O sol de inverno erguia-se tímido sobre Bragança, lançando reflexos pálidos na neve acumulada. As muralhas estavam cobertas de gelo, e o frio cortava como lâminas invisíveis. Mas naquela manhã, ninguém tinha ficado em casa. O rumor espalhara-se pelas ruas, o Guardião das Portas, Afonso, convocara o povo à praça para revelar um segredo escondido durante séculos.
A multidão amontoava-se diante do pelourinho. Homens cobertos de capotes, mulheres com lenços grossos, crianças de olhos atentos. Havia murmúrios de curiosidade, mas também de desconfiança.
Afonso subiu à escadaria de pedra com Lídia ao lado, segurando as cartas descobertas nos arquivos. Baltasar, um pouco mais atrás, apoiava-se no bordão e observava em silêncio, como quem pressente que algo maior do que palavras está prestes a acontecer.
Afonso ergueu a voz, grave, firme, projetando-a contra as muralhas:
- Povo de Bragança! Durante gerações acreditámos que Dom Martinho de Soutelo foi um traidor. Que abriu as portas da cidade ao inimigo e nos condenou à vergonha. Mas hoje, diante de vós, trago a verdade que as muralhas guardaram em silêncio.
Um burburinho percorreu a praça. Alguns concordaram, outros desconfiaram.
Lídia ergueu a carta e leu em voz clara:
- “Foi o alcaide quem negociou a entrega da Porta de São Tiago. Para salvar a própria pele, lançou a culpa sobre o cavaleiro.”
O povo murmurou mais alto. Vozes indignadas ergueram-se:
- Mentira! — gritou um.
- Se for verdade, porque só agora aparece? perguntou outro.
Afonso não recuou. Avançou um passo, a mão sobre o punho da espada, não como ameaça, mas como símbolo de firmeza.
- Porque os arquivos foram escondidos! Porque durante séculos preferiram que acreditássemos na mentira a enfrentar a vergonha de um governante cobarde.
De repente, um vento gelado percorreu a praça. A neve acumulada no telhado das casas caiu em blocos, como se o próprio inverno tivesse estremecido. Do alto das muralhas, uma figura ergueu-se, a armadura vazia, o Cavaleiro das Sombras.
A multidão gritou de medo, alguns caíram de joelhos.
A voz espectral ecoou, cobrindo a praça:
- Finalmente… a verdade ressoa nas pedras. Mas o juramento não se quebra apenas com palavras. É preciso que o povo reconheça a injustiça.
Afonso ergueu a mão, ordenando silêncio.
- Povo de Bragança! Não olhem para ele como um inimigo, mas como um homem que carregou a culpa que não lhe pertencia! Hoje, diante destas muralhas, eu, Afonso, Guardião das Portas, proclamo Dom Martinho inocente!
Um silêncio pesado caiu. Olhares cruzaram-se. Depois, lentamente, uma velha mulher ergueu a voz:
- Que o seu nome seja limpo!
Outro homem juntou-se:
- Inocente!
E em poucos instantes, a praça inteira ecoava num só coro:
- Inocente! Inocente!
A figura espectral tremeu, a armadura brilhando como aço ao sol. Por um instante, os olhos vazios refletiram algo parecido com paz. O vento cessou. A neve parou de cair.
E então, diante de todos, o Cavaleiro das Sombras ergueu a espada espectral e pousou-a no chão, como quem encerra uma vigília. A voz, agora mais branda, ecoou pela última vez:
- O meu juramento terminou. As muralhas lembram. O povo recorda. A minha alma descansa.
A armadura desfez-se em pó brilhante, levado pelo vento, como se a própria serra o tivesse chamado de volta.
A praça permaneceu em silêncio, atónita. Baltasar, com os olhos marejados, murmurou:
- As muralhas já não têm dívida. Mas lembrem-se, a verdade nunca deve ser enterrada outra vez.
Lídia apertou a mão de Afonso. Ele olhou para a multidão e viu, não medo, mas orgulho. Pela primeira vez, Bragança libertava-se não apenas do inverno rigoroso, mas de séculos de silêncio.
Continua...
N.B.: A narrativa e os personagens fazem parte do mundo da ficção. Qualquer semelhança com acontecimentos ou pessoas reais, não passa de mera coincidência.

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