Joaquim Evangelista é natural de Bragança e presidente do Sindicato de Jogadores Profissionais de Futebol desde 2004.
O brigantino, de 38 anos, tem lutado pela defesa dos direitos dos jogadores de futebol. O tráfico de menores e os ordenados em atraso são alguns dos problemas que chegam ao sindicato.
Apesar de estar longe da sua cidade natal, Evangelista não esquece as origens e a infância passada dentro das muralhas co Castelo de Bragança.
Jornal Nordeste (JN) - Esta sua ligação ao futebol não é de agora. Já em criança o gosto pelo futebol, pelo que sabemos, era grande. A bola esteve sempre presente na sua infância passada em Bragança. Marcou muitos golos dentro das muralhas do castelo?
Joaquim Evangelista (JE) – Marcava imensos, jogava muito bem, estou a brincar. Tive uma infância como qualquer criança. Tinha muitos amigos, tínhamos muito tempo livre e tive a felicidade de nascer na vila, na cidadela. O melhor tempo que tive foi, de facto, a jogar à bola com os meus amigos. Eu até já disse uma vez que tinha algo metafísico, que preferia a bola do que a namorada.
JN – Em Bragança chegou a jogar no F.C. Mãe d´Água. Que outras memórias guarda da sua infância e adolescência?
JE – É verdade joguei no Mãe d´Água. Mas deixe-me acrescentar uma coisa. O facto de jogar futebol e a relação com a família e os amigos marcou-me muito para o futuro. A minha maneira de ser reside muito nos valores que me foram transmitidos na infância pelos meus pais, pelos meus avós, sobretudo a minha avó, e pelos meus amigos. Sabe que antes eram poucas as pessoas que tinham oportunidade para estudar, muitas tiveram que emigrar e outras tiveram vários problemas. As pessoas tinham muitas dificuldades, mas havia um valor maior que era a amizade. Recordo com saudade esses tempos.
JN –Falou dos amigos, Paulo Bento, que também brigantino, é um desses amigos com quem até hoje mantém contacto?
JE – O Paulo não foi daqueles amigos de infância de estar lá todos os dias. O Paulo estava em Lisboa e passava férias em Bragança no Verão. Na altura do meu bairro eram os Senas, o Calhecas, o Zé Preto ou o Chico Minhoca que eram os meus verdadeiros amigos.
Com o Paulo Bento encontrava-me no verão e jogávamos em equipas diferentes e ele jogava muito bem. Temos uma boa amizade não só pelo facto de termos as mesmas raízes mas pelo carácter e pelos valores que ele transmite.
JN – Falou na sua avó, a avó Aurora. De que forma foi importante na sua vida?
JE – A minha avó acabou por estar mais presente que a minha mãe, pois os meus pais trabalhavam e a minha avó tinha mais tempo para mim. O meu pai era muito autoritário e não era fácil ele deixar-me jogar futebol.
Eu tinha uma ligação muito forte à minha avó e quando ela faleceu, tinha eu seis anos, marcou-me muito. Costumo dizer que a minha avó e a minha mãe foram as pessoas que mais contribuíram para definir o meu carácter.
“ … reconheço-me nos valores de cidadania, justiça, solidariedade e de igualdade … “
JN – Referiu que tinha jeito para a bola, que jogou no Mãe d´Água, mas não seguiu a carreira de futebolista. Porquê?
JE – Eu até acho que jogava bem e sempre quis competir, mas esbarrava com o meu pai que entendia que jogar à bola era uma perda de tempo. Ele defendia que tinha que trabalhar e estudar.
Tive convites para ir para a equipa de iniciados e juvenis e ele não me deixou. Acabei por ir para os juniores porque o Ilídio, a pessoa que estava a treinar, convenceu o meu pai a deixar-me competir.
Fui para os juniores e fiz o nacional, tínhamos uma grande equipa e o Eurico, defesa central, acabou por ir para o Benfica. Na altura fiz mutos amigos pois fazíamos estágios e andávamos de um lado para o outro.
Quando terminei o 12º ano há um amigo meu, o Luís Madureira, que a mãe fazia questão que ele viesse para Lisboa estudar, mas não queria que viesse sozinho. Eu era muito amigo dele mas os meus pais não tinham condições económicas para eu ir para Lisboa e o meu pai também não queria que saísse de Bragança. Então, a mãe do Luís convenceu a minha mãe para eu ir para Lisboa. A minha mãe fez um esforço enorme para eu ir para Lisboa com o meu amigo.
JN – Porque decidiu seguir o lado jurídico e não outra profissão?
JE – Reconheço que foi mais por influência da mãe do Luís. Os dois gostávamos de direito. Eu sou das humanidades e reconheço-me nos valores de cidadania, justiça, solidariedade e de igualdade. O direito permite afirmar estes valores do ponto de vista prático.
Eu senti que tinha uma obrigação de não falhar pois a minha mãe estava a fazer um esforço enorme para eu estudar.
Entretanto, o meu pai faleceu quando eu estava na faculdade e não foi fácil. Mas marcou-me porque não era fácil estar distante da minha mãe, a minha irmã estava na Suiça e depois o meu irmão veio para Lisboa. Mas consegui terminar o curso.
“Quem vem para o futebol acha que tudo pode fazer”
JN – Falou de valores humanos e de solidariedade. Foram estes valores que o motivaram a avançar para a presidência do Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol em 2005?
JE – Quando terminei o curso jogava na equipa de juristas de Lisboa e o ex-presidente do sindicato foi jogar connosco. Nessa altura tinha saído o jurista interno e externo do sindicato e eu e outro colega, o Dr. Nogueira da Rocha, assumimos o sindicato.
JN – Ser presidente do sindicato é uma tarefa complicada?
JE – É assim, lidar com os jogadores é fácil e o meu empenho para resolver as situações é redobrado. O que é difícil lidar é com a cultura desportiva dominante, que anacrónica, ou seja há um sentimento de impunidade e irresponsabilidade. Quem vem para o futebol acha que tudo pode fazer. O desafio maior é lidar com um estatuto dominante de uma classe de dirigentes pouco formados, arrogantes e que acham que tudo podem fazer. Felizmente, hoje em dia a regulamentação tem vindo a impor um conjunto de regras e disciplina. Mas, nos dias que correm ainda temos dificuldades para dialogar, de forma construtiva, com esses dirigentes.
Ser confrontado com os salários em atraso, tráfico de menores, as questões da saúde e da protecção social que não são asseguradas, o divórcio entre a escola e o desporto obrigam-nos a assumir uma posição que às vezes não corresponde ao que gostaríamos de ter. Eu entendo que o diálogo deve prevalecer, mas quando isso não acontece eu não posso deixar de defender as pessoas a que me propus defender que são os jogadores de futebol.
JN - Há jogadores que chegam a viver situações delicadas nestas situações de ordenados em atraso?
JE – Dramas pessoais e familiares graves ….
JN – Há jogadores que chegam a passar fome?
JE – Infelizmente sim. Temos que ser claros na mensagem que passamos. Infelizmente o Cristiano Ronaldo e a geração que marcou o futebol antes dele alimentam nos jovens e nos pais a ideia de ser jogador de futebol.
Um estudo recente dizia que é a terceira profissão, a seguir à de médico e engenheiro, que os pais desejam para os seus filhos. Mas, a profissão de jogador de futebol é também onde cerca de 90% dos jogadores abandonam cedo a escola e onde os salários em atraso imperam. Eu sou bastante crítico em relação aos ordenados elevados. Eu sei que actividade gera esse retorno e por isso se pagam ordenados elevados. Mas, eu gostava que a actividade fosse no seu todo mais sustentável e que todos os jogadores tivessem mais condições e não só uns tantos.
O que está a acontecer e aquilo com que me deparo é com jovens que chegam aos 19 anos e que têm dificuldades enormes em encontrar alternativas porque não são opção quando terminam a formação. Poucos chegam ao escalão profissional e com a globalização cada vez há mais jogadores estrangeiros, algo que dificulta a vida ao jogador nacional.
Os jogadores além do drama que têm durante a profissão agravam o drama quando terminam a carreira pois têm que sustentar a família e não estão preparados para agarrar outra carreira.
“Os jogadores têm que estar preparados para lidar com determinadas situações”
JN - Há um fundo para resolver estas situações? Que soluções há para estes jogadores?
JE – No que diz respeito aos jogadores desempregados criámos um estágio na perspectiva de emprego, temos um fundo de garantia salarial que criámos com a Liga e a federação para as competições profissionais e não profissionais de 300 mil euros, que é insignificante, e o Governo criou um fundo que está a ser constituído.
Mas, aquilo que se tem verificado é que independentemente do fundo salarial e de solidariedade é dizer presente. O sindicato é a única instituição que quando acontecem dramas está presente seja numa competição de escalão superior seja de escalão inferior. Estamos lá para apoiar juridicamente mas também a nível financeiro.
Entretanto, criámos um fundo de formação para os jogadores que queiram jogar entre outros projectos.
A dimensão do sindicato é nacional mas também estamos representados a nível internacional. Eu próprio sou membro do tribunal da FIFA. É um trabalho enorme e de grande responsabilidade.
JN – Os jogadores têm de alguma forma culpa por deixarem certas situações prolongarem-se?
JE – Sim, sem dúvida. Há muitos jogadores que não assumem a situação, por vezes porque estão numa situação frágil perante o clube. O direito ao salário é um direito constitucional e nestas matérias não podemos facilitar.
Mas, os jogadores têm que se preocupar com tudo que envolve a sua profissão. Eu tenho jogadores que não têm contrato, que assinam contrato e não ficam com cópia, que vão para o estrangeiro e que vão às escuras e temos que os ajudar a regressar porque foram enganados.
Hoje em dia com a globalização, com a internet, com toda a informação que existe os jogadores não se podem colocar em situações delicadas. Os jogadores têm que estar preparados para lidar com determinadas situações se querem ser profissionais a sério, caso contrário não vão passar de escalões inferiores. Mas, mesmo nas divisões inferiores o que digo aos jogadores é que a maneira como nos comportamos seja no Campeonato de Portugal seja na 2ª Liga é a maneira como nos definimos para a vida.
JN - Não podia deixar de trazer à conversa os casos de jogadores estrangeiros em Portugal. O SEF tem apertado o cerco, por assim dizer, e já foram noticiados casos de jogadores em situação ilegal. Há jogadores que foram abandonados, por assim dizer, por empresários, e quando digo empresários não estou a falar propriamente dos agentes devidamente creditados. Qual é a posição do sindicato em relação a este assunto?
JE – Deixe-me começar pelo tráfico de menores e de um conjunto de pessoas sem escrúpulos que se aproveitam do fenómeno que é o futebol.
É verdade que o futebol gera milhões e que quem está na base do negócio é o jogador de futebol e procura-se ir buscar talento onde ele está. Não há dúvidas que os países sul americanos e africanos têm jovens com muito talento. Acontece que a Europa tem normas aprovadas que impedem a transferência de jogadores com menos de 18 anos. Infelizmente há muitas pessoas a violarem essas regras porque entendem que vale a pena e que dá dinheiro. Há um conjunto de pessoas que ganham dinheiro explorando os pais, já que estes pagam, prometendo-lhes que vão jogar na Europa em grandes clubes. Os filhos são colocados em condições desumanas e por são na maior parte das vezes abandonados.
Estas pessoas, que trazem os miúdos, têm muitas vezes parceiros nacionais, há clubes e dirigentes que aceitam esses miúdos mesmo sabendo que o estão a fazer de forma ilegal.
Isto é um fenómeno ao qual o SEF está atento e que o sindicato denuncia …
JN – É o próprio jogador que faz a denúncia? Que procura ajuda?
JE – Não, têm medo. A muitos tiram os passaportes, os documentos de identificação, são ameaçados os pais, são ameaçados eles próprios. Em 100 há um ou dois que faz a denúncia e só denunciam quando a situação é dramática.
JN – Quem pode travar este fenómeno?
JE – São casos de polícia. As entidades estão atentas. Fizemos um protocolo com o SEF, a Federação Portuguesa de Futebol e a Liga para sinalizar e acompanhar estes casos …
“Se dermos oportunidades aos nossos talentos eles afirmam-se”
JN – Mas não deve a entidade que gere o futebol e o futsal em Portugal assumir a sua responsabilidade?
JE – É uma responsabilidade de todos. Devemos criar regulamentação desportiva que penalize quem compactua com estas situações. Não podemos aceitar que haja pessoas que compactuam com estas situações e que continuam ligados a clubes e entidades desportivas.
JN – Estas situação leva-nos a fazer uma pergunta que é de alguma forma em defesa do jogador nacional. Porque os clubes não apostam nos jogadores nacionais e apostam nos estrangeiros? Apesar de a federação apregoar que no Campeonato de Portugal a maioria de jogadores é portuguesa sabemos que isso não corresponde à realidade. Afinal onde está o incentivo à formação e à aposta nos jogadores nacionais?
JE – Eu gosto muito do Dr. Fernando Gomes porque acho que tem feito um trabalho excelente para promover o futebol português. Ele conseguiu imprimir um modelo de gestão do futebol nacional que a mim me agrada. Tanto que o reconhecimento do seu trabalho permitiu-lhe ser eleito para o Comité Executivo da UEFA. Tem havido um trabalho da defesa do jogador nacional, apesar de ainda se poder fazer mais.
Se dermos oportunidades aos nossos talentos eles afirmam-se. Muitos dos nossos jogadores têm-se destacado não porque houve uma aposta voluntária mas porque os clubes não tiveram capacidade económica para ir buscar jogadores estrangeiros. Os jogadores nacionais acabaram por dar uma lambada de luva branca aos clubes porque se conseguiram afirmar.
JN - Joaquim Evangelista apesar de estar a centenas de quilómetros de Bragança tenta acompanhar a actualidade futebolística do distrito?
JE – Sim, tento acompanhar. Tenho muitos amigos de Bragança e o desporto é o tema central de conversa. Estou sempre muito atento.
JN- Como vê toda a situação que envolve as eleições da A.F.Bragança. António Ramos tomou posse, entretanto foi-lhe tirada a posse e regressou Jorge Nogueira. No entanto, o caso continua em tribunal. Como vê toda esta situação?
JE – Infelizmente esse caso ainda não se resolveu. Eu tenho falado com os vários intervenientes e aquilo a que tenho apelado é para que haja diálogo e para a importância de haver pessoas que façam a ponte e que ajudem a minimizar o extremar de posições. Desta forma o futebol em Bragança é prejudicado já que quanto mais tempo durar esta divergência mais o futebol do distrito de Bragança é prejudicado.
Por: Susana Madureira
in:jornalnordeste.com
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