Número total de visualizações do Blogue

Pesquisar neste blogue

Aderir a este Blogue

Sobre o Blogue

SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

terça-feira, 4 de agosto de 2015

A Moura do Algoso

Local: Algoso, VIMIOSO, BRAGANÇA

Terras trasmontanas, onde o chão, para melhor subir nas alturas do ceo, se ondeia, revolve, enovella em montes, até dar o salto mortal para as serranias enormes: ahi fica a villa do Algoso. 

 Está em terras de Vimioso, que a voz do povo reune a Miranda-do-Douro, cantando e rindo de troça:

Caçarelhas já foi villa, 

Miranda nobre cidade, 
Vimioso ladroeira, 
Como toda a gente sabe.

 Era o Algoso velha alcaidaria-mór da comarca de Miranda, enterrada entre as Serras de Bornes e Nogueira a todo o Poente, e as Serras de Roboredo e Cimas-de-Mogadouro para Sul e Nascente. Vê-se como será movediço este chão, que liga as duas imponentes linhas de alturas rochosas e agrestes. Correm entre estes macissos dois rios, o Mação que vae desaguar no Sabor, e o Angueira que abaixo do Algoso se mette no Mação.
 Lá para cima é Bragança, no seu throno lendario que domina todo o districto; ao Nascente é a antiga cidade de Miranda, honesta e humilde na sua decrepitude sympathica de mumia. E’ rude o povo quando lhe diz: — Se fôres a Miranda, vê a Sé e anda.
*
 Sobem montes, descem precipicios, sobem outros montes mais altos, e nas covas, sobranceiro ás alturas, esteve outrora o castello do Algoso. Para descer e ir a terras vizinhas, é longe. Tudo é longe, mau andar naquellas serras frias.

Quem quiser vêr mau caminho, 

Vá de Soutello a Montezinho.

Quem quiser saber o que as legoas são,

Vá de Iseda a Santulhão.

 Lá no fundo fervem, no cachão branco da espuma, as aguas geladas do Angueira, no qual vão banhar as raizes os pinhaes, que descem lentamente, cobrindo-os por completo, os montes vizinhos.

*
 Havia no Algoso uma fonte ao pé de um rosal. Era simples. Uma fontezinha aldeã: da pedra do monte brotava e corria, cantante, a agua; do sulco, por onde ella descia como varinha de crystal a torcer-se, cahia num tanque pequeno de pedra, cavado rudemente por qualquer artifice da aldeia; aos lados, moutas de roseiras aromatizavam deliciosamente o recanto. 
 Chamavam-lhe a Fonte de S. João, porque nessa noite, uma vez ao anno, apparecia, onde vinha pentear-se, a mais linda moura de Tras-os-Montes.
*
 Diz a lenda que por alli havia, no tempo dos Mouros, um bruxo de terrivel memoria.
 Acudiam todos a procurá-lo, para serem curados por elle nas doenças de que desesperavam melhoras, ou para o consultarem em assumptos de interesse. Curava doenças a uns; matava outros com os remedios; enganava os que lhe pagavam os serviços, convencidos dos poderes de bruxo. Mas o certo é que tinha fama por todos os arredores. 
 Desciam os povos em demanda do bruxo poderoso, desde Macedo-de-Cavalleiros, Vimioso, Mogadoro e Alfandega-da-Fé, através das montanhas cheias de neve. Quantos morriam pelo caminho minados pela doença e pelas canseiras da viagem? Outros cahiamnos precipicios. Havia luctas tremendas com alcateias de lobos. E no emtanto, apesar de tudo, afluia do Freixo-de-Espada-á-Cinta, da Torre-de-Moncorvo, de Villa-Flor, de Mirandella, de Bragança. De mais longe, de Vinhaes, Valle-Passos, Murça, Carrazeda, e mais e mais. 
 Era uma romaria no Algoso. E o bruxo orgulhava-se da clientella. Procuravam-no pobres e ricos; e na casa de pedra negra, onde os recebia, entravam os estofos luxuosos e os pannos grosseiros. A todos elle egualava deante das suas artes magicas, porque a egualdade adoptada por elle era a do dinheiro. Todos que pagavam, seriam servidos. 
 Creou fama de rico e devéras o deve ter sido. O ouro corria a jorros para os arcazes de embutido.
*
 Os Christãos, fortes já na sua audacia pelo numero e sobre tudo pela fé, desceram das montanhas do Norte da Peninsula e vieram de roldão por ahi abaixo contra os Mouros. O Algoso resistiu mas teve de render-se, e o bruxo desappareceu.
 Quando viu tudo perdido, o bruxo não quis que os seus thesouros cahissem nas mãos dos vencedores. Tratou de os esconder. Para mais, elle não podia convencer-se do grande praso de ausencia os Mouros voltariam mais dia menos dia, e elle de novo se apossava das riquezas escondidas. 
 Só lhe faltava escolher o logar do esconderijo, e a unica difficuldade, se a havia, era escolher um entre tantos; mais custoso seria o trabalho de encontrar guarda para elle. 
 Correndo os olhos pelo contorno do castello, deu com a Fonte de S. João. Era bom sitio para se não perder, e não ficava longe. Foi-se lá com o melhor dos thesouros, que não podia transportar consigo na fuga pelos montes e precipicios. Cavou e metteu na cova o cofre de marfim, chapeado de cobre, onde guardou as joias e o ouro. 
 Ao voltar para casa, deu com uma rapariga, que ia á fonte, com uma cantarinha de asa esbelta. Receou que ella o tivesse visto guardar o cofre no rosal á beira da fonte, e o denunciasse. Só tinha um remedio salvador; era encantá-la. Além de se assegurar assim contra a possivel e temida denuncia, obteria de esta forma a guarda do thesouro, guarda fiel, que nada diria e a ninguem se denunciaria.
 Estas duas circunstancias resolveram-no. Caminhou para a rapariga, e dizendo certa oração mysteriosa, de elle bem conhecida, fez-lhe sobre a cabeça alguns signaes cabalisticos. A rapariga desappareceu como se tivesse entrado pelo chão, e a cantarinha de barro, cahindo no solo, desfez-se em mil pedaços. Deu o bruxo uma gargalhada infernal e foi-se ao castello.
 Quando os Christãos entraram no Algoso, não havia noticias do bruxo. Com a ingratidão do costume, e com o odio dos beneficiados aos autores dos beneficios, corno é dos livros e de todos os tempos, os povos das vizinhanças, que primeiro se serviram do bruxo e a elle iam pedir auxilio por caminhos difficilimos e perigosos, cahiram em massa no Algoso, para lhe assaltarem a casa e roubarem os thesouros. Já o não receavam, nem de nada lhes servia. Mas não encontram mais que a casa de pedra negra e o porco mobiliario bem conhecido de elles, afinal.
*
 Que encanto déra o bruxo á rapariga do Algoso? preguntar-se-ha.
 Quando lhe pôs as mãos na cabeça e lhe traçou sobre ella os signaes cabalisticos, a rapariga transformou-se immediatamente em uma grande cobra. Correu por entre o matto, em que se embrenhou, e foi para o rosal: ahi ficaria até volta do bruxo, a guardar os thesouros. 
 A’ volta da fonte, erguiam-se copados ulmeiros que formavam ao rosal a mais bella sombra. Por ahi vivia na sua miseria a pobre menina feita cobra. Só uma vez por anno retornava as formas humanas. Dizia-se que era linda como os amores. Alguem a tinha visto de longe, na noite de S. João vestida de branco, na sombra dos ulmeiros, como nuvemzita de neve a subir na madrugada, serenamente.

II


 Andava accesa na villa a fama da moura da Fonte de S. João. Approximava-se a festa do Santo e estavam lindas de côr e fragrancia as rosas do tanque. 

 Um rapaz apaixonou-se pelo mysterio da pobrezita, enclausurada na sombra um anno inteiro. A noticia da sua belleza, dos vestidos brancos, e dizia que cantava como os Anjos nessa madrugada festiva, encheram-no de ansiedade. 
 — Hei-de vêr a moura da Fonte, — disse elle um dia, resolvendo tentar vê-la e fallar-lhe. 
 — Ela foge, assim que vê alguem, — informou a velha mais velha do Algoso, ao saber da decisão do rapaz.
*
 Vespera de S. João. Luz no céo, fogueiras na terra. Por felicidade a noite era clara. Cantava-se na villa. Os foliões saltavam aos ranchos nas praças e quintaes, através das labaredas crepitantes das fogueiras em honra do Santo festejado. 
O rapaz, quando anoiteceu, dirigiu se á Fonte. Atrás de si as cantigas faziam-lhe inveja, quereria voltar á villa, mas a vontade era maior na direcção de conseguir vêr a moura e fallar-lhe. 
 — Aqui não consigo nada, — pensou elle para si, ao chegar ao tanque; — a moura, mal se visse, desapparecia, e eu ficava a vêr navios. 
 Procurou um logar, fronteiro ao tanque, de onde podesse ver, sem logo ser visto. Estava a dez metros, debaixo de um olmo grande que o encobria do lado da fonte. Sentou-se no chão, encostado á arvore, e aguardou. Na villa os ranchos cantavam alegres, e os cantos de todos elles reuniam-se em um canto só, enorme, confuso, como cantochão num pinhal.
*
 O ar ia refrescando. A atmosphera adelgaçava se, crescia, abobadava-se em luz. Pousava na terra um véo de claridades suaves. Na sineta do campanario repenicava a hora do banho santo. Pareciam vêr-se no ar as ondulações das badaladas. 
 De ouvido apurado, o rapaz não perdia de vista a fonte. Era á meia-noite que a moura devia de apparecer. Por isso, ao ouvir a sineta da villa, commoveu-se da sensação extraordinaria e desconhecida, que lhe embalava no vacuo os pensamentos e o corpo. 
 De repente ouve um restolhar no rosal. Grande cobra, uma serpente assustadora, desembocou do mattagal e, subindo ao bordo do tanque, atirou-se á agua. Chapinhou dentro da agua aquelle corpo negro e asqueroso. Três vezes mergulhou com ruido na agua. E os olhos esgazeados do rapaz viram cheios de espanto que a serpente se transformava em mulher. 
 — A moura! — e a vai ficou-lhe collada á garganta.  
 A moura sahia lentamente da agua, espannejando-se com alegria infantil de creança, que sahe do banho. Quando estava inteiramente de pé, elle viu-a vestida de urna tunica branca. Firmava os olhos, para se convencer bem de que era a moura, que via alli de pé, deante de si, pois mais lhe parecia pedaço de nevoeiro a fugir das aguas do tanque para as copas amigas dos ulmeiros. 
 A folhagem cerrada do arvoredo cobria com docel de penumbra a brancura alvejante da moura. As rosas ao lado, no rosal, não eram mais brancas naquella claridade baça. 
 O rapaz seguia-a attentamente com os olhos. Viu-a depôr na beira do tanque as escamas metallicas da pelle de cobra. Depois a moura saltou para o chão, estouvada e em azougue como collegial em ferias; os cabelos de ouro, que brilhavam em tranças grossas, cahiam-lhe pelas costas ou pousavam no hombro as madeixas macissas. Sentou-se na beira do tanque e espalhava os cabellos. Foi como se uma chuva de estrellas cahisse nella! Os hombros, o peito, a cabeça gentil, resplandeciam. Aquelle recanto sombreado transformava-se em um tabernaculo. Corria o pente de ouro nos cabellos de filigrana, lavrava-os com os dentes macios, cardava o linho de ouro para o precioso tecido com que enfeitava a cabecita. 
 Ia fallar-lhe o rapaz. Mas a moura principiou a cantar. A voz prendeu-o ao chão, e elle calou-se. 
 Deante da menina saltitou uma corça branca. Beijava-lhe os pés, corria de um canto a outro voltava a afagar-lhe os pés, calçados em babuchas de damasco azul, com bordados que brilhavam. Se alguma folha cahia, ou algum estalido mais rijo cortava o silencio circundante, logo a corça firmava as patitas elegantes e perscrutava os arredores com olhos vivos e orelhas arrebitadas. 
 Continuava a moura a pentear-se e a cantar. A sua voz, leve como haste de açucena, erguia-se na limpidez crystallina da madrugada; tinha doçuras e convites de campanario longínquo pelas quebradas. De vez em quando afagava com a mão meudinha a corça que lhe lambia as babuchas de damasco, pendentes da ponta dos pés. 
A agua, correndo da pedra da nascente para o tanque, era a unica harmonia que acentuava o canto delicioso.
*
 Ao longe ouvia-se ainda na villa o côro do banho santo. E a pouco e pouco iam adormecendo os echos. Até que, por fim, nada mais dava signal de vida, fóra do pequeno terreno onde esta scena se passava.
*
 Quando acabou de se pentear, o que fez com todo o descanso de quem não tem pressa, duas tranças cahiam-lhe sobre os hombros. Emmolduravam-lhe o rosto, como essas columnazinhas que formam os nichos da Virgem. Deus nos perdoe a lembrança, mas aquella menina, moura sim, era martyr virginal, que a maldade do bruxo para alli tinha encantada sem culpa. Depois de se pôr de pé, inclinou-se para o tanque, onde a agua formava o unico espelho de que ella dispunha. Debruçou-se nas aguas. Decerto viu reflectir-se toda a belleza, que em breves momentos voltaria a esconder-se nas escamas metallicas da pelle de serpente hedionda, que a esperava. Chorou. As lagrimas corriam em fio, e soluçava. O corpo gentil agitava-se em convulsões. 
 Ergueu-se. Levantou as mãos como numa prece ao céo. O perfil esguiava-se naquelle vestido branco; torcia os braços nús, brancos como nevoa, e, que como nevoa pareciam subir e contorcer-se no ar.
*
 Condoído, o rapaz quis então fallar-lhe e consolá-la, para o que julgou asado o momento. Não se lembrou do seu interesse. E’ verdade que elle estava ali movido mais pela curiosidade ansiosa de vêr a moura, aquella moura ali na sua frente, do que pela ideia de tirar partido interesseiro do encontro. 
 Diz-se que, se alguem visse a moura, nas horas para dia felizes, em que tinha forma humana, de ella conseguiria três coisas que lhe pedisse. 
 Não se lembrou de tal o rapaz. Penalizado pela mágoa da moura, que chorava e se lamentava, teve tentações de lhe fallar e consolar-lhe as afflicções com palavras amigas e de sympathia. 
 Lá estava dia de pé, á beira do tanque; as mãos, descendo do alto, vieram limpar-lhe os olhos, onde as lagrimas brilhavam como diamantes accesos. E’ o cabello de ouro coroava, aquella figura branca de açucena, com um véo luminoso.
*
 Ia cantar. Sahiram-lhe da garganta as primeiras palavras de um canto de lagrimas. Que lamentações ergueria então aquelia alma? Àpproximava-se a hora de alva e ella ia desapparecer em breve. 
 O rapaz ergueu-se. As folhas e o matto rangeram-lhe debaixo dos pés; estalaram as hastes das hervas debaixo das mãos, em que elle se apoiava para se levantar. 
 A corça estacou de orelhas hirtas e pernas nervosas. A moura deteve-se. E tão depressa elle sahiu detrás da arvore, a corça fugiu com um grito e embrenhou-se no matto. O grito assustou-o e ficou a echoar-lhe no fundo dos ouvidos, com a apprehensão a apertar-lhe as fontes, comprimindo-lhe o coração com susto. 
Olhou; a moura desapparecêra. Ouvia ainda o restolhar da corça no matto. A agua do tanque estava agitada, e uma nevoa, dir-se-hia de incenso, evolava-se do tanque, subindo a direito e perdendo-se nas copas dos ulmeiros. 
 Só as rosas do rosal estavam brancas e perfumadas como antes. E lá em baixo o Angueira batia contra os rochedos, zangado de o não deixarem passar á vontade.

Fonte:CHAVES, Luis Lendas de Portugal: Contos de Mouras Encantadas Lisboa, Livraria Universal, 1924 , p.147-160

Sem comentários:

Enviar um comentário