A utilização dos cães de gado para a protecção dos animais domésticos faz parte do sistema tradicional de pastoreio utilizado na Europa e na Ásia. Apesar da sua origem longínqua no tempo, este método constitui, ainda hoje, uma das medidas de protecção dos animais domésticos mais eficazes na diminuição dos ataques de predadores e de aplicação relativamente simples. Mais recentemente, os cães de gado despertaram o interesse dos conservacionistas, que pretendem recuperar a sua utilização, mas numa nova perspectiva – a conservação dos grandes carnívoros ameaçados de extinção, como é o caso do lobo-ibérico em Portugal.
O desaparecimento do lobo ibérico
Originalmente distribuído praticamente por toda a Península Ibérica, actualmente o lobo ibérico (Canis lupus signatus Cabrera, 1907) está limitado à região Nordeste. Em Portugal a espécie é considerada em perigo de extinção (Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal, 1990), estando totalmente protegida por lei desde 1988. No nosso País, a população lupina tem vindo a decrescer rapidamente, principalmente desde a década de 60, quando ainda se podiam observar lobos no Alentejo. Presentemente, esta espécie existe apenas nas regiões mais montanhosas e menos povoadas do Norte e Centro do País, correspondendo a cerca de 20% da sua primitiva área de distribuição.
Lobo adulto |
A coexistência entre o Homem e o Lobo esteve desde sempre envolta em conflito, na sua grande parte motivado pelos prejuízos que este predador causa nos animais domésticos. Devido à escassez das suas presas naturais, como o corço e o veado, o lobo baseia a sua alimentação nos animais domésticos, particularmente cabras e ovelhas - que constituem presas muito abundantes e de captura fácil. Os conflitos resultantes têm um grande impacto negativo na atitude das comunidades rurais para com o lobo, provocando a perseguição directa a este carnívoro. Esta foi uma das principais causas de extinção do lobo e constitui um dos principais factores de ameaça à sua sobrevivência.
A resolução do conflito – base para a conservação do lobo
Qualquer estratégia de conservação do lobo tem obrigatoriamente de passar pela diminuição dos conflitos com as comunidades rurais, por forma a melhorar a aceitação do predador. Para além das medidas compensatórias, nomeadamente através das indemnizações dos prejuízos, a aplicação de medidas preventivas que contribuam efectivamente para diminuir o impacto predatório do lobo sobre o gado, deverá assumir maior relevância. Neste âmbito, a utilização de cães de gado, conjuntamente com outros medidas, como sejam a presença do pastor e o confinamento nocturno dos animais, parece ser uma das soluções mais adequadas.
A utilização dos cães de gado faz parte do sistema tradicional de pastoreio. |
- por um lado, pretende-se definir as bases teóricas que permitam a correcta aplicação de diferentes métodos de protecção dos rebanhos, como os cães de gado, e demonstrar que a sua utilização adequada é um instrumento eficaz na diminuição dos ataques pelos predadores;
- por outro, contribuir para a recuperação das raças nacionais de cães de gado, com base em fundamentos científicos que tenham em conta os aspectos genéticos e comportamentais, valorizando, assim, a sua funcionalidade;
- finalmente, demonstrar a utilidade de uma medida prática que assegura a convivência Homem-Lobo, e como tal a sobrevivência deste predador.
Os cães de gado
Os cães de gado foram seleccionados ao longo de centenas de anos, tendo adquirido características morfológicas e comportamentais únicas, que os tornaram muito eficazes na protecção dos rebanhos. Embora parte integrante dos sistemas tradicionais de pastoreio, a sua utilização tem vindo a cair em desuso em toda a Bacia Mediterrânica, por várias razões de ordem sócio-económica.
Em Portugal, esta situação conduziu à diminuição do número de exemplares de cães de gado e à perda do conhecimento tradicional sobre a sua educação, de modo que hoje em dia a grande maioria destes cães são pouco eficazes. Com efeito, em muitas regiões do País os pastores utilizam cães inadequados (cães de caça) ou incorrectamente educados, que não são protectores eficazes dos rebanhos, o que contribuiu para aumentar os prejuízos económicos. Consequentemente, aumenta também o descontentamento dos pastores e produtores de gado para com o lobo, dificultando eventuais tentativas de protecção desta espécie.
A diminuição da utilização dos cães de gado colocou em perigo de desaparecimento a maioria das raças, inclusivé as portuguesas, como o Cão de Castro Laboreiro, o Cão da Serra da Estrela e o Rafeiro do Alentejo. No caso das raças Rafeiro do Alentejo e Cão da Serra da Estrela, o desaparecimento do lobo no Alentejo e, mais recentemente, na região da Serra da Estrela, foi uma das principais razões que conduziu à diminuição do número de exemplares destas raças, pois estes cães perderam a sua utilidade na protecção dos rebanhos. Não fora a acção de alguns canicultores mais atentos, nas décadas de 70 e 80, e algumas destas raças poderiam ter desaparecido. Não obstante os esforços efectuados, a variedade de pêlo curto do Cão da Serra da Estrela encontra-se ainda ameaçada.
Apesar de algumas raças estarem já fora de perigo, a situação não é menos preocupante, uma vez que a maioria dos exemplares são utilizados como cães de guarda/companhia ou de exposição, estando sujeitos a uma selecção baseada apenas na morfologia e que não tem em consideração os aspectos funcionais. Esta situação conduz ao cruzamento preferencial dos exemplares mais premiados - que apresentam melhores características morfológicas segundo o estalão definido para cada raça, promovendo o aumento progressivo dos níveis de consanguinidade e favorecendo o surgimento de malformações e disfunções reprodutivas nos animais, bem como a alteração do repertório comportamental das raças, dificultando, deste modo, a sua utilização funcional.
Recuperar a utilização dos cães de gado
O processo inicia-se com a entrega de cachorros aos criadores de gado que registem prejuízos mais elevados e que demonstrem interesse em participar. A motivação e o empenho dos criadores de gado demonstrou ser fundamental para o sucesso da medida. Até ao momento foram entregues 50 cachorros das três raças nacionais de cães de gado, a proprietários de rebanhos de cabras e/ou ovelhas de dimensão variável (entre 50 a 700 animais), pastoreados segundo o sistema extensivo tradicional, em diferentes zonas do Norte e Centro do País. Os cachorros são seleccionados com base nas características comportamentais e morfológicas dos progenitores, os quais são preferencialmente ainda utilizados na protecção de animais domésticos.
Apesar de ser um método de aplicação relativamente simples e que implica pouco esforço por parte do criador de gado, é necessário ter alguns cuidados e respeitarem-se algumas condições básicas.
A educação correcta dos cachorros é o factor essencial que irá determinar o seu sucesso futuro. Assim, desde o momento em que são integrados no rebanho, logo após o desmame, com cerca de 1,5-2 meses de idade, os cachorros deverão ser mantidos permanentemente com os animais que mais tarde deverão proteger, sendo o contacto humano reduzido ao mínimo e limitado ao pastor/criador e familiares. Isto permitirá que os cachorros estabeleçam laços sociais fortes com os animais do rebanho e, consequentemente, que os protejam em caso de perigo.
Durante o projecto, tornou-se evidente que não basta entregar os cães aos criadores de gado se estes não souberem como os educar correctamente. Assim, é necessário fazer um acompanhamento regular dos cães, desde a altura em que são entregues até atingirem a maturidade (por volta dos 18-20 meses de idade), por forma a aconselhar o criador de gado sobre a conduta e os cuidados a ter para com o cão. Desta forma, pretende-se assegurar o bom desenvolvimento físico dos cães e a correcção atempada de eventuais comportamentos inadequados. Este acompanhamento do desenvolvimento físico e comportamental dos cães é um aspecto de grande importância, que não deve ser menosprezado – cães debilitados ou com comportamentos incorrectos não podem ser bons guardadores de gado. As condições em que os cães são criados deverão ser igualmente objecto de atenção.
A manutenção de um apoio constante ao criador de gado, demonstrou também ser fundamental para o estabelecimento de uma relação de confiança mútua, facilitando a aplicação da medida e a conjugação de esforços com vista ao seu sucesso.
Os cães de gado devem demonstrar comportamentos de submissão para com os animais do rebanho. Cachorro da raça Cão de Castro Laboreiro integrado num rebanho de caprinos na região de Ribeira de Pena. |
Em áreas onde o lobo se extinguiu recentemente, a expansão natural da população lupina pode ocasionar ataques esporádicos aos rebanhos/manadas. Devido ao desaparecimento deste predador, o gado nestas regiões está geralmente mal protegido, pelo que qualquer ataque é susceptível de causar prejuízos muito elevados. Assim, é importante o desenvolvimento de medidas que assegurem uma protecção imediata e eficaz dos animais. Através da aplicação isolada ou da conjugação dos vários métodos de protecção será possível apoiar um maior número de criadores de gado, nomeadamente de gado bovino, contribuindo para aumentar o seu rendimento económico, e aumentar a tolerância das comunidades rurais face ao lobo.
Resultados promissores
A percentagem de sucesso dos cães adultos entregues foi de 80%: todos apresentam comportamentos de protecção adequados, estando efectivamente a diminuir o número de ataques aos seus rebanhos. O desempenho dos cães foi igualmente avaliado de forma muito positiva pelos proprietários. Com efeito, mais de 95% dos criadores consideram o seu cão muito eficiente na protecção do gado. Destes, mais de metade atribuem-lhe directamente a responsabilidade pela redução verificada nos prejuízos. No entanto, em virtude do grande número de variáveis que anualmente influenciam o impacto predatório – e.g. densidade da população de lobos, densidade de presas, condições das áreas de pastoreio - os benefícios económicos da utilização de um cão de gado são difíceis de avaliar a curto prazo, sendo necessário um acompanhamento ao longo de vários anos.
A colaboração que se tem verificado entre diferentes entidades públicas e privadas envolvidas nesta problemática, é um garante da aplicação continuada desta medida como uma nova ferramenta para a conservação do lobo em Portugal e da sua generalização a um cada vez maior número de criadores de gado. Para permitir a continuidade do projecto e fomentar e estreitar o envolvimento de todos os intervenientes, pretende-se criar e dinamizar uma associação que deverá centralizar a informação decorrente da investigação aplicada, com o objectivo de divulgar e prestar apoio técnico aos pastores/criadores de gado sobre a utilização das técnicas analisadas.
Como referido anteriormente, o desinteresse pelos cães de gado contribuiu para a diminuição do número de exemplares de cada raça, o que pode traduzir-se no aumento do grau de consanguinidade, com consequências negativas na viabilidade individual (redução da resistência às doenças) e nas características reprodutivas (fertilidade, fecundidade). Para a conservação dos recursos genéticos dos animais domésticos torna-se necessário intervir na gestão das raças, nomeadamente ao nível dos acasalamentos, de modo a manter uma variabilidade genética elevada. O estudo genético em desenvolvimento sobre cada uma das três raças de cães de gado, tem por objectivo fornecer informação útil aos canicultores, permitindo-lhes minimizar os riscos associados aos cruzamentos consanguíneos. Através da análise de várias dezenas de amostras de sangue de exemplares de cada raça, será possível proceder à caracterização de elementos do ADN nuclear, os microssatélites, e avaliar o seu grau de consanguinidade2.
Os cães de gado devem ter um comportamento alerta a situações estranhas. Cachorro da raça Cão de Castro Laboreiro integrado num rebanho de caprinos na região de Ribeira de Pena. |
Este projecto está a contribuir de uma forma importante para combater o cepticismo inicial revelado pelos vários sectores, quer públicos quer privados, e demonstrar que a utilização dos cães de gado como medida de prevenção dos ataques de predadores é útil, exequível e de baixo custo. Devido às acções de demonstração e divulgação efectuadas, assiste-se actualmente a uma maior consciencialização para o aspecto funcional das raças de cães de gado.
A aplicação de medidas preventivas é uma forma eficaz de reduzir os prejuízos que o lobo causa nos animais domésticos e melhorar as atitudes públicas para com este predador, contribuindo para a conciliação da actividade agro–pecuária com a vida silvestre. A redução do conflito entre o Homem e o Lobo é possível se for aplicada uma abordagem correcta à resolução dos problemas que estão na génese da perseguição ao predador.
Grupo Lobo – Definição de uma estratégia de conservação do lobo ibérico em Portugal
Este projecto insere-se numa estratégia mais ampla de conservação do lobo ibérico – o Projecto Signatus, definida em 1987 pelo Grupo Lobo, a qual integra diferentes linhas de acção, desde a educação ambiental e o estudo da relação com o Homem, à investigação científica sobre a sua biologia, ecologia, comportamento e genética, que permitam o estabelecimento de medidas práticas de conservação.
Exemplar adulto da raça Cão da Serra da Estrela, variedade de pêlo curto, integrado num rebanho de caprinos na região de Cinfães. |
1 Em 1996, foi obtido o primeiro financiamento do Instituto de Promoção Ambiental, o qual permitiu dar início a esta linha de acção. Em 1997, obteve-se um apoio mais significativo do IFADAP (Programa PAMAF-IED), para desenvolvimento do projecto intitulado “Contributo para a minimização do impacto económico dos predadores sobre os animais domésticos" (PAMAF-IED 8133), em conjunto com a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, o Instituto Nacional de Engenharia e Tecnologia Industrial e a Direcção Regional de Agricultura de Trás-os-Montes, e que conta com a colaboração do Parque Natural do Alvão e da Associação Nacional de Caprinicultores da Raça Serrana. Em 2000, e no seguimento do projecto anterior, obteve-se um segundo apoio do IFADAP (Programa AGRO) ao projecto “Novas soluções para o controlo da predação nos animais domésticos” (AGRO 311).
Silvia Ribeiro e Francisco Petrucci-Fonseca, Grupo Lobo
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