Museu Judaico de Carção, antes da reconstrução |
No dito ano de 1664, na mesma inquisição, se foi apresentar Francisco Rodrigues, o Sargento,(2) filho daquele e pai de Bernardo Rodrigues. Mandado embora, foi preso 20 anos mais tarde, saindo penitenciado no auto-da-fé de 9.6.1686.
Tios e tias de Bernardo, 6 ou 7 passaram igualmente pelas cadeias da inquisição, o mesmo acontecendo com seus irmãos e irmãs, cunhados e cunhadas. Em Carção, ficou apenas a mãe. Dois irmãos e uma cunhada foram queimados nas fogueiras do auto-da-fé de 25.11.1696: António Rodrigues, Atanásio Rodrigues e Helena Rodrigues.(3)
Fiquemos em Carção, no mês de Junho de 1693, quando a inquisição de Coimbra lançou uma verdadeira operação de limpeza da heresia judaica da aldeia, fazendo prender, de uma só vez, umas 22 pessoas. Imagine-se a quantidade de familiares da inquisição, autoridades civis e militares, padres e beatos mobilizados para executar tantas prisões! Atente-se nos leilões de bens dos presos, de modo a fazer dinheiro para pagar as despesas da viagem e também os ferros e cordas com que os prenderam, as jornas aos homens que os levaram presos para Coimbra e o aluguer das bestas para o transporte!
Entre os prisoneiros contou-se Bernardo Rodrigues(4) e vários membros da sua família. Obviamente que as casas, terras, couros… os bens que tinham foram sequestrados e leiloados na praça pública. A Bernardo Rodrigues, foram ainda sequestrados 39 mil réis em dinheiro. Vale a pena contar, pois é caso exemplar de como os leilões funcionavam.
Dois anos antes, a inquisição prendera seu irmão Francisco Rodrigues e seu cunhado João Fernandes Roldão.(5) E indo à praça os seus bens (uma casa, uma horta, um macho e bens móveis, quantidade de couros) Bernardo e os irmãos os arremataram. Como não tinham dinheiro suficiente, pediram a Francisco Dias, de Argoselo, ficando a dever-lhe 86 mil réis. Para além disso, o mesmo Francisco Dias largou a Bernardo uns couros que ele arrematara, para com eles se governar, comprometendo-se Bernardo “a lhe pagar, assim como fosse fazendo o dinheiro e ao tempo de sua prisão tinha juntos 39 mil réis para lhe entregar, os quais deu, à ordem do juiz de fora, ao comissário para seus alimentos”.(6)
Chegado a Coimbra, Bernardo foi metido na cela com 3 companheiros de Carção, algo que o regimento desaconselhava e que é significativo de como a cadeia estava a abarrotar. Mais tarde, meteram na cela um padre de Torre de Moncorvo, certamente a desempenhar o papel de espia: José Camelo de Meireles, abade de Fornos.
A primeira sessão foi destinada a perguntas sobre a sua genealogia e inventário dos bens. Aqui, Bernardo só apresentou dívidas. Para além dos 86 mil réis a Francisco Dias, de Argoselo, disse que estava devendo ao tendeiro André Rodrigues 6 mil réis ”que lhe emprestou na ocasião da morte do seu pai”, mais 9600 réis a João Francisco, familiar do santo ofício de Braga “de fazendas que lhe deu fiadas para tratar” e mais a um mercador do Porto que lhe fornecia fazendas para vender na loja, que seria da família.
Dos motivos da prisão de Bernardo, diremos que várias pessoas disseram que com ele se tinham declarado e feito jejuns judaicos, especialmente celebrando o Kipur. Veja-se apenas uma dessas denúncias, feita por sua cunhada, Catarina Lopes:
— Disse que haverá 7 anos que os fará em setembro que vem, em uma das varandas de Francisco Rodrigues, sargento, no dia grande, das 11 para o meio-dia, se achou com Luísa Lopes, sua cunhada e com Francisco, Bernardo, António e Atanásio, irmãos, presos, e com Apolónia Dias, presa, filha de António Rodrigues e Maria Dias, defunta, todos juntos à sombra da dita varanda, e entraram nela Isabel Dias, mulher de Baltasar Lopes, presa, e Inês Lopes, já defunta, mulher de João Fernandes Roldão e a dita Isabel Dias ofereceu tremoços a todos e estes não quiseram aceitar.(7)
Outra série de denúncias respeitou a esmolas que Bernardo deu a várias pessoas para fazerem jejuns judaicos por alma de seu pai, falecido por 1690. Vejamos, a propósito, a denúncia feita por Belchior Pires:
— Depois da morte do pai de Bernardo Rodrigues, este lhe disse que não rezava o padre-nosso nem ave-maria por alma de seu pai, por não serem orações convenientes para isso, e ainda que lhe tivesse mandado fazer os sufrágios na igreja, foi para que o mundo não tivesse que dizer, mas que se não fiava neles e que mandara fazer muitos jejuns judaicos e dava por cada, um tostão, pão e peixe às pessoas que os faziam, e rezava muitas orações judaicas.
Não vamos analisar o processo. Diremos tão só que, ao fim de ano e meio de prisão, Bernardo entrou numa situação de loucura e desespero, tão horrível que chegava a comer os próprios excrementos, vindo a falecer em 20.3.1695. A doença foi acompanhada pelos médicos da inquisição que na “certidão de óbito” escreveram o seguinte:
— A sua morte fora natural e causada por achaques de melancolia e impaciência de que se deixou vencer e vieram a parar em um tremor universal, em uma convulsão mortal, do qual acha que faleceu.
Acompanhado pelos médicos na sua loucura e desespero, também o foi por um frade dominicano “que lhe assistiu na morte, que o absolveu sob condição, por não dar lugar concludente e aperto da doença, no decurso da qual mostrou o dito preso que estava teimoso e chegou a fazer extremos porque comia nas esteiras o excremento próprio e disseram os seus companheiros que se quisera enforcar”.
Bernardo morreu mas o processo continuou, julgando-se a sua “memória, fama e fazenda”. Para isso mandaram os inquisidores investigar se Bernardo era falto de juízo ou tinha “juízo e entendimento capaz de pecar”. Dos vários depoimentos, escolhemos o de João Tomé, que disse:
— Que conheceu Bernardo Rodrigues desde o seu nascimento e que fora sempre de bom entendimento e capaz de pecar; que somente há 12 anos, por espaço de 15 dias, se conheceu que o réu tinha alguma falta de juízo, por andar algumas vezes de noite a cavalo pelas ruas, sem necessidade de o fazer.
Terminou o processo no auto-da-fé de 14.6.1699 com a execução da sentença pronunciada 4 meses antes:
— Os inquisidores… mandam que em detestação de tão grave crime, seus ossos sejam desenterrados, feitos pelo fogo em pó e cinza, por ordem da justiça secular a quem o relaxam e sua estátua e seu nome…
NB. – Cumpridos mais de 3 anos de contínua colaboração neste jornal, pensam os autores ser razoável tirar umas férias, suspendendo a sua colaboração por algum tempo. Aos leitores assíduos, pedimos compreensão. Obrigado.
Notas:
1 - ANTT, inq. Coimbra, pº 6034.
2 - Idem, pº 4830.
3 - Idem, pº 7396, de António Rodrigues; pº 4395, de Atanásio Rodrigues; pº 7094, de Helena Rodrigues.
4 - Idem, pº 7077.
5 - Idem, pº 364, de Francisco Rodrigues, o moço; pº 4840, de Francisco Fernandes Rodão, viúvo de Inês Lopes.
6 - Pº 7077: — Bernardo Rodrigues (…) disse que ele, sua mãe e seus irmãos são obrigados a pagar 86 mil réis a Francisco Dias, curtidor de Argoselo, procedidos de couros e mais bens que arrematou ao fisco e foram de seu irmão Francisco Rodrigues, o moço, os quais bens largou a ele confitente para ganhar sua vida e lhe pagar assim como fosse fazendo o dinheiro, e ao tempo de sua prisão tinha juntos 39 mil réis para lhe entregar, os quais deu à ordem do juiz de fora ao comissário, para seus alimentos. E que ele e seus irmãos estavam de posse de umas casas que foram de João Fernandes, preso e de uma horta defronte das ditas casas, as quais partem com as de Atanásio Rodrigues, irmão dele declarante e um macho e móveis que foram do dito Francisco Fernandes, preso e confiscado, sobre os quais deu ele 50 mil réis que está devendo a Francisco Dias, que lhe emprestou.
7 - Idem.
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