Ana dos Anjos, 80 anos, vive numa barraca rodeada de lixo. Foto: Olímpia Mairos/RR |
É às portas da cidade de Bragança, no bairro dos Formarigos, que vive uma das maiores comunidades ciganas do concelho. As famílias vivem em barracas e rulotes, em condições degradantes, no meio de escombros, montes de lixo e lama, ferro velho, cartões, brinquedos e amontoados de roupas espalhados pelo chão.
“É muito difícil viver aqui, principalmente quando vem a chover. Temos que andar aqui de galochas, e temos que levar os meninos ali, para aquele lado, para não irem todos atolados para a escola. Não há condições nenhumas, não temos casa de banho, não temos nada”, conta à Renascença Dolores Sofia que vive numa das quatro rulotes, instaladas em terreno da autarquia.
A cigana de 34 anos tem dois filhos e um terceiro está a caminho. Já viveu numa casa, ali ao lado, que ardeu há quase dois anos e só deseja que a habitação, que é da Câmara Municipal, possa ser recuperada ou, então, que lhe deem outra, nem que seja longe dali. “É esse o meu sonho. Ter uma casa, nem que seja longe daqui, para que os meus filhos possam crescer com condições”, afirma.
A mãe, Maria Alzira dos Santos, manifesta o mesmo desejo, lamentando tudo o que perdeu no incêndio e a ‘sorte’ de agora viver com o marido doente, numa roulotte sem condições.
“Tenho tanta pena de ter perdido tudo que me custou a arranjar”, desabafa, à medida que mostra a velha casa sem teto e ainda com toda a louça e roupas espalhadas pelos compartimentos. Alzira conta que continua a “pagar a renda à autarquia” e garante que tem a “conta da luz em dia”.
O marido é doente e já está reformado com uma pensão de 300 euros. As refeições, recebe-as diariamente de instituições da Igreja. “É a grande ajuda que temos. E a minha filha, agora, também já está a receber”, diz, acrescentando que a Cáritas diocesana também “ajuda e muito com roupas para as crianças”.
E importante, realça, é também o apoio e a presença constante do Serviço Diocesano das Migrações e Minorias Étnicas da Diocese de Bragança-Miranda, na pessoa da sua diretora. “Essa foi a nossa mãe, a mãe dos ciganos todos, porque é ela quem ‘bota’ a mão a tudo, porque tem bom coração. E nós temos que gabar quem tem bom coração”, conclui.
Foto: Olímpia Mairos/RR |
No bairro em frente, num terreno privado, está Ana dos Anjos. Tem 80 anos, veste de preto e vive numa barraca. Está sentada ao sol, na rua, em frente a uma fogueira feita de lixo, em frente à porta da barraca, onde dorme entre lenha e inúmeros objetos. Ao redor da barraca sobra lixo e mais lixo.
Ana é diabética, cardíaca e vive “em condições inqualificáveis”, conta Fátima Castanheira, do Serviço Diocesano, que vai vê-la frequentemente para “ver se toma os medicamentos e dar-lhe algum carinho”.
“Vem cá sempre ver-me. Pode estar onde estiver, mas vem sempre cá. Chega e beija-me, ao contrário das minhas filhas que não falam comigo. E quando preciso de alguma coisa é ela que me faz”, conta à Renascença. Ana vive de “pedir esmola e da reforma”. Tem onze filhos, mas lamenta que nenhum quer saber dela.
Um pouco mais à frente está Arlindo dos Santos, de 39 anos e Diana Carvalho, de 21. Têm dois filhos, o mais novo tem um mês e o mais velho 16 meses. Nenhum dos dois trabalha, contam com a ajuda dos vizinhos e referem que “não é fácil viver” nas condições em que vivem. Por entre alguns sorrisos e encolher de ombros vão dizendo que “o maior sonho era mesmo ter uma casa”.
Fátima Castanheira, diretora do Serviço Diocesano das Migrações e Minorias Étnicas. Foto: Olímpia Mairos/RR |
“Somos ciganos, mas de carne e osso como os outros”
Sonho idêntico manifestam também os ciganos instalados na antiga lixeira de Bragança, no cruzamento de Donai. Nesta comunidade vivem em barracas cerca de quatro a cinco famílias. Mesmo à entrada, um grande charco de água deixa antever as condições precárias em que vivem adultos e crianças.
Patrícia dos Anjos, tem 28 anos e dois filhos, um com dois anos, outro com seis. Diz que é complicado viver como vive e só anseia “sair daqui e dar um pulo para a frente”. “É complicado vivermos aqui e agora temos muito medo de ficar sem luz porque temos meninos pequeninos e no caminho mal se pode andar”, conta à Renascença.
A família é dependente do Rendimento Social de Inserção. Ninguém trabalha, não que não queiram, mas porque “ninguém dá trabalho aos ciganos”. “Há muito racismo aqui, em Bragança, e quando nos vamos oferecer para trabalhar, mesmo precisando, ao verem que somos ciganos não nos querem”, lamenta Patrícia.
“Nós já nos estamos a entregar à sociedade, também que nos deem mais um empurrãozinho porque, às vezes, as coisas não acontecem mais porque não se chegam a nós a pedir uma ajuda. Parece que nos têm medo”, acrescenta Eduarda Clarisse, de 51 anos.
“Somos ciganos, mas de carne e osso como os outros”, reclama, sentindo-se injustiçada por ser discriminada. “É verdade que nós vivemos do RSI, mas também vamos aos cursos e já temos os nossos filhos a estudar com os outros meninos. Também não precisam de nos discriminar quando vamos pedir trabalho”.
Dolores Sofia com a sobrinha. Foto: Olímpia Mairos/RR |
Igreja próxima dos ciganos
A diretora do Serviço Diocesano das Migrações e Minorias Étnicas, Fátima Castanheira, conhece os ciganos pelo nome e diz que há situações dramáticas, destacando o bairro dos Formarigos como a “situação que mais choca, nomeadamente algumas famílias que, de todo, nós não podemos aceitar nem podem viver com esta realidade”.
O Serviço Diocesano não tem fundos. Apoia no encaminhamento das situações, nomeadamente para o Rendimento Social de Inserção (RSI) e para a formação profissional. A missão do serviço diocesano, sublinha a responsável, “passa, também, por despertar a sociedade para estas situações e trabalhar e promover o bem de todos, porque, nós sabemos que, se estas realidades não existirem, é bem para eles e é bem para toda a sociedade”. “Estar com os mais pobres e os mais desfavorecidos é a missão que abraçamos e o nosso objetivo é ajudar”, realça.
E são várias as instituições da Igreja de Bragança-Miranda comprometidas no apoio às comunidades ciganas. Há centros sociais e paroquiais que disponibilizam refeições, por exemplo, e a Cáritas “ajuda com vestuário e géneros alimentícios”, conta Cristina Figueiredo. “Nós fazemos aquilo que podemos. Temos sempre muitas famílias de comunidades ciganas que nos pedem ajuda e vamos tentando responder àquilo que nós é possível”, realça.
No entender da técnica “só a vontade política pode solucionar” o problema dos ciganos em que “estão postos em causa os direitos humanos, os direitos das crianças, uma vez que sem condições de higiene”.
Da parte da comunidade cigana, a responsável pelo Serviço Diocesano das Migrações e Minorias Étnicas assinala “uma certa mudança, com mais elementos a passarem pela formação profissional e uma grande evolução em termos das crianças e da escola e da ligação da própria etnia à escola”.
“Neste momento todos os meninos estão na escola mesmo os do pré-escolar e a transformação está a fazer-se precisamente aí”, observa a responsável, sublinhando que em termos de aceitação no mercado de trabalho “ainda persiste o estigma”.
Foto: Olímpia Mairos/RR |
Deputadas visitam bairros ciganos. “É uma situação imoral”
Deputadas da Subcomissão Parlamentar para a Igualdade e não Discriminação deslocaram-se a Bragança para “ver in loco” a realidade das comunidades ciganas. A Subcomissão vai elaborar, até julho, um relatório sobre racismo, xenofobia e discriminação étnico-racial e em Bragança, a deputada relatora, Catarina Marcelino, mostrou-se surpreendida com o que encontrou.
“É inaceitável que em Portugal e no século XXI haja pessoa a viver nestas condições. Cabe-nos a nós, enquanto parlamentares, verificar e chamar a atenção de quem tem responsabilidades políticas e públicas sobre esta matéria para que a situação se altere”, afirma.
Segundo Catarina Marcelino, “há um estudo do Instituto de Habitação (IRU) que diz que Bragança é o local do país onde vivem mais comunidades ciganas em habitação não clássica, ou seja, em barracas e em acampamentos”. Ao lado, Helena Roseta, deputada da comissão, acrescenta que o que se vê é imoral.
“É uma situação imoral! Há pouco, um dos senhores destas casas disse-me: mas, então, é preciso virem de Lisboa para verem o que se passa em Bragança? Ele tinha razão na crítica que estava a fazer, mas nós, deputados, temos obrigação de ir a qualquer parte do país. Penso que precisamos de mais, de um olhar transversal. As soluções têm que ser locais, mas têm que ter financiamento nacional. Os municípios não têm capacidade, sozinhos, para dar conta destas situações”, refere a deputada.
Helena Roseta dá conta que um levantamento das carências habitacionais, feito a pedido do parlamento, dava conta que “no país existem à volta de 26 mil famílias” nestas condições, mas alerta que “os números podem ser bastante maiores”.
"Somos ciganos, mas de carne e osso como os outros". Foto: Olímpia Mairos/RR |
A parlamentar informa ainda que o mais recente programa que está à disposição das autarquias para estes casos “é o programa Primeiro Direito que financia realojamentos, seja qual for a razão da má condição habitacional ou a ausência da habitação”. “Para já, só há 40 milhões disponíveis, mas os municípios, para terem acesso ao financiamento, têm que apresentar uma estratégia de habitação”, realça.
O presidente da Câmara de Bragança, Hernâni Dias, revela que a autarquia fez um levantamento das famílias de etnia cigana, distribuídas pela cidade e duas ou três aldeias, com pelo menos uma centena de elementos.
A autarquia tem vindo a realojar algumas famílias em habitação social e na zona histórica, mas o autarca afirma que “esta é uma situação que o município não consegue resolver por si só e nós aguardamos que a nível da Assembleia da República algo seja feito para que haja verbas, haja programas específicos que possam ajudar a resolver este tipo de questões”.
O autarca assinala ainda que está a decorrer “um programa de integração onde todas as crianças do pré-escolar e do primeiro ciclo estão devidamente integradas nas escolas para que possam trabalhar e possam desenvolver o seu processo de integração mais normal”.
Foto: Olímpia Mairos/RR |
Olímpia Mairos
Sou jornalista na Renascença desde 1990. Olho a realidade, capto a teia da vida e transmito a essência. Recebi da ARIC três prémios em jornalismo com as reportagens: “O valor da solidariedade” (1988), “Na saga da desertificação” (2000) e “Os comboios e a paisagem” (2001).
Em 2015 fui surpreendida com a Medalha de Mérito Municipal da autarquia de Chaves, pelo desempenho “com notoriedade na área do jornalismo, assumido com notabilidade, ao longo de 27 anos”.
Faço o que gosto, porque gosto muito do que faço! E a reportagem é mesmo a menina dos meus olhos. Gosto de andar no terreno, palmilhar estradas e caminhos, para ouvir as pessoas e as suas histórias, captar sons e cheiros, dar voz a vivências, angústias, revoltas, mas também lançar para o infinito das possibilidades os seus sonhos e projetos.
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