quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Música tradicional portuguesa – metodologias de recolha (I)

 Recolhas e ensaios – metodologias e meios utilizados


Todas as recolhas e ensaios que até aqui referimos concernem, pela metodologia e meios utilizados, ao que na história dos estudos etnomusicológicos portugueses poderíamos designar como período do lápis e do papel, caracterizado, nas palavras de Fernando Lopes Graça, pelo «velho método da anotação de ouvido».

A divulgação do fonógrafo veio determinar o início de outro período, marcado pela reprodução em princípio exacta, ou pelo menos adequada, do objecto em estudo, já não mediatizado por uma representação musical escrita.

É o que o mesmo Lopes Graça designou de «recolha da música tradicional mecânica»

No «Estudo crítico que precede a colectânea Cantares do Povo Português, redigido por meados da década de 30, Rodney Gallop lamenta a inexistência em Portugal de recolhas fonográficas de música tradicional, que no caso de algumas zonas da Europa remontavam ao princípio do século.

Na extensa «Introdução» às Velhas Canções e Romances Populares, de Pedro Fernandes Tomás (1913), António Arroio dissera haver já procedido a gravações de música tradicional portuguesa, certamente irrecuperáveis hoje em dia, e quando da sua permanência em Trás-os-Montes, em 1932, também Kurt Schindler terá utilizado o fonógrafo.

Tanto quanto sabemos, as mais antigas gravações sonoras de música tradicional portuguesa que pelo menos em parte subsistem, além das de Kurt Schindler eventualmente, resultam da pesquisa em 1940 cometida a Armando Leça pela Comissão Executiva dos Centenários e efectuada com registo de som da Emissora Nacional, pesquisa que se saldou na recolha de centenas de espécimes.

Recuperado pela edição moderna, que se impõe, destes documentos, ou de parte representativa dos mesmos, este será porventura o trabalho mais relevante que aquele investigador ficará a dever a etnomusicologia portuguesa, visto o menor interesse dos dois livros que sobre o assunto publicou: Da Música Portuguesa (1942) e Música Popular Portuguesa.

Os contributos da Emissora Nacional de Radiodifusão

A rádio, vista por alguns como um dos inimigos maiores da preservação da música tradicional numa mítica pureza originária, não deixa de, através da Emissora Nacional de Radiodifusão, criada pelo Estado em 1937, atender a este sector do património cultural português, acolhendo vozes que clamam pela sua defesa e valorização.

Lembramos, a título de exemplo, a série de palestras que, logo nos primórdios da história da estação radiofónica do Estado (1937/1938), profere António Emílio de Campos, apoiando-se simultaneamente no magistério de Francisco de Lacerda, de quem fora amigo e colaborador, e no de Rodney Gallop.

Já antes das primeiras recolhas fonográficas que efectuou, Artur Santos procedera, através do velho método do lápis e do papel, à colheita de música tradicional portuguesa, de que harmonizara alguns espécimes para canto e piano.

É, todavia, sobretudo como responsável por recolhas e edições fonográficas – solicitadas por instituições diversas, em Angola, Madeira, Açores e Portugal continental, no que foi coadjuvado por sua mulher, Túlia Santos – que o seu legado é merecedor de consideração.

Destas, destacamos as que respeitam a Portugal continental, publicadas pela British Broadcasting Corporation (1956), e ao arquipélago açoriano, onde, com financiamento da Junta Geral do Distrito de Angra do Heroísmo e do Instituto Cultural de Ponta Delgada, foram exploradas, na segunda metade da década de 50 e no início da década seguinte, as três ilhas mais orientais do arquipélago: Santa Maria, S. Miguel e Terceira.

Fernando Lopes Graça e a música tradicional portuguesa

Pertencendo à mesma geração que Artur Santos, Fernando Lopes Graça tem uma relação mais complexa, ou multimoda, com a música tradicional portuguesa. Talvez para chamar a atenção para o facto de ser, e a si mesmo se ver, sobretudo como um compositor, sempre lhe escutámos não se considerar um etnomusicólogo.

Sendo evidente que era em boa parte pela necessidade de, enquanto criador musical de orientação nacionalista, se achegar a uma «essência» da música do seu povo que desta se ocupou, nem por isso deverá a dimensão científica do seu contributo ser omitida.

Insistindo na definição da música popular portuguesa como a do património das nossas comunidades rurais, exagerando certamente no seu combate contra a «mitologia fadista», deve-se-lhe um significativo legado em matéria estritamente etno-musicológica, seja pela reflexão produzida sobre a nossa música tradicional (cf. A Canção Popular Portuguesa e vários outros textos sobre o tema, os quais integram alguns dos volumes das obras literárias publicadas), seja por algum trabalho de campo a que também procedeu, só ou acompanhando Michel Giacometti, seja ainda pelo apoio musicológico que a este último não regateou.

A dedicação exclusiva de Michel Giacometti

Talvez o único investigador que acabou, após diversas experiências juvenis, por consagrar-se com exclusividade à música tradicional portuguesa, Michel Giacometti é um corso que em 1959 se fixou em Portugal, onde permaneceu o resto dos seus dias, calcorreando o território metropolitano de lés-a-lés.

Além de um Cancioneiro Popular Português (1981), publicado no final da vida, com transcrições provenientes, em parte, de colectâneas doutros autores, no seu legado avulta o acervo das gravações sonoras, publicadas em sucessivas edições discográficas («Arquivos Sonoros Portugueses» e outras).

Com Giacometti, os valores do registo sonoro são alargados à integral captação do fenómeno musical, no seu contexto, no gesto mesmo que ele representa, mercê do registo «vídeo» – o que está na origem das emissões televisivas Povo Que Canta, as quais representam um conjunto documental a pôr ao alcance de todos, em edição pública.

Apesar dos contributos apreciáveis que vimos de referir, em Portugal não chegou a ser feita a recolha mais ou menos exaustiva, por um lado, e a reflexão aprofundada, por outro, que a canção popular mereceu em alguns países europeus.

Esta lacuna é considerável, e os factores que a explicam requeriam, se para tal dispuséssemos de espaço, análise atenta.

Geralmente, restringem-se os contributos que se verificaram a uma fracção do País, ou quando se consubstanciam em obras intituladas, como a de Rodney Gallop, Cantares do Povo Português, ou A Canção Popular Portuguesa, de Fernando Lopes Graça, constituem uma amostragem limitada, infelizmente não elucidativa do património musical das comunidades rurais portuguesas, na pluralidade das suas formas, na pujante capacidade de variação de muitas delas.

O Cancioneiro Popular Português

Recentemente publicado, o Cancioneiro Popular Português, de Michel Giacometti, aproxima-se, nos duzentos e cinquenta trechos reunidos, dum objectivo de amostragem das tradições musicais do povo português.

Muito antes, ao falecer, em 1934, Francisco de Lacerda deixara, como dissemos, pronta para publicação, uma vasta colectânea, de mais de meio milhar de espécimes harmonizados para canto e piano, da qual chegaram a publicar-se postumamente, em seis fascículos, poucas dezenas de canções.

No que respeita às publicações fonográficas efectuadas, também elas representam uma amostragem apenas do património etnomusicológico português, ou, quando mais minuciosas, circunscrevem-se a parcelas do território nacional.

Continua...

Fonte: “O essencial sobre a Música Tradicional Portuguesa”, José Bettencourt da Câmara (texto editado e adaptado) | Imagem: “No Minho, a afamada «Música do Zé Pereira» que, com as suas execuções, muito alegra as romarias” (“Ilustração Católica”, nº327 – 1928)

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