O dia nasceu cinzento, com a neve a cair em silêncio sobre os telhados de Bragança. Afonso não tinha pregado olho. A visão do Cavaleiro das Sombras perseguia-o mesmo de olhos fechados.
Ainda com a mente pesada, encontrou Lídia e Baltasar junto à porta de ferro da torre mais antiga do castelo, a que guardava os arquivos da cidade, um labirinto de pergaminhos, livros e tábuas de madeira cobertas de pó.
- Aqui está guardada a memória que não pode ser contada em praça pública, murmurou Baltasar, empurrando a porta com esforço.
O interior era húmido e escuro. Filas de estantes de carvalho apinhavam-se até ao teto, com volumes amarelados pelo tempo. O ar cheirava a couro e mofo. Afonso acendeu uma tocha e avançou decidido.
- Se Dom Martinho foi acusado de traição, deve haver um registo oficial, disse. - Mas também poderá haver aquilo que não foi mostrado ao povo.
Lídia subiu uma escada de madeira e começou a passar os dedos por lombadas gastas. Encontrou um códice com a marca da coroa. Folheou-o com cuidado.
- Aqui está… “Martinho de Soutelo, cavaleiro de armas, condenado por abrir a Porta de São Tiago ao inimigo.” - Leu em voz alta. Mas não há testemunhas registadas, nem carta de defesa. Só a acusação.
- Estranho… demasiado simples, comentou Afonso.
Enquanto isso, Baltasar, de olhar atento, puxava uma caixa escondida sob um monte de pergaminhos. Era uma arca pequena, selada com ferro enferrujado.
- Isto não devia estar aqui… disse, enquanto a abria com um estalo.
Dentro havia cartas soltas, enroladas com cordéis gastos. Lídia pegou numa delas, escrita com caligrafia apressada:
"Martinho é inocente. Não abriu porta alguma. O traidor veste o hábito da cidade, não a armadura."
O coração de Afonso acelerou.
- Um traidor dentro das próprias muralhas… alguém de confiança.
Baltasar retirou outra carta, mais reveladora ainda:
"Foi o alcaide quem negociou a entrega da Porta de São Tiago. Para salvar a própria pele, lançou a culpa sobre o cavaleiro."
Lídia levou a mão à boca, assustada.
- Então o Cavaleiro das Sombras tem razão. Foi injustiçado, condenado sem defesa, e a sua alma ficou presa pela mentira.
Afonso fechou o punho com força.
- Se esta verdade for revelada ao povo, talvez a sua alma finalmente descanse.
Mas antes que pudessem sair, um estrondo ecoou pelo arquivo. O vento gélido entrou por uma janela partida, espalhando pergaminhos pelo ar. No meio da corrente, a voz do espectro ressoou:
- As muralhas sabem a verdade. Mas não basta descobri-la, é preciso que alguém a proclame com coragem.
As velas apagaram-se, e o silêncio voltou a reinar.
Lídia olhou para os dois homens, com os olhos firmes apesar do medo.
- Temos de levar estas provas à praça. Mas… e se o povo não acreditar?
Afonso pousou a mão sobre o punho da espada.
- Então será a minha voz contra as muralhas. E não recuarei.
Baltasar sorriu, sombrio.
- Mas lembra-te, Guardião, a verdade liberta… ou desperta inimigos mais antigos do que as próprias muralhas.
Continua...
N.B.: A narrativa e os personagens fazem parte do mundo da ficção. Qualquer semelhança com acontecimentos ou pessoas reais, não passa de mera coincidência.

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