Bernardo Lopes, “homem de boa estatura e rosto largo”, nasceu em Vila Flor por 1502. Era filho de Lançarote Rodrigues e Genebra Alvim, judeus batizados em pé. Fez-se mercador de panos, em segmentos comerciais bem definidos. Em Portugal comprava “panos de estopa, linho e seda para ir vender em Castela e de lá trazia panos de cor para vender”.
Casou com Maria Álvares, natural de Bragança. (1) O casal morava na praça de Vila Flor, mesmo junto da igreja matriz. Em 1554, entrou ao serviço de Manuel Sampaio, senhor de Vila Flor e de muitos foros concedidos pelos reis em várias partes. E como feitor que era na Casa Sampaio, (2) competia-lhe a arrecadação dos ditos foros. Em tal função, fazia-se geralmente acompanhar pelo “porteiro” do concelho que detinha o poder de penhorar os bens das pessoas que não queriam pagar.
Seria no verão daquele mesmo ano. Andaria o feitor na cobrança dos foros na aldeia de Candoso, acompanhado do porteiro João Gonçalves. E indo a casa de uma viúva a cobrar o foro devido, ela disse que não tinha cereal e pagaria em dinheiro, pelo preço a que o pão estava taxado. O feitor respondeu que por aquele preço não recebia e queria mais dinheiro ou o cereal, conforme estabelecido. E como a viúva não esteve de acordo, o porteiro procedeu à hipoteca dos bens necessários. Aí a viúva terá dito para o feitor:
- Como Nossa Senhora fora virgem antes e depois do parto, assim sejais vós destruído, por me tirar o pão de meus filhos!
Ao que Bernardo Lopes terá respondido:
- Virgem Maria… virgem Maria… virgem como a minha mãe quando me pariu!...
Obviamente que o caso chegou logo ao conhecimento do vigário geral da comarca, o licenciado Aleixo Dias Falcão. Tal como chegou a informação do padre Diogo Maçulo, capelão em Vila Flor, dizendo que Bernardo Lopes e Maria Álvares, raramente iam à missa dominical, apesar de viverem mesmo junto da igreja. E também lhe contaram que andando com operários em uma vinha “a lançar cepas de cabeça” viria a falar-se de judeus. E um dos operários, que era cristão-velho, terá feito alguma insinuação, a que Bernardo Lopes respondeu nos termos seguintes:
- Quando ele fosse bom judeu, ele réu seria bom cristão.
Claro que todos os depoimentos foram judicialmente autuados e o despacho do vigário-geral não surpreenderia: mandou recolher Bartolomeu na cadeia da comarca, em Torre de Moncorvo, ao findar da primavera de 1556. E estando preso na cadeia da Torre, com outros mais “criminosos”, imagine-se que 3 distintos companheiros ali teve: o padre Diogo Maçulo, cura em Vila Flor; o padre Amador Rodrigues, “capelão que foi em Bruçó” e o padre António Rodrigues que depois foi rezar missa para Mogadouro.
Não sabemos como os 3 clérigos foram ali parar mas sabemos que eram extremamente zelosos da fé e vigilantes. E cada um deles compareceu a denunciar novos “crimes” de Bernardo Lopes. Os três testemunhos foram idênticos e por isso transcrevemos apenas o do padre Amador Rodrigues que disse:
- Que ele esteve preso na cadeia desta vila durante 6 semanas e nesse tempo o dito Bernardo Lopes estava também preso, como está, e dormia junto a ele testemunha e nunca nesse tempo viu ele testemunha o dito Bernardo Lopes benzer-se nem rezar, nem fazer acto de cristão, e nesse tempo estivera doente 2 ou 3 dias e nunca chamara por Nosso Senhor nem Nossa Senhora, nem outro santo, e por ele testemunha e os mais padres que ali estavam presos, que eram o dito Diogo Maçulo e António Rois o tinham por mau cristão.
Outras culpas foram ainda acrescentadas e o vigário-geral decidiu enviar o prisioneiro e o respetivo processo para o arcebispo de Braga, frei Baltasar Limpo, que o remeteu para o tribunal da inquisição de Lisboa onde deu entrada em 10 de fevereiro de 1557. (3)
Entretanto e estando o prisioneiro em Braga, o vigário Aleixo Falcão, mandou também prender a sua mulher. As acusações eram em parte as mesmas do marido, dizendo que guardava o sábado e não o domingo como dia de descanso semanal e nele vestia camisa lavada; que, morando junto à igreja, não ia à missa… e as testemunhas eram semelhantes, incluindo os ditos padres. Acresceu um outro crime e que vamos contar… (4)
Dois anos e meio atrás, em um sábado, apareceu à porta de Maria Álvares um tendeiro de Chaves. E a casa de Maria Álvares tinha um “balcão ou alpendre” suportado por esteios. E o tendeiro preparava-se para armar a sua tenda debaixo do alpendre, como aliás costumava ele e outros tendeiros que ali vinham. Mas veja-se o que aconteceu, tal como ficou escrito no processo:
- Ela ré chegou à porta e tanto que viu armar a tenda (…) disse ao dito tendeiro que desarmasse a tenda e não vendesse porque era sábado e por vida dos meus filhos que não haveis hoje de armá-la e se a armardes não venhais mais aqui e fazei conta que nunca mais aqui haveis de armar. E por ela ré assim o dizer, o dito tendeiro tornou a desarmar a tenda e se foi. E ao outro dia, que era domingo, a armou no próprio lugar e ela ré (…) deixou armar a tenda no dito dia, o que ela fazia por guardar e venerar o sábado, como judia.
Uma derradeira culpa lhe imputaram no cárcere de Lisboa, ao cabo de um ano de prisão, assim formulada pelo promotor:
- Acresceu à ré agora a culpa de Isabel Dias, de Braga, que diz que cantava diante dela coisas de judia, e ela ré folgava e chorava, que é grande sinal de quem tem ainda lembrança daquelas coisas. E diz mais a testemunha que lhe dizia a ré que o Messias havia de vir e que a havia de livrar… (5)
Voltemos a Bernardo Lopes e à sua defesa. Antes de mais cumpre elogiar o comportamento do seu procurador, que atuou como um verdadeiro advogado de defesa. Veja-se, a título de exemplo, uma simples frase:
- Não curo do descrédito que o clérigo Amaro Gil, em seus testemunhos, lhe quis dar; e outros que quiseram tomar ofício do senhor Deus… (6)
Referia-se, obviamente aos padres (e aos inquisidores?) que tinham Bernardo Lopes por mau cristão.
Em segundo lugar, diga-se que nesta época ainda era permitido aos prisioneiros nomear um ou mais procuradores para acompanhar a audição das testemunhas de acusação. E assim, Bernardo nomeou o seu filho Lançarote, o amigo João da Rosa (cristão velho), ou o irmão Jorge Fernandes. Este procedimento levaria o promotor a dizer que tais procuradores pressionavam e subornavam as testemunhas e até levavam algumas a desdizer-se.
Finalmente refira-se o levantamento de suspeições sobre o Aleixo Falcão, que era seu inimigo, conseguindo que a audição das testemunhas fosse feita pelo licenciado Francisco Dias, provedor e contador da comarca e não pelo vigário-geral. Aliás, até o arcebispo lhe seria, de algum modo, suspeito, conforme se depreende deste item da sua defesa:
- Entende provar que António Fernandes, porteiro diante do vigário da Torre, é oficial ante ele e do arcebispo, os quais são inimigos de Manuel Sampaio e assim dele réu…
No processo de Bernardo, como no de sua mulher e outros mais de Vila Flor naquela época, é notória uma subterrânea “perseguição” política aos cristãos-novos que então ocupavam influentes cargos municipais, nomeadamente de notários, vereadores, almotacés, juízes… Como diria o advogado de defesa de Maria Álvares:
- Entende provar que na dita vila os cristãos-novos andavam sempre nas eleições e requerimentos da dita vila e algumas pessoas disso se escandalizavam tanto que, com inveja, difamavam deles…
Resta dizer que não demorou muito a ser publicada uma lei proibindo os cristãos-novos de ocupar cargos municipais em Vila Flor, lei que depois se estendeu a todo o país. Quanto a Bernardo Lopes, terminou condenado em cárcere por 2 anos e abjuração veemente de seus erros em auto público da fé celebrado em 15.5.1558. Um pouco mais leve a sentença ditada no mesmo auto a sua mulher.
NOTAS:
1-A família de Maria Álvares era bastante conceituada em Bragança e um dos seus irmãos chamado Garcia Álvares, era médico em Vila Flor, viúvo de Benta Dias. E estes foram os pais do advogado Francisco Rodrigues da Silva que foi martirizado pela inquisição e do médico Luís Álvares da Silva, morador em Foz Lima, terra de sua avó Benta, ambos casados em Torre de Moncorvo com duas filhas do famoso advogado Dr. André Nunes.
2-A ligação da nobre família Sampaio à gente da nação hebreia era muito estreita e o feitor Bernardo Lopes não era o único cristão-novo que frequentava a “casa grande de Vila Flor”.
3-ANTT, inq. Lisboa, pº 5157, de Bernardo Lopes.
4-IDEM, pº 2893, de Maria Álvares.
5- IDEM, pº 1330, de Isabel Dias. Esta era mulher de 75 anos, apresentada como “judia e rabina e muito sabida nas coisas da lei de Moisés”, dizia perante os inquisidores que “ela ensinava as coisas dos judeus a todos os cristãos-novos de Entre Douro e Minho”. Era também parteira e foi acusada que “tinha circuncidado muitas infindas crianças”. Sabia orações e cantigas em hebraico, explicando-as depois em português. Negou-se a prestar juramento sobre o livro dos Evangelhos que tinha desenhada uma cruz e jurou apenas pelo Deus todopoderoso que fez o céu e a terra.
6- Mais incisivo ainda seria o defensor de Maria Álvares que, entre outros, apresentou o argumento seguinte: - O testemunho de Diogo Maçulo não lhe prejudica, por muitos defeitos que tem, que é homem muito criminoso e arrastado e preso por os mais crimes, e é degredado e infame (…) pelo que ainda que fosse verdade o que as testemunhas dizem, não se há de presumir que o fazia como judia, quanto mais que nunca tal fez.
António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães
in:jornalnoerdeste.com
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