Salazar chegou ao poder cavalgando o medo da desordem, da incúria, da corrupção e do correlativo desastre orçamental, aparecendo como salvador da honra e garante da dignidade do país a que impôs, com a conivência de interesses político-económicos retrógrados, décadas de apagada e vil tristeza.
Pode parecer obtuso vir agora com esta memória para o tempo dito radioso do século de todas as promessas de harmonia e felicidade, a revelar-se fonte de misérias e horrores que quase nos deixam sem esperança em amanhãs nenhuns, no mundo todo e neste jardim de cinzas a meter medo ao próprio oceano. Mas não é, porque não se repetindo a história, a verdade é que os humanos têm uma propensão mórbida para recalcitrar, cada um e as comunidades com eles, numa vertigem de hedonismo que desdenha da ponderação e do bom senso que a experiência aconselha.
Com nove séculos de história a contemplar-nos, vemo-nos enredados em vergonhas que desanimam os entusiastas da democracia e ajudam ao crescimento do desleixo, até que inevitáveis tragédias tragam a dor imensa da negação de qualquer dignidade à nossa passagem por este mundo.
É penoso assistir quotidianamente à expressão da cupidez insana, mas arrogante, de quem chegou a conduzir os destinos do país, mas encarou a função como uma criança caprichosa, sem tino nem horizonte, qual narciso deleitado num pântano de podridão.
Ouvíramos falar de Calígula e de Nero em tempos longínquos, mas o seu poder não era propriamente resultante de processos democráticos. Não reconhecíamos como possível tal erupção sulfurosa nos dias das nossas vidas.
No entanto, a realidade parece não querer dar-nos razão. De qualquer modo, só teremos duas escolhas: a resignação ou o aprofundamento da cidadania, contribuindo para a elevação ética e moral das próximas gerações, que precisam de atenção aguda, mas serena, aos movimentos na realidade política, para não se deixarem enrodilhar em iniquidades que podem reconduzir-nos à miserável condição de bestas.
Se assim fosse, abrir-se-iam as portas ao surgimento de novíssimos redentores, vindos dos infernos, para acabar de vez com a obra imensa que tem sido o percurso civilizacional. A vida democrática comporta riscos que não se podem ignorar, mas também nos tem dado grandes alegrias, com todos os efeitos na dignidade, na construção do conhecimento, nos avanços técnicos e científicos que nos entusiasmam todos os dias.
Valerá a pena olhar para o outro lado da política, onde poderão surgir protagonistas em condições de apaziguar esta moinha que nos rói a alma e nos faz ficar de braços caídos de desilusão. Enquanto deixarmos que as decisões nos passem ao lado, não pedindo contas aos que elegemos e aceitarmos os ditames da obscuridade dos bastidores, estaremos a contribuir para a nossa própria desgraça.
Não é razoável queixarmo-nos das vergonhas da política, porque os políticos estão lá porque nós consentimos, só se mantêm se quisermos e só serão malevolentes se nós formos parvos.
Teófilo Vaz
in:jornalnordeste.com
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