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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

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COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira..
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

O Natal e o Mendigo das Ruas de São Paulo - Um Conto Feio e Patético

Por: Antônio Carlos Affonso dos Santos
(colaborador do "Memórias...e outras coisas..")
São Paulo - Brasil

Foto: Alexandre Severo/Editora Globo
Era véspera de Natal, de um ano qualquer. A noite já ia alta. Debaixo do viaduto trêmulo de concreto, metal e fuligem, um mocó (*) é refeito com o lixo do dia. Eu e o meu pensamento, vadios e libertos, invadimos o mocó daquele cidadão mendigo; ele, com sua habitual incredulidade solidária. 
Ali, gavetas sem fundo empilhadas e uma porta sem chave de um outrora guarda-roupa, fechavam imaginariamente a outra dimensão em que vivem os drogados e mendigos desta cidadesca megalópole. Ao lado do fogareiro, a álcool, uma caixa de papelão ocultava um edredom surrado e encardido, um descorado cobertor “corta-febre”, uma ou duas toalhas de rosto e uma troca de roupas (**). 
Numa caixa de madeira, resquícios de frutas, meio pacote de ração para cães, algumas batatas, uma cebola, uma cabeça de alho, seis pacotes de macarrão instantâneo e algumas latas tampadas; numa delas estava escrito: ”Açúcar”; em outra: “Arroz”, numa terceira: “Sal”! Em cima da caixa, um colchonete, que um dia teve estampas de flores vermelhas, agora amarronzadas. Num vão da coluna do viaduto, um rádio à pilha e um isqueiro, algumas velas, quase intactas, duas caixas de fósforo, além de um quadro com a Santa Luzia. 
A um canto, uma caixa de sapatos servia de depósito para quatro garrafas Pet de dois litros, cheias d´água. Ariel, o mendigo morador do mocó, originalmente registrado como João Batista de Deus, parece inseguro com minha presença. Ele não entendia o quê eu pretendia nessa visita. Na verdade eu quisera entender o porquê dele viver assim, qual o motivo que o levou a isso e, sobretudo, como ele consegue sobreviver, se alimentar e cuidar dos três cachorros vira-latas (***) que o acompanham, dentre eles o JOW, com essa grafia mesmo; onde a intenção era a de homenagear o multiartista Jô Soares, da TV. Nesse dia uma fina chuva caía sobre a terra de Piratininga. O barulho nas calhas do viaduto, que desaguavam logo além da entrada da casa improvisada, dava o tom do ambiente. Num fogareiro a álcool, Ariel fervia meio litro d água, para passar um café para nós; já que eu havia levado um saco com dez pãezinhos franceses, uma caixa de margarina, uma caixa de chocolates Suflair e um pacote de biscoitos de polvilho. O café, cujo pó – em pouca quantidade - estava acondicionado dentro de uma lata de leite Molico, dessas que tem tampa de plástico. Ele tomou duas colheradas, colocou-as no filtro de papel e a seguir, despejou a água fervente sobre o pó, o quê nos fez sentir um perfume maravilhoso. 
O café, recém- feito, foi servido em canecas esmaltadas. E ficou muito bom mesmo; até eu mesmo comi um dos pãezinhos que levara, com um pouco de margarina. Lembrei-me de que tinha em meu carro estacionado a certa distância, uma garrafa de vinho tinto, que havia trazido de Garibaldi, lá no Rio Grande do Sul. Achei que aquela era a hora; dei uma desculpa de que voltava logo e fui buscar o vinho! Ariel ficou feliz em ver a garrafa de vinho. Ele me disse que, no passado, bebia cachaça, mas que depois de uma crise hepática, houvera desmaiado e que os outros moradores de rua o haviam levado ao Hospital das Clínicas, onde foi atendido no Pronto Socorro e que depois ficou internado por quase um mês. No entanto disse que um pouco de vinho, cairia bem e não lhe faria mal! De repente, ocorreu-me: como iremos abrir a garrafa de vinho? Tão logo falei a esse respeito, Ariel me disse que sabia uma forma infalível de abrir qualquer garrafa com rolha: saiu da barraca, improvisada como casa, e voltou com um tijolo de barro queimado. A seguir, pegou no armário improvisado uma toalha pequena, dessas chamadas “de rosto”. Fez uma rodilha com a toalha e a colocou sobre o tijolo. Em seguida pediu que eu lhe passasse a garrafa; coisa que fiz automaticamente, sem entender. 
Ariel então pegou firmemente a garrafa pelo meio e aplicou vários golpes com o fundo da mesma sobre a rodilha.
-Pluuuuuuuufffffttttt!!!!!!!!!!!!!!; a rolha voou longe, caindo entre os cães famintos que lamberam a rolha, na vã esperança de que fosse algo comível. Ariel pegou duas canecas de alumínio e a colocou no chão coberto por uma toalha de mesa: ali estavam os pães, a margarina, o vinho e alguns chocolates.
Ariel rezou um Pai-Nosso; a seguir, abriu dois dos tabletes de chocolates que eu havia levado e os dividiu entre seus cães que, pelo abanar das caudas, pareceram felizes com o mimo.

-E a ceia foi servida, com a presença invisível do Deus Menino; naturalmente!

Glossário
. (*) mocó: esconderijo; tenda mal – feita, formada de restos de latas, tábuas, papelões, plásticos, panos e lonas.
. (**) troca de roupas: refere-se ao conjunto completo formado de peças do vestuário: calça, camisa, cueca, meias (peugas), botas e etc..
. (***) vira-latas: cão sem raça definida, ou com a mistura de várias delas. Denota algo sem nenhum valor! Pejorativamente também é usada para designar uma pessoa sem classe ou sem-vergonha.

Antônio Carlos Affonso dos Santos – ACAS. Nascido em julho de 1946, é natural da zona rural de Cravinhos-SP (Brasil). Nascido e criado numa fazenda de café; vive na cidade de São Paulo (Brasil), desde os 13. Formou-se em Física, trabalhou até recentemente no ramo de engenharia, especialista em equipamentos petroquímicos.  É escritor amador diletante, cronista, poeta, contista e pesquisador do dialeto “Caipirês”. Tem textos publicados em 9 livros, sendo 4 “solos” e cinco em antologias, junto com outros escritores amadores brasileiros. São seus livros: “Pequeno Dicionário de Caipirês (recém reciclado e aguardando interesse de editoras), o livro infantil “A Sementinha”, um livro de contos, poesias e crônicas “Fragmentos” e o romance infanto-juvenil “Y2K: samba lelê”. 

1 comentário:

  1. Ola Amigo António dos Santos!
    Gostei do seu conto de Natal e agradeço pelo seu email a respeito de outras obras suas.
    Contos de Natal trazem a magia de cada um dos seus criadores em memória das nossa sensações e atitudes Cristãs.
    Eu vivo em Natal (Cidade dos Reis Magos) que hoje completou 419 anos de vida e, infelizmente, já não é o que era, 40 anos atrás quando cá cheguei por mera coincidência, ou simples ironia do destino.
    Para a Noite de Consoada deste ano (Ceia da Familia Cristã) eu escolhi um pensamento de Jean-Paul Sartre: Familia é como varíola; a gente pega em criança e fica marcada para o resto da vida!
    BOM ANO NOVO PARA TODOS NÓS!

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