Diz a lenda que o demónio tentou Nossa Senhora. Como castigo, foi penalizado a pedir esmola para Ela e seu filho, o Menino Jesus.
Apesar da sua máscara terrível e medonha que faz ainda arrepiar muita gente, o chocalheiro é uma figura simpática e cheia de significado.
Vestido de linho grosseiro tingido de preto, o chocalheiro de Bemposta aparece como uma figura tauromórfica.
Nas pontas dos chifres ostenta duas laranjas espetadas; cai-lhe do "queixo uma barbicha de bode; na parte da nuca pende-lhe uma bexiga de porco cheia de vento; na testa tem um disco e, escorrendo pela face, uma pequena serpente; na mão segura uma tenaz e mostrando uma serpente de grande porte rodeada à cintura, ".
“O touro representou para os antigos a força física e criadora e onde quer que este símbolo apareça, quer nas culturas Neolíticas, quer na iconografia ou nos ídolos de forma bovina, eles marcam a presença e são a expressão da Grande Mãe da Fertilidade”, como diz António Mourinho.
Mas há outro símbolo fundamental que não pode passar despercebido na interpretação iconográfica da máscara do Chocalheiro de Bemposta: É a serpente que tem rodeado à cintura e também na testa. A serpente é um animal simbólico da fertilidade. Mas, além de simbolizar a fertilidade, a serpente é um animal de simbolismo polivalente, mas todos os símbolos "convergem para uma única ideia central: a serpente distribuidora de fecundidade, ciência e, mesmo, imortalidade”. Representa um desejo, um anseio, uma aspiração ao saber para ter o poder. Lembremos o caso do Livro do Génesis em que a serpente apontava a Adão e Eva o caminho da deificação, se comessem o fruto da árvore proibida por Deus. Além disso, havia um mito arcaico que dizia que a serpente guardava a fonte sagrada da imortalidade.
No Chocalheiro, a serpente será mais um símbolo da Terra Mãe, que tudo produz para a vida do homem, desde a água até às plantas e animais. “A serpente simboliza o Caos, o amorfo. Porém, decapitá-la equivale a um acto de criação, passagem do virtual e do amorfo ao formal, ao Cosmos, à fertilidade”, diz Mircea Eliade.
Não há dúvida de que todos estes elementos são iconograficamente importantes e podem dar pistas muito interessantes para a interpretação etnográfica e mitológica da figura, e pode contribuir para se poder saber alguma coisa sobre a origem desta e de outras figuras e o seu significado. A máscara e a indumentária são conotadas com o diabo: máscara com cornos com duas laranjas aí espetadas, fato preto com uma série de listas brancas e vermelhas, uma caveira pintada nas costas, um rabo de crinas compridas, uma bexiga de porco pendente do capuz, uma figura de serpente a tiracolo e numa das mãos uma tenaz de ferro, provavelmente com o simbolismo de recolher os bens supérfluos dos vivos, para a entidade sagrada à qual está subjugado nesse dia (26 de Dezembro - Nossa Senhora das Neves ou 1 de Janeiro - O Menino Jesus).
Os frutos que o Chocalheiro ostenta no alto dos chifres, assim como os que recebe, não são mais do que o símbolo dos frutos que se desejavam e desejam para o novo ano que começa.
- A Tradição
Dá-se início a todo o processo na véspera com a licitação do fato do chocalheiro.
O mordomo das festas, nomeado em altura própria (festas de S. Pedro, padroeiro da aldeia), abre as portas de sua casa onde todo o processo se desenrola. Os interessados, através de pessoas da sua confiança, ou mesmo os próprios, vão durante a noite e até à meia-noite fazer as suas “mandas” (acto de leiloar o fato do Chocalheiro) de forma a manter-se segredo quanto à identidade do vencedor.
Todos os concorrentes tentam tudo para ganhar o direito de ser o chocalheiro, para cumprimento de uma promessa.
Depois de terminar as mandas, pela meia-noite, os mordomos oferecem uma sobreceia a todos os participantes. O chocalheiro será aquele que mais mandou e mantém-se anónimo, regressando a sua casa ou ficando em casa do mordomo dissimulado.
A juventude passa essa noite junto da casa do mordomo, tentando ver chegar o candidato a mordomo, para o identificar, que debaixo de um manto ou usando vários estratagemas, teria que chegar sem ser reconhecido.
Cumpre-se assim a tradição, nos dias 26 de Dezembro, sai o chocalheiro “manso” e 1 de Janeiro o “bravo”, revertendo toda a receita recolhida pelo chocalheiro à volta da aldeia e de Lamoso, a favor de Nossa Senhora das Neves e do Menino Jesus, respectivamente.
No dia 26 de Dezembro o Chocalheiro “manso”, na companhia dos mordomos e conduzido por um deles, recebe esmola, que ninguém recusa dar e agradece com uma vénia, pois não pode falar para não ser reconhecido. Antigamente nem toda a gente tinha dinheiro disponível, uma maioria entregava o que tinha de melhor para o seu sustento: fatias de pão, fumeiro, fruta (laranja), ovos, etc., recolhidos em dois cestos barreleiros.
Nas esquinas e lugares estratégicos, onde passava o chocalheiro, o povo reunia-se para tentar descobrir quem era o chocalheiro, deitando-se a adivinhar através das suas características físicas.
A volta à aldeia terminava junto à igreja, antes do começo da missa. O chocalheiro dava-se aí a conhecer, retirando a máscara (carocha).
Depois do desjejum, dirigia-se para Lamoso, através do caminho da ponte romana, para ”apanhar esmola”. No regresso, a juventude juntava-se, na ponte romana, sobre a ribeira, ou na entrada da aldeia, na Muga (lugar das Casas do Cabo), à sua espera. Com ansiedade e expectativa, esperavam vê-lo, ao longe, saindo do nevoeiro, enquanto escutavam o som dos chocalhos, para saber da sua proximidade. À sua passagem fugiam, não olhando a meios para se esconder.
Enquanto percorria a aldeia, os jovens e crianças divertiam-se oferecendo-lhe laranjas, para que ele corresse atrás deles. Mal ele se virava, logo fugiam, gritando, “Chocalheiro, oh, oh, oh, oh” ou “à diabo, à diabo”. O medo do chocalheiro advém da sua figura diabólica, com toda a sua carga simbólica, mas também da tradição existente, em que os pais para que fizessem os filhos cumprir as suas ordem, tais como: comer a sopa, não fazer asneiras, etc, diziam ou cumpres: “ou vais para dentro do mangão do chocalheiro”. Começava aí a criar-se o respeito pelo chocalheiro.
Todas as dádivas eram posteriormente leiloadas, no dia 1 de Janeiro, “na pedra do regedor”, depois da Santa Missa do Menino Jesus.
Depois desta volta total, os mordomos oferecem um almoço de festa a todos os intervenientes.
No dia 26 de Dezembro, durante a manhã, pede para Nossa Senhora das Neves, mas na parte da tarde, o chocalheiro podia ser substituído por outro que continuava a pedir esmola mas, desta vez, o que fosse realizado revertia para si próprio pois este tinha “comprado o fato”. Nesta parte da tarde, além da esmola, o chocalheiro “assaltava” o fumeiro da população que, suspenso sobre a lareira, era retirado com o auxílio das tenazes ou, então, levava outros artigos caseiros. No largo de Santo Cristo, novos e velhos desafiam o chocalheiro. Este pede uns “cêntimos” aos presentes, insistindo mais especialmente com os que residem fora da aldeia.
A 1 de Janeiro, “dia do Menino”, tudo decorre da mesma forma, com a excepção da Santa Missa, que se realiza à 1 hora da tarde, finda a qual, surge no adro o chocalheiro. A seguir, o povo reunia-se para o leilão, já referido acima.
Ao Toque das Trindades, o chocalheiro era obrigado a recolher.
Tradicionalmente, durante a tarde a população juntava-se nas Eiras de Baixo, ao som da concertina, em que se destacou o Sr. José Garcia, para animado bailarico.
No fim do dia, o mordomo oferece uma ceia a todos os intervenientes: o guia do chocalheiro, familiares do mordomo e do chocalheiro e ainda os mandantes do chocalheiro.
As últimas máscaras conhecidas foram esculpidas na aldeia pelo artesão Sr. Joaquim Santos.
Ao mordomo não acaba o trabalho nesta data. Durante o ano é responsável, por montar o presépio de Natal, acender as velas até ao S. Pedro, fazer o peditório na missa da Consoada, missa do Galo e missa dos Reis.
No último domingo de Agosto, todos os mordomos das festas e zeladoras da igreja fazem um peditório, em conjunto, pela aldeia, revertendo essas dádivas para cada um dos santos que representam e assim suportarem as despesas existentes.
Interpretação etnográfica - iconográfica do Chocalheiro
Crenças relacionadas com a serpente e a fecundidade existem em toda a Europa, ainda hoje, mesmo entre nós. Um pequeno exemplo é ouvir dizer com frequência que quando as cobras saem das tocas a chuva não falta o que pode estar relacionado com antigas crenças que relacionavam as serpentes com a fertilidade da Terra Mãe.
A nossa gente ainda hoje diz que a "chuva é o sangue da terra". Outro exemplo da relação mulher-serpente-fecundidade-fertilidade é o caso da India em que as senhoras que desejam filhos adoram as serpentes. .
No caso do Chocalheiro de Bemposta e de Bruçó a serpente será mais um símbolo da Terra Mãe que tudo produz para a vida do homem desde a água até às plantas e animais.
Os frutos que o Chocalheiro ostenta no alto dos chifres não são mais do que o símbolo dos frutos que se desejavam e desejam para o novo ano que começa. E o caso das Fogueiras do Galo: o homem do gentilismo desejava luz e calor? acendia fogueiras para atrair o Sol. Queria frutos da terra abundantes? ostentava os frutos da colheita; queria água abundante? entornava água no chão.
Nestas figuras aparecem outros elementos que, embora de menos valor, não nos devem passar despercebidos.
Em Bemposta o Chocalheiro apresenta-se "armado" de uma tenaz de ferro. Em Vale de Porco o "Velho" aparece de espeto na Mão.
Em Tó o "Farandulo" aparece com uma estaca de pau.
Estes instrumentos serviam para tirar peças dos fumeiros nas casas onde aquelas figuras entravam.
Figuras de "Velhas" armadas de fortes garfos aparecem-nos também nas festas de fim de verão aqui no Concelho de Mogadouro. Aquelas "Velhas",que são homens vestidos de mulher à antiga, acompanhavam a dança dos paulitos e entravam nas casas nos dias de festa e roubavam das panelas o que lhes fosse permitido levar. Havia povoações onde estas figuras levavam botas de vinho para dar de beber aos "dançantes" e para eles próprios beberem até à embriaguês.
Em Tó o mordomo da festa do Santo Menino, que se celebrava e celebra nos primeiros dias de Janeiro, dava pão, vinho, frutos secos e doces a toda a população.
Seriam estes frutos distribuídos com o sentido propiciatório, desejando um novo ano cheio de riqueza e fertilidade? É possível que assim fosse.
O que é certo é que estes comes e bebes são, ainda hoje, frequentes nestas e em outras festas, principalmente no fim do Verão e não há dúvida que são restos de celebrações de Bacanais que aqui ficaram.
Das festas Dionisíacas dos gregos também nos ficou alguma coisa. Dos ritos Dionisíacos ficaram as "procissões" com as figuras etnográficas, acompanhadas com os instrumentos musicais populares: a gaita de foles, a caixa e o bombo. Em alguns sítios usavam a flauta a que os Romanos chamavam tíbia, mas que tem origem Pré-histórica.
Voltando um pouco atrás e lembrando tudo o que os velhos, chocalheiros e farandulos recolhem, devo acrescentar que hoje tudo reverte em favor da festa religiosa e profana, mas antigamente não era assim. O que se recolhia era para o repasto bacanal que estas figuras faziam com outras pessoas.
in:bemposta.net
Li, com paciência e parcimônia, absorvendo a cultura portuguesa divulgada neste site.Aqui no Brasil mantemos algumas das tradições portuguesas narradas. Em minha infância de menino caipira, numa fazenda de café, lembro-me bem, por exemplo, das rezas para chover; onde íamos em procissão nós, crédulos e católicos, rezar para que Deus e Nossa Senhora enviasse chuva, para aplacar a seca que dizimava rebanhos e devastava plantações e cafezais. Cada um de nós, que fazíamos parte do cortejo,levávamos uma garrafa (ou litro) de água potável, que despejávamos, com carinho e devoção,parcimoniosamente, por sobre as "santas cruzes". As santas cruzes, são pequenas cruzes de madeira, encontradas nas beiras das estradas vicinais e carreadores (estradas que atravessam as plantações,para facilitar a recolha dos produtos ali colhidos), que historicamente aponta o local onde algum habitante da região tenha sido morto. Os partícipes da procissão, eram liderados por um "tirador de terços", que nos fazia seguir e complementar as rezas, durante e depois de cada parada, solicitando a Deus (e a São Pedro) o milagre da chuva abundante, tal e qual mencionado no magnífico texto apresentado nesse blog do Henrique, tão ao meu feitio.
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