quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Música tradicional portuguesa – metodologias de recolha (II)

... continuação 

Desinteresse das instituições públicas ou privadas


É lamentável que no âmbito das instituições oficiais ou privadas, que dispunham de meios para o realizar, não tenham os responsáveis demonstrado a visão larga, o empenho necessário para levar a cabo este objectivo fundamental em todo um sector relevante da cultura portuguesa.

Se já em 1902 o Conselho de Arte Musical do Conservatório de Lisboa propõe a recolha da música tradicional portuguesa, nem por isso deixa de ser verdade que as iniciativas oficiais neste domínio, geralmente, mal passaram do papel, com excepção dos apoios às recolhas fonográficas de Armando Leça e de Artur Santos, ou ainda da colaboração de Michel Giacometti com a estação de radiotelevisão do Estado.

Muitas das lacunas nos trabalhos referenciados decorrem do próprio responsável pelas recolhas, ou autor das considerações sobre as mesmas, de facto dispondo, às vezes, de preparação artística e científica algo rudimentar.

O problema da formação humanística que em Portugal os músicos raramente receberam, ressalta aqui também: uma sólida formação musical, aliada à preparação em algum domínio das ciências humanas, estimulada por apoios institucionais, teria propiciado um melhor conhecimento do País também no que respeita às suas tradições musicais

Infelizmente, a investigação da nossa música tradicional não atingiu a qualidade a que, às mãos de homens como Teófilo Braga, José Leite de Vasconcelos ou Jorge Dias, se alcandorou a etnografia portuguesa.

Às vezes excessivamente marcada por preocupações alheias à ciência, transmitiu aqui e ali, do seu objecto, uma imagem pitoresca, não consentânea com a dignidade, o valor do mesmo.

Uso da cultura popular para fins políticos

E, se nos continua a surgir como justa a denúncia de um Lopes Graça e um Michel Giacometti de usos da cultura popular para fins políticos, não deixou, a obsessão da «pureza», ou do «arcaísmo», naqueles investigadores, de assumir foros de quase preconceito, evidente, por exemplo, na tendência para excluir os espécimes coreográficos em colectâneas que se propunham oferecer uma visão representativa do património musical de algumas regiões do País.

As próprias designações dadas ao objecto aqui visado e à ciência que dele se ocupa desde a de «folclore musical» às de «música tradicional» e «etnomusicologia», passando por outras como «música regional» ou «música popular» exprimem significativas transformações de perspectiva na história da investigação da música tradicional portuguesa, as quais não teríamos, obviamente, por negativas.

Reconheçamos que, não fossem o esforço e o entusiasmo desses paladinos que aqui referimos, estaríamos hoje privados de muitos valores que na circunstância de origem entretanto se perderam.

Não deixaram os elementos para a construção duma ideia porventura suficiente da música tradicional portuguesa de ser carreados.

Muito antes da consagração académica dos estudos etnomusicológicos em Portugal foi possível, com lacunas, com deficiências muito embora, obter a salvaguarda de testemunhos eloquentes de um importante domínio de expressão do povo português.

Não serão apenas os resultados da investigação já levada a cabo, consubstanciada seja em textos de fôlego ensaístico mais ou menos seguro, seja na própria música escrita ou gravada, a constituir ponto de partida para uma abordagem actual do património etnomusical português.

Tem a música tradicional portuguesa ainda algum presente, por assim dizer, o qual não deve, é claro, ser menosprezado.

Os Ranchos Folclóricos

Para além dos testemunhos que eventualmente perdurem em elementos idosos das populações, de tradições que ainda mantêm nos nossos dias algum vigor, é esse presente indissociável da prática dos chamados ranchos folclóricos.

Foi a consciência das transformações que o advento da civilização industrial vem operando nas comunidades rurais portuguesas – assim arrancadas ao sono autárcico em que durante séculos permaneceram, trazidas para a era da rádio, primeiro, e da televisão e da Internet, de – pois, sem, nos termos de Marshall McLuhan, haverem acedido à galáxia de Gutenberg – que leva ao aparecimento, desde as primeiras décadas do século XX, de grupos visando a preservação da música regional (além da dança e da indumentária, sobretudo).

A interferência de eruditos na criação de alguns ranchos pioneiros e significativa dessa vontade de salvaguardar valores de um mundo aparentemente em extinção: Abel Viana no caso do de Carreço, a família Guedes da Silva no de Barqueiros, José da Cruz Tavares no da Covilhã, Tomás Gomes Ciríaco no de Serpa.

Rigor etnográfico

Parece incontornável o artificialismo inerente à solução; mas, tal como se verifica com essa instituição universal que é o museu, devemos aqui reconhecer que, ao retirarmos a obra artística do seu contexto de origem, para preservá-la, acabamos por nela fazer ressaltar intrínsecos valores estéticos.

São de combater, naturalmente, os atropelos ao rigor etnográfico, a perda da cor local, aqui imprescindível.

Não deveria, também, ao lado dos valores da consulta directa aos testemunhos vivos da tradição ainda disponíveis, escusar-se o apoio de peritos em cultura popular, o que aconselhará, eventualmente, a criação de escolas especializadas e, nesse âmbito, o estudo da música tradicional.

Há, de qualquer modo, que pensar diferenças entre a circunstância em que o povo fazia a sua música para si mesmo, em que a música tradicional era reproduzida no seu Sitz im Leben próprio, de outras, determinadas, muitas vezes, por motivações comerciais, ou tão-só de preservação de valores que entretanto, no seu contexto natural, se perderam – para não falar da apropriação, entre nós frequente, da música rural por grupos urbanos de música popular, apropriação lícita, certamente, mas podendo motivar equívocos que não servem à própria musica tradicional.

continua...

Fonte: “O essencial sobre a Música Tradicional Portuguesa”, José Bettencourt da Câmara (texto editado e adaptado) | Imagem: “Os Zé-Pereiras nas romarias do Minho”

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