quarta-feira, 9 de março de 2022

Da “vida social” em Bragança nos inícios dos anos de 1900

Para ajudar a caracterizar a vida do meio urbano e a sociedade – com "hierarquias" e relações e interações entre os seus membros –, também podemos lançar mão dos inevitáveis e abundantes registos sobre acontecimentos e "eventos" sociais, sobre "itinerários" de vida, sobre momentos importantes e marcantes, na existência de pessoas que mereciam destaque, sobre as suas movimentações, sobre as elites daqueles tempos.


A Pátria Nova alimentava a secção “Notas Pessoais”. São registos que falam de pessoas que daqui partem, que aqui chegam, que aqui permanecem. São, normalmente, pessoas que têm projeção na vida do Município, nas aldeias concelhias, nas vilas do Distrito, que se distinguem, pelo seu prestígio social, no mundo da governação, da cultura, dos negócios – proprietários e comerciantes, considerados abastados, que eram designados por "capitalistas".
Também se dá nota dos visitantes ilustres. Acontecimentos sociais, nascimentos, batizados, casamentos, mortes, promoções, transferências e deslocações ocupam um espaço importante. Os exemplos poderiam multiplicar-se: “regressou do Porto o sr. dr. Raul Teixeira”; "foi flanar ao Porto e assistir às festas o nosso Rodrigues de Paula"; e este comentário jocoso: "A vida está para estes".
Havia mesmo secções relacionadas com a vida mundana, que eram designadas em francês – o que lhes conferia um ar "mais seleto” –, como acontece no Jornal de Bragança. A coluna social, que se mantém depois da implantação da República, designa-se por "Carnet mondain". Integram-na secções como "Délivrances", "Partidas", "Doentes". É muito o que nos dizem sobre cerimonial e rituais, sobre regras de etiqueta, sobre normas sociais.
Muitas destas manifestações, das elites e dos grupos sociais mais favorecidos, continuam a ser marcadas, depois do 5 de Outubro de 1910, por normativos e critérios que vinham do período anterior.
De entre as inúmeras notícias, há aquelas que são alusivas à esfera política e aos seus agentes, com informações, mais ou menos significativas, sobre “movimentações” políticas – percursos, inflexões –, sobre acontecimentos das suas vidas. É assim que somos informados, por exemplo, da morte da mulher do Governador Civil, João de Freitas, nos finais de 1910. A Comissão Municipal, na sessão de 29 de dezembro, envia-lhe um telegrama de condolências. E ficamos a saber da participação do Governador Civil no casamento de António José de Almeida, realizado a 14 de dezembro, em Lisboa.
Raul Teixeira, no seu jornal de 1 de junho de 1910, não podia deixar de registar, com sarcasmo, as contradições e a incongruência de um ilustre republicano que vai ser membro da Comissão Municipal, e que era também figura de relevo na Cidade: Júlio Rocha, "denodado republicano e, pelos vistos, ex-furibundo livre-pensador e ateísta, foi na quinta-feira passada segurar nas varas do pálio…". Muito comentada esta "conversão ao credo apostólico".
Novas práticas, sinal dos novos tempos, que tinham implicações importantes na vida das pessoas – porque afetavam crenças ideológicas e religiosas, ou eram vistas como avanços civilizacionais – chegavam com celeridade.
Uma nota lacónica, a propósito do julgamento de um homicida, diz muito acerca das intenções laicistas dos novos líderes políticos: “já foi retirado da sala das audiências do Tribunal o livro que servia para o julgamento católico” (A Pátria Nova, de 22 de outubro de 1910).
Os casos de justiça que chegavam aos tribunais, alusivos a julgamentos mais ou menos sonantes, eram frequentemente noticiados. Eram tempos – e vão continuar a ser – em que ainda se dirimiam, com alguma frequência, “casos de honra” com ofensas corporais. Como se compreende, casos deste género, desde conflitos provocados por rivalidades políticas e ideológicas e por polémicas na imprensa, até crimes de sangue, encontravam espaço nas folhas locais que, assim, nos elucidam sobre práticas criminosas, sobre penas aplicadas, sobre os agentes que perpetram os crimes.
No tribunal é julgado José Manuel, o "gaiteiro" de Bragança, pelo crime de ofensas corporais contra sua mulher, "causando-lhe impossibilidade permanente no braço direito" – foi condenado a dois anos de prisão maior, ou na alternativa a três anos de degredo. Relata-se o julgamento de um réu, jardineiro de Bragança, por “atentado ao pudor em uma menina de dez anos”. Um caso de polícia, que não deixa de ser elucidativo, por estar relacionado com o progresso, com a “viação acelerada”: o capataz geral da linha férrea entregou à polícia dois rapazes “que andavam a tirar chumbo na Ponte do Remisquedo”, a cerca de duas léguas de Bragança. E um outro caso, dramático, – e que nos diz muito sobre as relações dos campos com a Cidade – de uma “pobre” mulher de Sacoias, que “apenas vivia do trabalho de tecedeira” e que perdeu, “atado num lenço”, uma “fortuna”, produto da venda de um boi”.

Título: Bragança na Época Contemporânea (1820-2012)
Edição: Câmara Municipal de Bragança
Investigação: CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade
Coordenação: Fernando de Sousa

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