, e no Verão, dentro de casa, andava in naturalibus, apenas com uma leve tanga sobre as partes pudendas, e assim aparecia aos que o procuravam e se sentava à mesa para comer, na qual tinha um vaso de cama, que muitas vezes servia ao mesmo tempo de suporte a pratos de mantimento, e assim aparecia na taberna a impor silêncio quando os ralhos da tia Xoana, com algum freguês renitente ao pagamento do quartilho, excediam a marca. E realmente, disse-nos quem o conheceu, peludo como um carneiro e naquela postura não havia resistir-lhe.
Não fumava nem cheirava, mas apanhava pelas ruas pontas de charutos, que queimava na braseira, porque, dizia ele, só assim exalavam o cheiro agradabilíssimo especial que tinham.
Os seus amigos, únicas pessoas com quem convivia, eram escolhidos entre os seus alunos, a quem ensinava passeando com eles e explicando-lhes as maiores dificuldades, mas só aos amigos, pois na aula as passava em claro ante o resto do curso.
Ordenou-se de presbítero aos sessenta e tal anos, mas só dizia missa ajudado pelos estudantes amigos e à porta fechada. Uma vez que lhe objectaram ter-se enganado ao dar ite, missa est, não permitido pelo rito na missa daquele dia, deitou logo a seguir, rapidamente: Requiescaut in pace – benedicamus Domino – isto é, tudo o mais que podia ser, para, caso não servisse um, servisse o outro.
Não respondia às consultas que lhe faziam os estranhos, a não ser os alunos amigos; limitava-se a citar os livros onde se encontravam resolvidas ou melhor tratadas essas consultas, e quando raras vezes respondia, se via que iam percebendo, dava tal jeito à explicação que embrulhava e obscurecia tudo, impossibilitando a percepção.
Se os consulentes tinham obrigação de saber, então metia peta acintosamente, e se lhe iam à mão, fingindo-se sorna, emendava: «há! é isso, é; estava distraído». Assim é que uma vez, diante de letrados, dava Tito Lívio por modelo de concisão enérgica, e de elegância redundante Tácito.
Quando José Joaquim de Oliveira Mós, mais tarde cónego da Sé de Bragança (que fora um dos seus discípulos estimados), notável latinista, como não vimos outro que tão rápida e correctamente lesse esta língua e a traduzisse à primeira vista, foi frequentar a Universidade, quis o Retórico acompanhá-lo para lhe dar as últimas instruções e recomendá-lo aos lentes, entre os quais era muito considerado.
Saíram de Bragança uma tarde, como quem vai dar um passeio até detrás do Forte, e deu com ele em Coimbra, mais morto que vivo, pois teve de jornadear a pé, ouvindo ao mesmo tempo as larguíssimas instruções e prelecções do Mestre.
Era profundamente irónico, sob uma aparência sorna de bonomia descuidosa, expressa em trocadilhos. Passando um dia de passeio com o seu selecto grupo em frente de uma taberna, contígua às casas do visconde de Ervedosa, na rua Abílio Beça, em Bragança, reconstruídas a fundamentis nos fins do século passado pelo Machaca, ouviu as altercações dos fregueses salpicadas de invectivas obscenas, e, chegando um pouco adiante, disse para um dos discípulos:
– Senhor padre Sebastião, se é que o é, mas deixemos isso (era de Soeira e só tinha ordens menores, portanto nem era nem deixava de ser clérigo): de quem é essa casa aí atrás?
– É do senhor visconde, informou o interrogado.
– Deixemos coisas tão altas – tornou ele – digo aqueloutra pegada?
– É a taberna do Paradinha.
– Uma taberna?!... – disse ele, admirado. – Eu supunha que fosse um
botequim, pois tudo era dizerem: a su caralo, a su caralo...
António Caetano de Almeida morreu, e só pelo seu insignificante espólio soubemos que era doutor, coisa que nunca dissera a ninguém e constava da sua carta de formatura guardada no fundo da mala, tendo por cima, à laia de pisa-papéis, a pata de um burro ainda com a respectiva ferradura.
Não nos consta que deixasse publicações.

Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança

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