Nasceu em Bragança, por 1598 e tinha uns 2 anos quando foi levado para o Rio de Janeiro, onde sua mãe foi cumprir o degredo imposto pela inquisição de Coimbra. (1) Ali se criou e apenas terá feito uma curta viagem ao Porto, pelos 12 anos, ao início da vida ativa. Casou com Francisca Coutinho, da família Baeça vinda de Castela para o Porto, um ramo da qual estabeleceu ligação a Torre de Moncorvo. A profissão de Miguel era mercador, um mercador de sucesso. A ponto de, em 1649, quando se criou a Companhia Geral de Comércio do Brasil, ter sido escolhido para administrador e tesoureiro da mesma em terras da América Latina.
Na origem desta Companhia, esteve um membro da Companhia de Jesus, o padre António Vieira, que a inquisição elegeu como seu maior inimigo público. E a grande maioria dos capitais da Companhia, proveio dos bolsos dos mercadores da nação hebreia. Estavam, pois, associados nesta empresa os “judeus” e os jesuítas.
Na cidade do Rio de Janeiro, Miguel Cardoso era então um dos homens de mais consideração e respeito, com acesso ao palácio do governador da capitania, o poderoso almirante Salvador Correia de Sá. Tinha lugar cativo no coro da igreja do colégio dos jesuítas e eram filhos e netos seus que tocavam órgão e harpa nas festas e solenidades religiosas. Da sua casa levavam assentos para as pessoas fidalgas ouvirem os sermões na igreja e da sua botica saíam mezinhas e remédios para os enfermos do colégio. Membro de todas as confrarias da cidade, notabilizou-se como juiz da irmandade de Nossa Senhora da Ajuda, à qual presidiu por 34 anos, promovendo as maiores festas e romarias da cidade. “Até os seus escravos levavam vantagem na doutrina” em relação aos outros! – Diria um padre jesuíta.
Imagina-se o embaraço do reitor do colégio e comissário da inquisição quando recebeu ordem de Lisboa para o mandar prender, por judeu! E do capitão Francisco Monteiro Mendes, familiar do santo ofício a quem foi cometida a tarefa.
Era o dia 22 de Fevereiro de 1661 e o capitão Monteiro fazia-se acompanhar de outro familiar do santo ofício, chamado Diogo Correia, mais velho e experiente. E esta será mais uma prova do embaraço que a situação provocava.
O ato da prisão foi seguido pelo sequestro dos bens do prisioneiro, a começar pela casa, cujas portas foram fachadas e seladas. (2) Para fazer o sequestro e necessária inventariação dos bens, foi requerido o ouvidor-geral e o trabalho prolongar-se-ia por 2 meses, o que dá ideia da sua complexidade.
Foi o preso levado para o “cárcere mais secreto da cadeia”. Porém, 3 dias depois, o comissário e os familiares do santo ofício decidiram tirá-lo da cadeia e metê-lo em um “cubículo” do colégio. Era um tratamento de favor, coisa nada usual na inquisição e que o familiar Monteiro Mendes justificou em carta para Lisboa, do seguinte modo:
- Por não me parecer muito decente a prisão para tal preso e com o receio que poderia comunicar por escrito ou por palavras e não muito segura a tal casa, e mais com a alteração deste povo…
Mais elaborada foi a justificação dada pelo comissário e reitor do colégio, o jesuíta António Fortes:
- Não podia evitar-se que com o decurso do tempo iria a falar com alguém, arriscado talvez a lhe darem peçonha os de sua nação, se porventura alguns deles se sentissem culpados (…) fui forçado a mudar-lhe a prisão.
No colégio esteve o prisioneiro até ao dia 7 de maio em que foi confiado ao mestre do navio Nª Sª da Assunção, que o entregou em Lisboa em 2 de outubro do mesmo ano de 1661.
Na base da prisão de Miguel Cardoso estavam duas denúncias. Uma feita em 1658 por Domingos Pimentel, cristão velho, morador no Rio de Janeiro e então de passagem por Lisboa, hospedado na “Estalagem da Casa dos Bicos”. Apresentou-se na inquisição e disse que estivera em Amesterdão onde um tal Gregório Mendes lhe perguntou se no Rio de Janeiro ainda se fazia a festa da Rainha Ester na ermida de Nª Sª da Ajuda. Acrescentou que havia fama de a casa de Miguel Cardoso servir de sinagoga dos judeus.
A outra denúncia foi feita por Afonso Munhoz de Lima, morador no Brasil, dizendo que “em outubro de 1649 se encontrou com Manuel Gomes Inigo, e com Miguel Cardoso, sogro do mesmo (…) e com Henrique da Paz…” e se declararam seguidores da lei de Moisés.
Claro que Miguel Cardoso se defendeu dizendo que tudo era mentira e que ele era cristão exemplar, apontando como testemunhas de defesa as pessoas mais gradas do Rio, quantidade de padres, incluindo o vigário geral, o comissário e familiares da inquisição.
A inquirição das testemunhas foi feita pelo reitor do colégio que então era já o padre Francisco de Avelar. Obviamente que o caso alimentava todas as conversas e muitas movimentações político-religiosas se ensaiavam. Como a do 3º familiar da inquisição que havia na cidade, Manuel Francisco Franco de seu nome e que, talvez despeitado e tentando ganhar “peso” na inquisição, escreveu uma carta para Lisboa dizendo que todos os padres da Companhia de Jesus eram amigos da família e frequentadores da casa de Miguel e até o próprio escrivão da diligência era suspeito e muito chegado a um genro do prisioneiro. Acrescentava que os parentes e amigos e “a muita gente da nação que aqui há poderosa (…) se dão os parabéns de que muito cedo será solto”. (3)
A acusação era bem pouco convincente e os próprios inquisidores reconheceram a debilidade da prova. Mas também notaram que duas testemunhas eram “de parentesco com o réu” e que, na verdade “entre o réu e o contraditado (Munhoz Lima) havia trato e amizade” e não “embustes e tramoias”, como a defesa alegou. Por isso o condenaram a tormento e depois a cárcere e hábito a arbítrio, saindo no auto da fé de 21.7.1665.
Não caberá nesta folha do jornal falar de todas as linhas tecidas pela sua família no seio da sociedade Fluminense da época. Bastará dizer que uma das suas filhas casou com Manuel Lopes Morais que era Secretário da Junta do Comércio no Rio de Janeiro, outra com o advogado João Álvares Figueiró e uma terceira com Manuel Gomes Inigo, um grande mercador. Dos filhos, o mais velho foi “senhor de engenho”, o que significa poder económico e elevado estatuto social. Teve o nome de Baltasar Rodrigues Coutinho, o qual foi casado com sua prima Beatriz Cardosa. O casal teve uma filha que batizaram com o nome de Lourença Coutinho e casou com o advogado João Mendes da Silva. E estes foram os pais de António José da Silva, o Judeu, um dos maiores dramaturgos nacionais, processado também ele pela inquisição.
Impossível fazer uma descrição da fortuna e vida comercial de Miguel Cardoso. Diremos tão só que tinha adquirido 3 lotes de terreno na Rua Direita (atual Rua 1º de Março), que então seria a mais comercial da cidade, onde se preparava para edificar 3 casas. Para isso tinha já ali as pedras talhadas para os portais e as varandas, pedras mandadas ir de Lisboa! Tinha uma plantação de cana-de-açúcar onde trabalhavam 8 escravos e dava umas 8 ou 10 caixas de açúcar; uma xácara de terras, “com pomar, horta e frutas da terra” e 2 escravos adstritos ao seu cultivo; 100 “braças de terra” no rio Iguaçu, 6 léguas distante da cidade. Era proprietário de uma barca equipada em permanência com 3 índios (escravos “de cabelo corredio”) e um escravo negro; uma lancha movimentada por 3 negros da Guiné e um “cabra”, indiano, feitor da lancha, com sua mulher, escrava da Guiné.
Todavia, o grosso da fortuna de Miguel Cardoso traduzia-se em escritos, sentenças e dívidas, ascendendo estas a mais de 14 contos de réis. De outra parte, o administrador da Companhia que lhe sucedeu reclamava que Miguel era devedor de 10 contos de réis, enquanto o genro Álvares Figueiró reclamava o pagamento da escritura de dote casamento no montante de 2 contos, 610 mil e 535 réis.
Notas e Bibliografia:
1-ANTT, inq. Coimbra, pº 7945, de Brites Cardosa.
2-ANTT, inq. Lisboa, pç 17999, de Miguel Cardoso. O familiar Monteiro Mendes escreveu: - Assim que o prendi, mandei logo recado ao ouvidor-geral, lançando mão das chaves e pondo guardas nas portas de dentro, que tinha, por onde se comunicava com duas filhas casadas que têm paredes meias, e com a mulher e mais filhos os mandei retirar a um aposento, por não falar o preso com eles.
3-Na verdade duas testemunhas eram da família de Miguel: o juiz ordinário, capitão Matias de Mendonça e o padre jesuíta Manuel de Araújo, vigário-geral e provisor eclesiástico.
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