Descobertas espectaculares e avanços na análise de ADN reescrevem a história evolutiva da nossa espécie e oferecem um novo retrato dos misteriosos “outros humanos” que os nossos antepassados encontraram quando se disseminaram pela Europa e pela Ásia.
 |
MARK THIESSEN - Quando o Homo sapiens apareceu, há cerca de 300 mil anos, pelo menos outras seis espécies humanas já caminhavam no planeta. Aqui, no estúdio do paleoartista John Gurche, é possível ver modelos dessas seis linhagens (a partir da esquerda): H. naledi, H. heidelbergensis, H. floresiensis, H. erectus, H. longi e H. neanderthalensis. |
Nas profundezas da gruta da cobra, nas montanhas isoladas da região nordeste do Laos, o feixe do frontal do capacete de Eric Suzzoni reflectiu na rocha estéril até iluminar algo invulgar: dezenas de ossos e dentes sobressaindo de uma camada de rocha e sedimentos.
Este especialista em espeleologia que ostenta a tatuagem de um tigre no braço gritou para chamar o seu colega Sébastien Frangeul. Era a primeira incursão dos exploradores franceses na Gruta da Cobra. Tinham acabado de escalar 20 metros de uma escarpa de calcário, subindo desde o nível da floresta até à entrada da gruta com os seus companheiros improváveis: um par de adolescentes de chinelos de praia. Os rapazes hmong conheciam o terreno em redor da gruta e as cobras que lhe deram nome e que, por vezes, se escondiam no interior. No entanto, pouco depois de chegarem à caverna, os exploradores encontraram o que parecia um conjunto de fósseis antigos.
Eric e Sébastien sondavam esta gruta em busca de informações para uma equipa internacional de paleontólogos que escavavam em sítios vizinhos. Os cientistas estudam estas montanhas há mais de 15 anos em busca de pistas sobre um dos mistérios mais profundos da evolução humana: quando terá aqui chegado o Homo sapiens? E que outros seres humanos terá encontrado?
 |
Justin Jin - As grutas da montanha de Pa Hang (em primeiro plano) encerram pistas fundamentais sobre o passado ancestral da humanidade. Quando uma equipa internacional de investigadores escavou estes sítios, tornou-se claro: o Homo sapiens não estava sozinho. |
Quando Eric regressou para examinar a gruta no dia seguinte, na companhia de um dos geólogos da equipa de investigação, a sua tarefa consistiu em soltar uma amostra de sedimento da parede da gruta. Enquanto batia na parede com um escopro, um dente grande e castanho caiu – um molar que parecia estranhamente humano. Eric ficou maravilhado com o espécime e enfiou-o no bolso da camisa.
De volta ao acampamento-base, reuniu-se com o líder da equipa de investigação, o paleontólogo Fabrice Demeter, da Universidade de Copenhaga, e com Clément Zanolli, um especialista em dentes antigos da Universidade de Bordéus. Eric descreveu aquilo que vira na Gruta da Cobra e mostrou-lhes o dente de animal que retirara do sedimento. Em seguida, meteu a mão no bolso. “Trouxe-vos outra coisa”, disse.
 |
Justin Jin - O paleontólogo Fabrice Demeter (ajoelhado) e a sua equipa de especialistas trabalham na gruta de Tam Pa Ling desde 2009. Descobriram restos fragmentados de sete Homo sapiens, o mais antigo com 30.000 anos, uma data anterior ao principal êxodo do H. sapiens de África. |
Clément, que usava um chapéu de Indiana Jones, debruçou-se para ver mais de perto. “O dente, nada desgastado, estava bem preservado”, recorda. “Soube imediatamente que era humano.” Mas que tipo de humano? Era demasiado grande e com contornos irregulares para pertencer a um Homo sapiens contemporâneo. E embora se assemelhasse superficialmente a um dente de neandertal, nunca tinham sido identificados com segurança restos mortais dessa espécie na Ásia Oriental. Os cientistas trocaram olhares de perplexidade: quem seria o dono deste dente misterioso?
Um molar no Laos, uma mandíbula no planalto do Tibete, o fragmento de um dedo na Sibéria. A nossa história evolutiva está a ser reescrita por achados minúsculos, iluminados por uma ciência em rápido avanço com inovações na área da genética antiga, no estudo das proteínas e na datação radioactiva. A torrente de informações muda o conhecimento das nossas origens e desafia a noção daquilo que significa ser humano.
 |
Justin Jin - O espeleólogo Eric Suzzoni (à esquerda) e a paleontóloga e exploradora da National Geographic Laura Shackelford inspeccionam uma pequena gruta em Tam Neun, relativamente perto da montanha de Pa Hang. |
Os oito mil milhões de pessoas deste planeta pertencem a uma única espécie. Nós, Homo sapiens, somos os últimos hominídeos da Terra. Até há pouco tempo, a crença geral defendia que os seres humanos modernos tinham seguido um trajecto evolutivo relativamente linear quando saíram de África, um trajecto separado – e implicitamente superior – ao das outras espécies. Mesmo na actualidade, uma das mais indeléveis imagens da evolução é a chamada Marcha do Progresso, uma ilustração que mostra os nossos antepassados a melhorarem a sua postura enquanto progridem para o Homo sapiens, caminhando rumo ao futuro.
A actual reviravolta no pensamento evolutivo despedaçou essa visãoorganizada e linear das origens humanas e começou a substituí-la por uma imagem mais complexa. Os paleontólogos sabem agora que há 70.000 a 40.000 anos, uma fase crítica do nosso desenvolvimento evolutivo, existia enorme variedade humana. À medida que o Homo sapiens se dispersou pela Europa e pela Ásia, foi encontrando outros tipos de humanos e miscigenou-se ocasionalmente com eles. A prova conclusiva desta miscigenação chegou em 2010, quando o paleogeneticista sueco Svante Pääbo cartografou pela primeira vez o genoma neandertal. O seu trabalho provou que os neandertais e o Homo sapiens procriaram e que esse intercâmbio genético teve consequências profundas e duradouras. Actualmente, mais de 40.000 anos após a extinção dos neandertais, a maioria dos seres humanos ainda possui vestígios do seu ADN. Mas quem mais terá partilhado o planeta connosco? E de que modo as nossas interacções com esses humanos moldaram o rumo da nossa própria evolução e da sua extinção?
➖➖➖
Um molar no Laos, uma mandíbula no planalto do Tibete, o fragmento de um dedo na Sibéria. A nossa história evolutiva está a ser reescrita, com a ajuda de novos achados e novas tecnologias.
➖➖➖
 |
Justin Jin - Este crânio de Homo sapiens descoberto na gruta de Tam Pa Ling pela equipa de Fabrice Demeter em 2010 tem, no mínimo, 46.000 anos. |
Uma das pistas mais reveladoras proveio de uma gruta na Sibéria, onde os investigadores descobriram um fragmento de dedo mindinho, mais pequeno do que uma ervilha. As temperaturas gélidas da gruta de Denisova preservaram o ADN dos fósseis de neandertal ali descobertos. Contudo, este osso, com mais de 60.000 anos, era diferente. Quando Svante e a sua equipa analisaram o seu ADN, aperceberam-se de algo espantoso: o fóssil pertencia a uma espécie humana completamente desconhecida e desaparecida.
Os denisovanos, como a equipa de Pääbo os apelidou, tornaram-se o primeiro grupo humano identificado apenas pelo seu ADN – uma espécie-fantasma, nome que os especialistas dão àquelas que não possuem uma identidade física. Havia mais fósseis contendo o seu ADN na gruta de Denisova, incluindo o osso de uma rapariga, filha de um pai denisovano e de uma mãe neandertal – o único hominídeo híbrido de primeira geração alguma vez descoberto.
A partir deste fragmento de dedo, os geneticistas conseguiram rastrear ADN denisovano em populações contemporâneas de todo o mundo, desde a Islândia ao Peru, com concentrações particularmente elevadas na Papua Nova-Guiné, a 8.900 quilómetros da gruta de Denisova. É provável que um reforço do sistema imunitário tenha também ajudado o Homo sapiens a dispersar-se pelo mundo. Os paleontólogos estão agora convencidos de que estes “eventos de fluxo genético” não foram uma anomalia, mas sim um factor essencial da evolução, ajudando o Homo sapiens a adaptar-se a novos ambientes e deixando na maioria de nós uma ligação biológica directa a grupos extintos de seres humanos ancestrais.
 |
Justin Jin - Um molar descoberto por Eric Suzzoni pertence aos esquivos denisovanos. |
Apesar de todos os avanços na investigação genética e das proteínas, a compreensão de como os genes denisovanos chegaram à Papua Nova-Guiné ou a razão pela qual neandertais e denisovanos, após quase meio milhão de anos de existência, desapareceram aquando da chegada do Homo sapiens, exigirá mais fragmentos de ossos e dentes antigos. Passado mais de um século de escavações, o registo fóssil dos nossos parentes mais conhecidos, os neandertais, é comparativamente escasso, pois inclui fósseis de cerca de quatrocentos indivíduos. O registo denisovano é infimamente pequeno. Todos os fósseis denisovanos alguma vez encontrados caberiam dentro de uma caixa de pão e ainda sobraria espaço.
No planalto do Tibete, na província chinesa de Gansu, numa gruta aberta numa escarpa a cerca de 3.280 metros acima do nível do mar, um local de oração budista tornou-se um foco notável de descoberta científica. Muito antes de os ossos ali encontradosse tornarem valiosos para os investigadores contemporâneos, eram moídos para medicamentos tradicionais e elixires. Por isso, é quase um milagre que uma mandíbula antiga descoberta na gruta cársica Baishiya em 1980, agora conhecida como mandíbula de Xiahe, ainda sobreviva. O monge que descobriu o osso levou-o ao seu líder, o sexto Buda Vivo Gung-Thang, que o ofereceu a cientistas chineses. A mandíbula esteve durante anos numa prateleira, quase esquecida e por identificar. Há alguns anos, porém, inspirada pelas descobertas realizadas na Sibéria, a arqueóloga Dongju Zhang, da Universidade de Lanzhou, juntou-se a alguns colegas para tentar descobrir o enigma da identidade do osso.
 |
Jaime Jones - Outra espécie humana viveu no planalto do Tibete, no final do Plistocénico: os denisovanos. Fragmentos de ossos e ferramentas descobertos na gruta cársica de Baishiya fornecem pistas sobre como esta espécie, actualmente extinta, sobreviveu. Vestígios do seu ADN existentes nos seres humanos actuais dizem-nos que se adaptaram para sobreviver a grandes altitudes e que se miscigenaram e conviveram com os nossos antepassados, como se pode ver nesta cena que representa uma mãe Homo sapiens com um clã de denisovanos. |
➖➖➖
A partir do fragmento de um dedo, geneticistas conseguiram rastrear ADN denisovano em populações contemporâneas de todo o mundo, desde a Islândia ao Peru.
➖➖➖
Dongju tinha então pouco mais de trinta anos e o osso estivera na universidade ao longo de quase toda a sua vida. A investigadora iniciou uma escavação delicada na gruta cársica de Baishiya, acompanhada pelos monges. No entanto, enfrentou vários obstáculos. A confusa história oral da mandíbula não especificava o local exacto onde fora encontrada, no interior da gruta. Ainda mais confuso era o facto de a mandíbula não conter vestígios de ADN. A única informação que fornecia vinha da crosta carbonatada fixa à sua superfície, cuja datação com urânio-tório indicou um mínimo de 160.000 anos. A mandíbula era, de longe, o vestígio mais antigo da presença humana alguma vez descoberto no planalto do Tibete. Era intrigante, mas não deixava Dongju mais perto de identificar o fóssil.
Numa viagem de trabalho que fez à Europa em meados de 2016, ansiosa por encontrar ajuda, a investigadora reuniu-se com um aluno de pós-graduação que testava então um método de análise que prometia ir além do ADN. Frido Welker tinha apenas 25 anos, mas já estava a fazer inovações num campo em desenvolvimento, a paleoproteómica, que funciona como uma máquina que permite viajar ao passado distante. Este holandês despenteado explicou a Dongju como analisava proteínas antigas que permaneciam nos fósseis durante muito mais tempo do que o ADN – por vezes, mais de dois milhões de anos.
As proteínas seguem padrões definidos pelo ADN, por isso funcionam como ADN-sombra, ecoando informação muito depois de o material original ter desaparecido. Apesar disso, Frido advertiu Dongju que a extracção de proteínas é um processo invasivo, pois implica abrir um orifício num fóssil e não oferece garantias de sucesso. “Senti uma grande responsabilidade com este precioso fóssil”, recorda Dongju. “Mas tínhamos de descobrir o que era e eu já não tinha mais opções.”
➖➖➖
Todos os fósseis denisovanos alguma vez encontrados caberiam dentro de uma caixa de pão e ainda sobraria espaço.
➖➖➖
 |
Justin Jin - Recentemente, cientistas e investigadores juntaram-se a monges budistas, depois de uma arqueóloga da Universidade de Lanzhou ter decidido examinar as origens de uma mandíbula antiga descoberta na gruta há quatro décadas. |
O último recurso acabou por se tornar a primeira grande oportunidade de Frido Welker, aquilo a que ele chama uma “oportunidade científica” para o seu campo emergente. A amostra de proteína foi extraída na China, e Frido, actualmente na Universidade de Copenhaga, analisou-a com um espectrómetro de massa num laboratório alemão. Os padrões da proteína de colagénio descobertos na mandíbula confirmaram que o fóssil era, efectivamente, denisovano.
A revelação assinalou a primeira vez que um ser humano antigo era identificado unicamente através de proteínas. Além disso, a mandíbula era a primeira evidência da existência de denisovanos encontrada fora da gruta de Denisova, enriquecendo o panorama de uma espécie sobre a qual quase nada se sabia. As inovações continuaram e a história dos denisovanos no planalto do Tibete foi sendo preenchida. Um ano após a sua descoberta, Dongju Zhang e a sua equipa descobriram vestígios de ADN denisovano na gruta cársica de Baishiya. No Verão passado, Frido e os seus colegas chineses voltaram a usar a proteómica – e um osso da costela denisovano – para mostrar que a gruta foi intermitentemente habitada, ao longo de mais de cem mil anos, por denisovanos que matavam e consumiam uma grande variedade de animais selvagens. “É uma experiência única acrescentar uma peça a um puzzle”, diz Frido. “Cada peça nova muda a disposição de tudo o resto.”
O seu trabalho de identificação da mandíbula permitiu que os denisovanos tivessem agora um “ponto de ancoragem”, um osso capaz de funcionar como base de comparação para outros fósseis, quer se encontrassem numa colecção chinesa coberta de pó ou numa gruta no Laos. Era exactamente disto que Fabrice Demeter precisava. Ele ainda procurava formas de extrair informação do molar misterioso da Gruta da Cobra, mas não havia ADN viável no dente. Fabrice só conseguiu confirmar que o dente era humano e pertencera a uma jovem rapariga há 160 milénios.
 |
Justin Jin - Crianças da aldeia de Long Gua Pa participam numa sessão de lavagem de fósseis com a equipa de Fabrice Demeter. A paleontóloga Anne-Marie Bacon usa o livro A Guide to Large Mammals of Thailand para explicar os achados feitos nas grutas da montanha de Pa Hang. |
Todavia, quando soube que Dongju Zhang e Frido Welker estavam prestes a publicar um artigo desvendando a mandíbula denisovana, Fabrice intuiu que ele e Clément Zanolli poderiam comparar o seu molar com os dois dentes da mandíbula. Descobriram que um dos dentes era praticamente idêntico ao molar da Gruta da Cobra. Era uma correspondência morfológica, não incontestavelmente genética, mas Fabrice sentiu-se validado. “Talvez tenhamos tido sorte”, disse-me quando a sua equipa se reuniu na gruta no Laos. “Mas estamos a escavar aqui há 21 anos! O nosso trabalho vai ser finalmente recompensado.”
A Gruta da Cobra é o terceiro sítio do mundo onde foi encontrado um fóssil denisovano. Também foi o primeiro descoberto num ambiente subtropical, cerca de 1.600 quilómetros a sul da gruta cársica de Baishiya, situada a grande altitude no planalto do Tibete e 3.200 quilómetros a sudeste da gélida gruta de Denisova, sugerindo que os denisovanos percorreram longas distâncias e adaptaram-se a muitos ambientes diferentes. À medida que outros marcadores geográficos denisovanos forem confirmados e a sua localização e cronologia continuarem a sobrepor-se às de outros humanos – sobretudo neandertais e Homo sapiens – mais peças do puzzle genético vão entrando no sítio.
➖➖➖
A identificação de uma mandíbula permitiu que os denisovanos tivessem agora um “ponto de ancoragem”, um osso capaz de funcionar como base de comparação para outros fósseis, quer se encontrassem na China ou no Laos.
➖➖➖
 |
Justin Jin - Um monge budista na gruta cársica de Baishiya, onde os monges rezam há séculos. |
Em 2014, a geneticista Emilia Huerta-Sánchez, da Universidade de Brown, fez um achado surpreendente sobre ADN antigo: ela descobriu que o EPAS1, o gene que ajuda os tibetanos a viverem confortavelmente a grandes altitudes sem padecerem de hipoxia, não veio dos seres humanos modernos, mas dos denisovanos. O dedo mindinho da gruta de Denisova forneceu-lhe a única correspondência de ADN quase perfeita. Por isso, quando Frido e Dongju confirmaram, em 2019, que os denisovanos tinham habitado o planalto, a ligação fez todo o sentido.
Os tibetanos aproveitaram este gene, embora possuam apenas um pequeno resquício de ADN denisovano, argumenta Emilia. E chegaram ao planalto dezenas de milhares de anos após a miscigenação. “Não precisamos de muito ADN arcaico para nos ser útil mais tarde”, diz a especialista, que está actualmente a estudar um gene denisovano prevalecente no continente americano. Até uma pequena quantidade “tem enorme repercussão sobre as pessoas, como acontece com os tibetanos”, diz.
As consequências da miscigenação ancestral ainda são mal compreendidas. No entanto, especialistas em genética como Emilia Huerta-Sánchez defendem que cumpriram um propósito evolutivo essencial. Aqueles acasalamentos não se limitaram a injectar uma diversidade genética muito necessária nas populações do Homo sapiens. O fluxo genético proporcionou atalhos evolutivos aos seres humanos modernos que lhes permitiram adaptar-se mais depressa a ambientes extremos, como a hipoxia no Tibete. É provável que este reforço do sistema imunitário tenha ajudado o Homo sapiens a dispersar pelo mundo.
Por outro lado, as consequências nem sempre foram benignas. Os cientistas descobriram que alguns dos genes herdados dos neandertais e dos denisovanos se encontram associados à depressão, ao autismo ou à obesidade. Além disso, a miscigenação não parece ter ajudado os neandertais e os denisovanos. Embora vestígios do seu ADN perdurem em nós, os seus genomas não mostram quaisquer traços dos seres humanos modernos e alguns cientistas crêem que a miscigenação com o Homo sapiens pode até ter acelerado o seu desaparecimento.
➖➖➖
Em 2014, foi descoberto que o EPAS1, o gene que ajuda os tibetanos a viverem confortavelmente a grandes altitudes sem padecerem de hipoxia, veio dos denisovanos.
➖➖➖
 |
Justin Jin - Quando examinada pela arqueóloga Dongju Zhang e por Frido Welker, um especialista em proteínas antigas, a mandíbula da gruta cársica de Baishiya foi datada de há pelo menos 160.000 anos e confirmada como denisovana, determinando uma nova localização para a espécie. |
Ludovic Slimak vive obcecado com o momento em que o Homo sapiens poderá ter afastado as outras espécies humanas do quadro evolutivo. O paleontólogo da Universidade de Toulouse III tem perseguido os fantasmas dos neandertais desde o Corno de África ao círculo árctico. Há um quarto de século que ele e a mulher, a arqueóloga Laure Metz, passam muito do seu tempo a escavar na gruta de Mandrin, no Sul de França, que foi habitada em momentos diferentes há mais de 42.000 anos pelo Homo sapiens e por alguns neandertais. Não é uma mera saliência rochosa. A história humana que conta é “realmente universal”, diz Ludovic. “Uso os neandertais como espelhos para tentarmos ver-nos a nós próprios com mais clareza.”
Descalço, Ludovic está a meio de um solilóquio animado sobre a extinção dos dinossauros quando o seu filho de 7 anos irrompe pela sua casa de pedra situada no sopé dos Pirenéus. “Olha o que encontrei, papá!” O rapaz despeja uma pilha de ossos na mesa da cozinha. Ludovic inspecciona o tesouro. Os ossos são restos de um veado. Pai e filho juntam-nos de forma a compor um esqueleto. Ludovic vê reflexos de si no seu filho: “Passei a minha vida numa demanda pelas nossas origens.”
 |
Justin Jin - Depois de confirmarem a existência de denisovanos na gruta cársica de Baishiya, Dongju (primeiro plano) e a sua equipa têm escavado em busca de mais indícios sobre actividade humana ancestral. Perante um público constante composto por monges e peregrinos, descobriram evidências de, no mínimo, cinco denisovanos na gruta. |
A demanda levou-o a estudar o período em que o Homo sapiens saiu de África, entrando nos territórios habitados por neandertais, denisovanos e outros humanos tardios: as espécies-fantasma. Foi um momento crucial. Os últimos indivíduos de algumas espécies protagonizavam então o seu próprio caminho, mas essas experiências fugazes perderam-se. Ludovic ambiciona conhecê-las de uma perspectiva genética, mas também comportamental.
No sótão com vigas expostas da sua casa medieval, Ludovic mostra-me fragmentos de sílex descobertos na gruta de Mandrin. “Quando pegamos em ferramentas neandertais, todas são singulares”, diz, apontando para as variações de forma, cor e tamanho. Vivendo em grupos pequenos isolados na Europa, os neandertais possuíam criatividade e sensibilidade para o seu meio, sem paralelo com outras espécies primitivas de Homo sapiens, cujas ferramentas e armas eram praticamente idênticas do Levante à Europa Ocidental. Os neandertais “percebiam o mundo e interagiam com ele de formas completamente diferentes do Homo sapiens”, argumenta Ludovic.
A descoberta de um dos últimos neandertais da Europa na gruta de Mandrin levou este explorador da National Geographic a pensar com mais profundidade sobre as naturezas divergentes do Homo sapiens e dos neandertais e como estas podem ter acabado por causar o desaparecimento dos últimos. O esqueleto, ao qual chamouThorin em homenagem ao rei-anão de “O Hobbit”, foi descoberto há uma década. A equipa vem escavando lentamente desde então, utilizado pinças para remover grãos de areia e fragmentos de osso. Volvidos nove anos, recuperaram partes do crânio de Thorin, 31 dentes e um grande número de ossos minúsculos que permanecem por identificar.
➖➖➖
À medida que outros marcadores geográficos denisovanos forem confirmados, mais peças do puzzle genético vão encaixando no seu lugar.
➖➖➖
 |
Justin Jin; Laure Metz (mosaico de imagens) - O paleontólogo Ludovic Slimak, que estuda neandertais e as suas possíveis interacções com o Homo sapiens, mostra duas ferramentas: a mais pequena pertenceu ao Homo sapiens e a outra aos neandertais, ambas datadas de há 54.000 anos, altura em que o H. sapiens chegou à Europa Ocidental. O H. sapiens seguia um processo repetitivo para fabricar ferramentas, como as que se vêem ao lado de uma moeda. |
A raiz de um dente ainda possui ADN viável, que continha uma informação extraordinária, só recentemente revelada. O grupo de Thorin habitou a gruta de Mandrin há cerca de 42.000 anos e passara os 50.000 anos anteriores em isolamento genético, sem se cruzar com outros neandertais que viviam a alguns vales de distância. Para Ludovic, era mais uma evidência de uma linhagem neandertal mais profunda e de quão diferentes os neandertais eram dos seres humanos modernos.
Ludovic considera que o derradeiro encontro dos neandertais e dos sapiens assinalou um ponto de viragem na história evolutiva, um momento que se encontra fixado nas paredes da gruta de Mandrin. A sua colega, a arqueóloga Ségolène Vandevelde, analisou os depósitos de fuligem deixados nas paredes da gruta por fogueiras e descobriu que o último fogo aceso na parte da gruta outrora habitada pelos neandertais ocorrera menos de um ano antes do fogo acendido pelos primeiros Homo sapiens. Quer tivesse ou não havido um encontro físico, Ludovic considera que este momento, há cerca de 42.000 anos, foi o ponto de não-retorno. O facto de os neandertais terem desaparecido aquando da chegada de uma vaga de Homo sapiens, não foi “uma infeliz coincidência”.
Há muitos anos que os paleontólogos e os arqueólogos discutem as causas da extinção dos neandertais e continuarão certamente a fazê-lo em relação aos denisovanos, à medida que a sua cronologia e disseminação geográfica se forem tornando mais claras. Denisovanos e neandertais parecem ter desaparecido do registo fóssil aproximadamente na mesma altura. Existe entre os cientistas um consenso crescente sobre a hipótese de o desaparecimento dos neandertais ter sido maioritariamente causado por uma crise demográfica (o decréscimo de uma população com diversidade genética limitada), exacerbada por alterações climáticas e pelo aparecimento de um rival poderoso, o Homo sapiens.
 |
Ratno Sardi, Universidade Griffith - Esta cena de caça com 44.000 anos, registada em Sulawesi, na Indonésia, é uma das obras de arte pictórica mais antigas que existem. Achados de novos humanos na Ásia levaram os especialistas a passar em revista os fósseis e artefactos de seres humanos primitivos. |
A miscigenação também pode ter desempenhado um papel. Chris Stringer, paleontólogo do Museu de História Natural em Londres e explorador da National Geographic, sugere que as fêmeas de neandertal podem ter sido absorvidas por grupos dominantes de Homo sapiens, empurrando os neandertais para o abismo demográfico.
O desaparecimento dos neandertais, dos denisovanos e de outros grupos, há cerca de 40.000 anos, assinalou o final de milhões de anos durante os quais diversos grupos caminharam sobre a Terra. A época actual é uma anomalia histórica e Chris adverte-nos para não sermos arrogantes quanto ao nosso estatuto de últimos sobreviventes. Os neandertais e os denisovanos sobreviveram durante quase meio milhão de anos. O Homo erectus durou quase dois milhões de anos. À velocidade que avançamos, que sucesso teremos daqui a 2.000 anos ou daqui a um milhão?
A mente de Ludovic continua fixada no desaparecimento dos neandertais, que ele prefere não atribuir ao clima em mudança ou a uma fragilidade demográfica. O Homo sapiens levou os neandertais a “desaparecerem de uma forma praticamente instantânea dos anais da arqueologia”, diz. Não há necessidade de negarmos a nossa culpa colonialista ou de procurarmos conforto nas cadeias de ADN neandertal que vivem dentro de nós. Mesmo após meio milhão de anos no planeta, a criatividade e isolamento dos neandertais não tinham a menor possibilidade de vencer a hipereficiência e as redes sociais do Homo sapiens. Nas suas palavras, “foi uma conquista plena”.
➖➖➖
O paleontólogo Chris Stringer sugere que as fêmeas de neandertal podem ter sido absorvidas por grupos dominantes de Homo sapiens, empurrando os neandertais para o abismo demográfico.
➖➖➖
De volta a um arrozal na região nordeste do Laos, Eric Suzzoni conduz a equipa de cientistas de Fabrice Demeter em direcção a uma nova gruta situada vários quilómetros a norte do seu acampamento-base. A equipa internacional tem trabalhado na mesma montanha ao longo das duas últimas décadas, escavando um conjunto de grutas que forneceu um trio raro de espécies humanas ancestrais: além de descobrir o molar denisovano, a equipa escavou fósseis de Homo sapiens antigos numa gruta e um dente com 130.000 anos noutra, provavelmente de um Homo erectus. “É um resultado incrível, mas estamos a examinar apenas um sítio”, diz Laura Shackelford, da Universidade do Illinois Urbana-Champaign e exploradora da National Geographic que começou a trabalhar com a equipa do Laos em 2008. Os restos denisovanos “têm de estar por todo o lado e nós ainda não os encontrámos”.
O futuro… do passado distante parece residir na Ásia, região que Fabrice descreve como “uma tela em branco comparada com a Europa”. Começou com a espantosa descoberta de duas minúsculas populações de “hobbits” (o Homo floresiensis na Indonésia em 2003 e o Homo luzonensis nas Filipinas em 2019). No entanto, o foco mudou agora para a China. Desde que a mandíbula de Xiahe foi identificada em 2019, os paleontólogos chineses apressaram-se a reexaminar vastas colecções de fósseis do país, limpando o pó aos seus “casos arquivados”, para verificar se também poderiam conter relíquias denisovanas. Dois maxilares arcaicos (um escavado a oeste de Pequim e o outro recolhido em dragagens realizadas no estreito de Taiwan) são fisicamente parecidos com a mandíbula de Xiahe. Caso a sua identidade seja confirmada, como se espera, isso significará que os denisovanos habitavam toda a Ásia continental, concentrando-se, provavelmente, no actual território chinês.
Os investigadores chineses começaram a reformular pressupostos antigos sobre quando nos teremos separado dos outros hominídeos. Um recente estudo filogenético de um crânio chinês recuou em 300.000 anos a nossa separação dos neandertais e dos denisovanos, abalando convicções de longa data sobre se o nosso antepassado comum terá sequer vivido em África. Depois, também temos o crânio de Harbin. Descoberto em 1933 por um operário no Nordeste da China e escondido num poço durante o resto do século XX, o fóssil com 146.000 anos poderá pertencer a um indivíduo relativamente mais próximo dos humanos modernos do que dos neandertais ou dos denisovanos – uma pista fascinante que nos leva mais perto de descobrir a identidade do nosso antepassado comum.
Alguns cientistas crêem que o crânio de Harbin talvez represente um ramo da família denisovana ou mesmo uma linhagem completamente diferente. Os paleontólogos locais deram uma designação distintamente chinesa a esta linhagem: Homo longi, ou Homem-Dragão. O crânio de Harbin foi, aliás, a base para o modelo construído pelo paleoartista John Gurche.
 |
Mark Thiessen - Este modelo, baseado no crânio de Harbin, um fóssil quase intacto que alguns investigadores pensam ser denisovano, foi criado para a National Geographic pelo paleoartista John Gurche. Descoberto no Nordeste da China, pensa-se que terá, no mínimo, 146.000 anos. |
Durante os últimos anos, Pequim investiu muito em laboratórios de genética e paleoproteómica e numa nova geração de cientistas, tentando eliminar as suas lacunas na área da investigação em relação ao Ocidente. Ao contrário do Laos, a China não permite que os fósseis humanos saiam do país para serem analisados, nem disponibiliza muito acesso ou transparência aos cientistas estrangeiros. No entanto, muitos jovens cientistas chineses, como Dongju Zhang, promovem o espírito de colaboração. No Verão passado, ela convidou uma dezena de cientistas estrangeiros, incluindo Frido Welker e Fabrice Demeter, a participarem num seminário sobre denisovanos na região ocidental da China. “Não podemos trabalhar e publicar sozinhos”, diz Fabrice. “Eu preciso da ajuda deles e eles precisam da nossa.”
➖➖➖
A criatividade e isolamento dos neandertais não tinham a menor oportunidade de vencer a hipereficiência do Homo sapiens.
➖➖➖
Ao aventurarem-se na nova caverna do Laos (chamada Tam Neun), Eric Suzzoni e a equipa de cientistas entraram no reino de um passado distante. O tempo ficou suspenso. E os vestígios de cheias ancestrais tornaram-se evidentes. Nas profundezas da gruta, o geólogo Philippe Duringer apontou o frontal do seu capacete a múltiplas camadas finas de calcário que cobriam veios grossos de sedimentos e rocha, conhecidos como brecha. “Aquele depósito demorou milhares de anos a formar-se, mas os sedimentos fluíram até aqui num único evento, talvez num só dia”, afirmou. No fundo da gruta, pequenas sombras surgiram na parede. São silhuetas de ossos e dentes antigos sobressaindo da brecha, sepultados naquele dia há mais de 50.000 anos. Eric deitou-se de costas para baixo e contorceu-se até à câmara mais profunda da gruta, com a cara a centímetros do tecto incrustado de fósseis. Talvez, com alguma sorte, consiga fazer outro achado que mude o mapa da evolução humana.
Artigo publicado originalmente na edição de Fevereiro de 2025 da revista National Geographic.
Sem comentários:
Enviar um comentário