A tomada de Souane aos mouros
Senhores da vila de Souane [povoação hoje extinta], davam os mouros amiudadas sortidas pelas terras circunvizinhas, causando aos cristãos prejuízos sem conta. Cansados estes de por tanto tempo sofrerem o jugo do invasor, resolveram organizar um pequeno núcleo de resistência, constituindo o centro das operações no Castelo de Pinheiro Novo, vulgarmente chamado Cidade de Santa Rufina, na margem oposta do rio Rabaçal.
A empresa era difícil, porque o Castro de Souane, além de ser guarnecido de fortes muralhas, tinha pelo sul a protecção das outras povoações de Lomba em posse dos mouros, especialmente Quiraz sua fundação, e pelo norte a encosta íngreme inçada de fraguedos enormes até à margem do rio.
Por duas vezes o exército cristão escalou a encosta e pôs cerco à vila, mas debalde: os esculcas mouriscos depressa punham os habitantes em sobressalto, obrigando os cristãos a uma custosa retirada.
Vendo-se assim impossibilitados para nova investida, recorreram à protecção do apóstolo Santiago. Fizeram preces durante outro dias... E milagre extraordinário!
Na manhã do nono dia puderam ver numerosa cavalgada baixando dos montes do Pinheiro Novo. Há festa. Nessa noite o glorioso cabo de guerra mandou reunir todos os bois, vacas e cabras que havia nas aldeias vizinhas, e depois de colocar-lhes nos chifres archotes e faróis, marchou com o exército em direcção a Souane.
A noite estava escura. Já junto das muralhas, mandou acender os faróis, fazendo entrar o luzido exército para dentro do povoado(77). Os mouros, desprevenidos, acordam em alta gritaria, encontrando a maior parte, em louca correia, a morte nas pontas dos animais enraivecidos e nas lanças dos infantes e dos cavaleiros fogosos.
Souane foi arrasada. Os que puderam escapar, exteriorizaram o sentimento de perderem para sempre a afamada povoação, soltando dos outeiros distantes estes doridos queixumes:
– Adeus, formosa vila de Souane! Nunca mais te tornaremos a ver! Que a maldição caia sobre os cristãos!
(77) Esta estratégia de defesa popular é igualmente referida noutras zonas da região e do país, embora em relação a inimigos diferentes. Leite de Vasconcelos (1963: 727) cita a mesma lenda em Viseu referindo-se a Viriato contra os romanos e noutras partes contra os franceses (Guerra Peninsular). Também em Vila Pouca de Aguiar, distrito de Vila Real, correm versões de uma lenda de um tal “Capitão Vidoedo” que afugentou os espanhóis do vale de Aguiar ao organizar, durante a noite, um exército de reses com lampiões nos chifres (AAVV, 1998: 35-36). Refira-se ainda que, numa outra lenda incluída neste trabalho e referente a Alturas de Barroso, concelho de Boticas (n.º 17), refere-se o uso da mesma estratégia, agora num combate de mouros contra mouros.
Fonte: MARTINS, Firmino – Folclore do Concelho de Vinhais, vol. 1, 1987, pp. 272-273
O choro da moura [de Souane]
Uma formosa mourinha, perseguida pelos soldados, pôde escapar à morte ficando encantada em um fragueiro à beira do rio [Rabaçal]. Em ameno dia de primavera andava uma rapariga a pastorear o rebanho na encosta florida do Rabaçal, quando viu em cima do penedo informe uma donzela a pentear as fartas madeixas com pentes de ouro cravejados de rútilos diamantes, ao mesmo tempo que fazia a comida em uma sertã colocada sobre a fogueira crepitante. Tímida a princípio, por julgar ver alguma alminha do outro mundo, cobrou ânimo depois, dirigindo-se-lhe desta maneira:
– Quem és?
– Eu sou a linda moura de Souane. Choro aqui noite e dia a minha desgraça.
Livras-me do encantamento?
– E que queres que eu faça?
– Vem daqui a oito dias e dir-te-ei as condições. Mas não digas o que viste a ninguém, porque se o disseres, dobras-me o encanto e serei eternamente desgraçada.
E desapareceu.
A pastora não guardou segredo. Decorridos os oito dias voltou com o rebanho para a beira do rio, vendo sobre a penedia a pobre mourinha de sertã ao lume e de formosas madeixas ondulando à brisa quente. Vieram à fala. Mas a moura, já senhora da inconfidência, começou a chorar a desdita, precipitando-se no leito do rio.
Por largo tempo ecoaram nas margens do rio os queixumes doridos, vendo ainda hoje o povo no marulhar da água no sopé do fragueiro informe o choro triste da moura a carpir a saudade pungitiva da formosa vila de Souane...
E em certas manhãs de estio, ao observar as gotas cristalinas do orvalho nos líquenes da rocha, diz serem as lágrimas que eternamente vertem os olhos da moura em momentos de mais acerba lembrança. E, como prova indestrutível do facto, vê nos sinais gravados na rocha a sertã e a colher com que cozinhava.
Fonte: MARTINS, Firmino – Folclore do Concelho de Vinhais, vol. 1, 1987, pp. 273-274
Mouros Míticos em Trás-os-Montes – contributos para um estudo dos mouros no imaginário rural a partir de textos da literatura popular de tradição oral.
Alexandre Parafita
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