O dia amanheceu pálido, com o sol a tentar atravessar a neblina que ainda se agarrava às encostas da aldeia. O vento carregava o cheiro da terra molhada, das folhas secas e da lenha que já ardia nas lareiras. Mas, por entre o silêncio da manhã, um rumor começou a percorrer Outeiro como um sussurro que crescia em tensão. Cavalos ao longe, trombetas abafadas e o som pesado de botas a baterem sobre pedras.
O mensageiro apareceu na praça central, exausto, coberto de lama e suor, e mal conseguiu articular as palavras:
- Eles… eles vêm… os Castelhanos marcham em direção a Outeiro!
O murmúrio percorreu a aldeia como um incêndio. As mulheres recolheram as crianças, os homens verificavam as armas e as portas. Cada rosto carregava medo, mas também determinação. Ninguém queria mostrar fraqueza, nem para si mesmo, nem para os vizinhos.
Tomé sentiu o coração a bater mais rápido. A responsabilidade pesava sobre os seus ombros como o ferro que carregava na oficina. Ele olhou para Maria, que apertou a sua mão com força, tentando transmitir coragem.
- Tomé…, disse ela, a voz firme, mas com um leve tremor: -Temos que estar prontos. Hoje, mais do que nunca.
- E se não for suficiente? Respondeu ele, quase sussurrando. E se não conseguirmos defender-nos?
Maria inclinou-se, apoiando a testa contra a dele por um instante:
- Então lutaremos juntos. Por todos nós.
Enquanto isso, João subia pelas colinas, observando a aproximação dos invasores. Os seus olhos examinavam cada detalhe, a posição dos cavalos, a velocidade da marcha, a organização das tropas. Regressou à aldeia com passos rápidos, trazia notícias e instruções:
- Não podemos subestimá-los. Eles vêm em força, mas conhecemos cada pedra, cada trilho. Se soubermos usar o terreno, cada um de nós pode tornar-se um obstáculo mortal.
As ruas fervilhavam de movimento. Alguns homens transportavam barris de pedra, cortavam troncos para reforçar as portas, afiaram lanças e espadas. As mulheres preparavam comida, curativos e carregavam cestos de ervas. Até as crianças recebiam pequenas tarefas, levar água, vigiar portas, ajudar os mais velhos e, apesar da ansiedade, sentiam-se importantes.
No meio da confusão, surgiam pequenos dramas humanos, ciúmes velados, rivalidades antigas, histórias de amor que floresciam discretamente entre o medo e a tensão. Tomé notou o olhar de Maria para a figura do João, enquanto ele, por sua vez, parecia dividido entre orgulho pela coragem da aldeia e preocupação com a jovem curandeira.
O velho Tiago reuniu todo o povo no centro da praça. A sua presença transmitia autoridade, experiência e calma, mesmo quando o vento gelado cortava a pele dos mais frágeis:
- Ouçam-me bem! Disse, a voz firme e grave, ecoava entre as pedras. O que se aproxima não é apenas nosso inimigo. É um teste da nossa coragem, da nossa união, da nossa lealdade uns aos outros. Hoje, cada homem e cada mulher de Outeiro deve lembrar-se que não lutamos apenas por nós mesmos, mas por nossas famílias, pela aldeia e por aqueles que virão depois de nós.
Ele fez uma pausa, e olhou nos olhos de cada um:
- Cada passo que derem em direção a eles será pela memória daqueles que deram as suas vidas para proteger este lugar. Não falhem com eles. Não falhem com vós mesmos.
As palavras penetraram nos corações de todos. Tomé sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha. Maria segurou a sua mão novamente, e João apertou os punhos, como se o próprio aço das suas lanças se transformasse em determinação.
O dia passou entre preparativos e observações. Tomé treinava movimentos rápidos de espada e defesa. João explicava emboscadas e estratégias aos mais jovens; Maria cuidava dos feridos, curava pequenas feridas e mantinha todos alerta para qualquer sinal de ataque. O velho Tiago percorria a aldeia, corrigindo posições, reforçando alguns planos e contando histórias antigas para lembrar a todos o que estava em jogo.
Quando o sol começou a declinar, sombras alongaram-se pelas ruas e campos, a aldeia sentiu algo ainda mais pesado do que o cansaço, a consciência de que o verdadeiro teste estava prestes a começar. Os primeiros sinais concretos da aproximação inimiga chegaram com um clarão de armas refletindo o pôr do sol e o estrondo distante de cascos batendo no chão.
O silêncio da aldeia tornou-se quase insuportável. Cada aldeão sentia o coração disparar. Tomé olhou novamente para o canhão sobre o cavalete, imaginando os homens que ali lutaram antes dele, homens que transformaram a Matança em símbolo. Ele sabia que, no dia seguinte, todos precisariam mais do que coragem, precisariam de fé uns nos outros, de força e de memória.
Naquela noite, enquanto o vento trazia o som distante de trombetas e cascos, o povo de Outeiro dormiu com o coração apertado, consciente de que, ao amanhecer, o chão que pisavam poderia tornar-se num campo de batalha.
Continua...
N.B.: Este conto tem como base a "Lenda" de Outeiro "A Matança". A narrativa e os personagens fazem parte do mundo da ficção. Qualquer semelhança com acontecimentos ou pessoas reais, não passa de mera coincidência.

Sem comentários:
Enviar um comentário