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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Guerra Junqueiro: "A Mãe"

 Estava uma mãe muito aflita, sentada ao pé do berço do seu filho, com medo que lhe morresse. A criancinha pálida tinha os olhos fechados. Respirava com dificuldade, e às vezes tão profundamente, que parecia gemer; mas a mãe causava ainda mais lástima do que o pequenino moribundo.

Nisto bateram à porta, e entrou um pobre homem muito velho, embuçado numa manta de arrieiro. Era no inverno. Lá fora estava tudo coberto de neve e de gelo, e o vento cortava como uma navalha.

O pobre homem tremia de frio; a criança adormecera por alguns instantes, e a mãe levantou-se a pôr ao lume uma caneca com cerveja. O velho começou a embalar a criança, e a mãe, pegando numa cadeira, sentou-se ao lado dele. E contemplando o seu filhinho doente, que respirava cada vez com mais dificuldade, pegou-lhe na mãozinha descarnada e disse para o velho:

- Oh! Nosso Senhor não o há de levar! não é verdade?

E o velho, que era a Morte, meneou a cabeça de uma maneira estranha, em ar de duvida. A mãe deixou pender a fronte para o chão, e as lágrimas corriam-lhe em fio pela cara. Sentiu-se estonteada com um grande peso de cabeça; estava sem dormir havia três dias e três noites. Passou ligeiramente pelo sono, durante um minuto, e despertou sobressaltada a tremer de frio.

- Que é isto! exclamou, lançando à volta de si o olhar alucinado. O berço estava vazio. O velho tinha-se ido embora, roubando-lhe a criança.

***

A pobre mãe saiu precipitadamente, gritando pelo filho. Encontrou uma mulher sentada no meio da neve, vestida de luto. “A Morte entrou-te em casa, disse-lhe ela. Via sair a correr levando teu filho. Anda mais depressa que o vento, e o que ela furta nunca o torna a entregar.”

- Por onde foi ela? gritou a mãe. Dize-mo pelo amor de Deus!

- Sei o caminho por onde ela foi, respondeu a mulher vestida de preto. Mas só te ensino, se me cantares primeiro todas as canções que cantavas ao teu filho. São lindas, e tens uma voz harmoniosa. Eu sou a Noite e muitas vezes t'as ouvi cantar, debulhada em lágrimas.

- Cantar-te-ei todas, todas, mas logo, disse a mãe. Agora não me demores, porque quero encontrar o meu filho.

A Noite ficou silenciosa. A mãe então, desfeita em lágrimas, começou a cantar. Cantou muitas canções, mas as lágrimas foram mais do que as palavras.

No fim disse-lhe a Noite: “Toma à direita, pela floresta escura de pinheiros. Foi por aí que a Morte fugiu com o teu filho.”

A mãe correu para a floresta; mas no meio dividia-se o caminho, e não sabia que direção havia de seguir. Diante dela havia um matagal, cheio de silvas, sem folhas nem flores, de cujos ramos pendia a neve cristalizada.

***

- Não viste a Morte que levava o meu filho? perguntou-lhe a mãe.

- Vi, respondeu o matagal, mas não te ensino o caminho, senão com a condição de me aqueceres no teu seio, porque estou gelado.

E a mãe estreitou o matagal contra o coração; os espinhos dilaceraram-lhe o peito, de onde corria sangue. Mas o matagal vestiu-se de folhas frescas e verdejantes, e cobriu-se de flores numa noite de inverno frigidíssima, tal é o calor febricitante do seio de uma mãe angustiosa.

E o matagal ensinou-lhe o caminho que devia seguir. Foi andando, andando, até que chegou à margem de um grande lago, onde não havia nem barcos, nem navios. Não estava suficientemente gelado para se andar por ele, e era demasiadamente profundo para se passar andando. Contudo, querendo encontrar o seu filho, era necessário atravessá-lo. No delírio do seu amor, atirou-se de bruços a ver se poderia beber toda a água do lago. Era impossível, mas lembrava-se que Deus, por compaixão, faria talvez um milagre.

- Não! não és capaz de me esgotar, disse o lago. Sossega, e entendamo-nos amigavelmente. Gosto de ver pérolas no fundo das minhas águas, e os teus olhos são de um brilho mais suave do que as pérolas mais ricas que eu tenho possuído. Se queres, arranca-os das orbitas à força de chorar, e levar-te-ei à estufa grandiosa, que está do outro lado: essa estufa é a habitação da Morte; e as flores e as árvores que estão lá dentro, é ela quem as cultiva; cada flor e cada árvore é a vida de uma criatura humana.

- Oh! o que não darei eu, para reaver o meu filho! disse a mãe. E apesar de ter já chorado tantas lágrimas, chorou com mais amargura do que nunca, e os seus olhos destacaram-se das orbitas e caíram no fundo do lago, transformando-se em duas pérolas, como ainda as não teve no mundo uma rainha.

O lago então ergueu-a, e com um movimento de ondulação depositou-a na outra margem, aonde havia um maravilhoso edifício, com mais de uma légua de comprido. De longe não se sabia se era uma construção artística ou uma montanha com grutas e florestas. Mas a pobre mãe não podia ver nada; tinha dado os seus olhos.

- Como hei de eu reconhecer a Morte que me roubou o meu filho! bradou ela desesperada.

- A Morte ainda não chegou, respondeu-lhe uma boa velha, que andava de um lado para o outro, inspecionando a estufa e cuidando das plantas. Como vieste tu aqui parar? quem te ensinou o caminho?

- Deus auxiliou-me, respondeu ela. Deus é misericordioso. Compadece-te de mim, e dize-me onde está o meu filho.

- Eu não o conheço, e tu és cega, disse a velha. Há aqui muitas plantas e muitas árvores, que murcharam esta noite: a Morte não tarda aí para as tirar da estufa. Deves saber, que toda a criatura humana tem neste sítio uma árvore ou uma flor, que representam a sua vida e que morrem com ela. Parecem plantas como quaisquer outras, mas tocando-lhes, sente-se bater um coração. Guia-te por isto, e talvez reconheças as pulsações do coração de teu filho. E que davas tu por eu te ensinar o que tens ainda de fazer?

- Já não tenho nada que te dar, disse a pobre mãe. Mas irei até ao fim do mundo buscar o que tu quiseres. - Fora daqui não preciso de nada, respondeu a velha. Dá-me os teus longos cabelos negros; tu sabes que são belos, e agradam-me. Trocá-los-ei pelos meus cabelos brancos. - Não pedes mais nada do que isso? disse a mãe. Aí os tens, dou-te de boa vontade.

E arrancou os seus magníficos cabelos, que tinham sido outrora o seu orgulho de rapariga, recebendo em troca os cabelos curtos e inteiramente brancos da velha.

Esta levou-a pela mão à grande estufa, onde crescia exuberantemente uma vegetação maravilhosa.

Viam-se debaixo de campânulas de cristal jacintos mimosíssimos ao lado de peônias inchadas e ordinárias. Havia também plantas aquáticas, umas cheias de seiva, outras meio murchas, e em cujas raízes se enovelavam cobras asquerosas.

Mais longe erguiam-se palmeiras soberbas, carvalhos e plátanos frondosos; depois num outro sítio isolado havia canteiros de salsa, tomilho, hortelã e outras plantas humildes que representavam o gênero de utilidade das pessoas que elas simbolizavam.

Havia ainda grandes arbustos em vasos demasiadamente estreitos, que pareciam rebentar; mas viam-se também floresitas insignificantes, em vasos de porcelana, na melhor terra, circundadas de musgo, tratadas com esmero delicadíssimo. Tudo isso representava a vida dos homens, que a essa hora existiam no mundo, desde a China até à Groenlândia.

A velha queria mostrar-lhe todas estas cousas misteriosas, mas a mãe impacientada pediu-lhe que a levasse ao sítio onde estavam as plantas pequeninas; tateava-as, apalpava-as, para lhes sentir o bater do coração, e, depois de ter tocado em milhares delas, reconheceu as pulsações do coração do seu filho.

- É ele! exclamou, lançando a mão a um açafroeiro, que, pendido sobre a terra, parecia completamente estiolado.

- Não lhe toques, disse a velha. Fica neste sítio; e quando a Morte vier, que não tarda, proíbe-lhe que arranque esta planta; ameaça-a de arrancar todas as flores que estão aqui. A Morte terá medo, porque tem de dar conta delas a Deus. Nenhuma pode ser arrancada sem o seu consentimento.

Nisto sentiu-se um vento glacial, e a mãe adivinhou que era a Morte, que se aproximava.

- Como é que deste com o caminho? perguntou-lhe a Morte. Chegar ainda primeiro do que eu! Como o conseguiste?- Sou mãe, respondeu ela.

E a Morte estendeu a sua mão ganchosa para o pequenino açafroeiro.

Mas a mãe protegia-o violentamente com ambas as mãos, tendo o cuidado de não ferir uma só das pequeninas pétalas. Então a Morte soprou-lhe nas mãos, fazendo-lhas cair inanimadas. O hálito da Morte era mais frio do que os ventos enregelados do inverno.

- Não podes nada comigo! disse a Morte. - Mas Deus tem mais força do que tu, respondeu a mãe. - É verdade, mas eu não faço senão aquilo que ele manda. Sou o seu jardineiro. Todas estas plantas, árvores e arbustos, quando começam a murchar, transplanto-as para outros jardins, um dos quais é o grande jardim do Paraíso. São regiões desconhecidas; ninguém sabe o que se lá passa.

- Misericórdia! misericórdia! soluçou a mãe. Não me roubem o meu filho, agora que acabo de o encontrar! Suplicava e gemia. A Morte conservava-se impassível; agarrou então instantaneamente em duas flores lindíssimas e disse à Morte: Tu desprezas-me, mas olha, vou arrancar, despedaçar não só esta, mas todas as flores que estão aqui!

- Não as arranques, não as mates, bradou a Morte. Dizes que és desgraçada, e querias ir partir o coração de outra mãe!- Outra mãe! disse a pobre mulher, largando as flores imediatamente. - Toma, aqui tens os teus olhos, disse a Morte. Brilhavam tão suavemente que os tirei do lago. Não sabia que eram teus. Mete-os nas orbitas, e olha para o fundo deste poço; vê o que ias destruir, se arrancasses estas flores. Verás passar nos reflexos da água, como numa miragem, a sorte destinada a cada uma dessas duas flores, e a que teria tido o teu filho, se porventura vivesse.

Debruçou-se no poço, e viu passar imagens de felicidade e alegria, quadros risonhos e deliciosos, e logo depois cenas terríveis de miséria, de angústias e de desolação.

- Nisto que eu vejo, disse a mãe aflitíssima, não distingo qual era a sorte que Deus destinava ao meu filho.

- Não posso dizer-te, respondeu a Morte. Mas repito-te, em tudo isto que te apareceu viste o que no mundo havia de suceder ao teu filho.

A mãe desvairada, lançou-se de joelhos exclamando: Suplico-te, dize-me: era a sorte infeliz a que lhe estava reservada? Não é verdade! Fala! Não me respondes? Oh! na duvida, leva-o, leva-o, não vá ele sofrer desgraças tão horríveis. O meu querido filho! Quero-lho mais que à minha vida. As angústias que sejam para mim. Leva-o para o reino dos céus. Esquece as minhas lágrimas, as minhas súplicas, esquece tudo o que fiz e tudo o que disse.

- Não te compreendo, respondeu a Morte: Queres que te entregue o teu filho ou que o leve para a região desconhecida de que não posso falar-te! Então a mãe alucinada, convulsa, torcendo os braços, deitou-se de joelhos e dirigindo-se a Deus exclamou: Não me ouças, Senhor, se reclamo no fundo do meu coração contra a tua vontade que é sempre justa! Não me atendas meu Deus!

E deixou cair a cabeça sobre o peito, mergulhada na sua agonia dilacerante.

E a Morte arrancou o pequenino açafroeiro, e foi transplantá-lo no jardim do paraíso.

Fonte: 
Guerra Junqueiro: "Contos para a Infância", Publicado originalmente em 1877.

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