segunda-feira, 9 de outubro de 2017

…quase poema… ou do garfo pesão

Por: Fernando Calado 
(colaborador do "Memórias...e outras coisas..."
O nosso Soto era o lugar onde começava o paraíso e os anjos passavam, ao entardecer, depois de uma longa caminhada…
…o céu devia ser assim um lugar com uma arca grande… onde se guardava o sal… e os almocreves do mundo se sentavam… a descansar… também devia ter dois francos redondos de rebuçados… que se vendem a tostão e a meio tostão… quem está no céu só come rebuçados de tostão, embrulhados em papel de arco-íris…
… entardecia… chega ao nosso Soto um espanhol… entrou no céu e comeu uma lata de atum com muita cebola… como por magia tirou do bolso um garfo estranho que também devia ser do céu… os nossos garfos eram todos feitos pelo tio Ferreiro… na sua forja… onde o ferro era rubro… e macio…
... o espanhol partiu… e miraculosamente deixou ficar o garfo de alpaca… pesado… bonito… enfim um garfo do céu… e como as coisas do céu devem ter nomes estranhos… desconhecidos… o garfo do espanhol… que também devia ser um anjo… começou a chamar-se: o garfo pesão… de tão pesado e tão bonito que era…
… e todos os irmãos queriam comer… na longa noite da candeia de azeite, com o garfo pesão
… mãe hoje é o meu dia de comer com o garfo pesão!
… sim meu filho… é o teu dia! E o abraço era longo… como o amor que só existe no coração das mães!
… mãe porque estás triste?... Porque todos os meus filhos querem comer com o garfo pesão e eu só tenho um garfo… e no coração de mãe não cabem tantas tristezas, de tantos filhos que querem comer com o garfo pesão.
… como por milagre o garfo pesão desapareceu… talvez tivesse regressado ao céu… para que a alegria voltasse à mesa larga… ao pão centeio… aos olhos das crianças… ao sorriso da mãe…
… as coisas acontecem no tempo certo… ou quando o coração nos dói mais à beira da saudade… e na semana passada, depois de tantos anos… o misterioso garfo pesão apareceu… esquecido no meio de tantos garfos na gaveta grande da irmã onde se guardam recordações infindas… que amaciam a tristeza!
… mãe, hoje sou eu que como com o garfo pesão!
… és meu filho!
… porque sorris?! Eugénia, minha mãe!… talvez porque hoje todos temos imensos garfos pesão… mas este é único… bendito espanhol… e de novo o garfo pesão regressou a minha casa… onde habitam todos os que partiram… e se guardam as memórias!
… bendito espanhol!
… e a tarde serenou!


Fernando Calado nasceu em 1951, em Milhão, Bragança. É licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto e foi professor de Filosofia na Escola Secundária Abade de Baçal em Bragança. Curriculares do doutoramento na Universidade de Valladolid. Foi ainda professor na Escola Superior de Saúde de Bragança e no Instituto Jean Piaget de Macedo de Cavaleiros. Exerceu os cargos de Delegado dos Assuntos Consulares, Coordenador do Centro da Área Educativa e de Diretor do Centro de Formação Profissional do IEFP em Bragança. 

Publicou com assiduidade artigos de opinião e literários em vários Jornais. Foi diretor da revista cultural e etnográfica “Amigos de Bragança”.

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