Em finais da década de cinquenta, há cerca se sessenta anos, só na minha aldeia havia uns oito rebanhos de gado, a saber: dos Pinto Azevedo (de Vale Pradinhos – Macedo de Cavaleiros) cujo pastor era o António Mateus, de alcunha «o Sardinha» que tinha uma memória prodigiosa; do casal do Capitão Ilídio Esteves, sendo pastor o Abel Caldeiras, dos homens mais íntegros e sérios que conheci, embora tivesse mau vinho; do Correia de Oliveira onde pastoreava o Miguel Mateus; do meu tio, António José Lage; do meu pai, Eugénio Lage, cujo pastor mais marcante foi «o Canhoto» (Adriano); do Carlos Meireles, cujo pastor mais sonante foi «o Campainha»; o dos Abelhas, por vezes, com o Arlindo mais no trabalho de paquete e o Rôla (João) como pastor; e o do Casal dos Limas.
Com tantas cabeças de canhonas para alimentar não havia erva nem arbusto que crescesse muito. Incêndios só nalgumas moutas de silvas. E estas é porque não havia cabradas, se não, nem as silvas escapavam, porque dente de cabra é pior que fogo. Rapa e limpa tudo.
Incêndios? Só os que os carvoeiros dos Passos provocavam, por distracção, quando «faziam» o carvão. Ou então, um ou outro pastor de Suçães, ao pastorear a cabrada, convertia o seu protesto em ira pirómana, por o impedirem de alimentar o fato na floresta do Estado.
Mas, pastor que era mesmo pastor, antes de sair com as canhonas da corriça ou do bardo, ou até no dia anterior, traçava a «volta» do pastoreio ao raiar do dia ou ainda de noite. Muitas vezes, outro gado que saiu à frente e tomou a direcção que aquele ia tomar «obrigava» o pastor a escolher outra corda. Gados a andarem próximos uns dos outros não era aconselhado. Primeiro, porque as canhonas querem sossego para fazerem pela vida e, segundo, porque passar o gado, no mesmo dia, por onde já passou outro rebanho pouco deviam aforrar para o bandulho. Havia sempre recantos, naves, ladeiras, ribeiros ou montes da preferência do rebanho e onde ficavam, se não fartas, pelo menos compostas do bucho.
Por isso, dei muitas vezes com o meu irmão Eduardo a falar com os seus botões, que afinal era para corrigir a volta do gado naquele dia. Traçada a volta, por esta ou aquela corda, podia ser direcionada a qualquer momento para outro lado.
A pior coisa que podia acontecer a um pastor brioso e sábio era acancelar as reses cheias de fome. Ao chegar à corriça, ouviria os protestos com alguma berraria devido à fome. Os berros eram como espinhos cravados no peito do pastor. Era uma vergonha! Se outros topassem a situação seria alvo de chacota ou escárnio, no próximo adjunto da aldeia ou ao cruzar-se com algum mais mordaz.
Melhor dizendo, os pastores vigiavam-se uns aos outros. Os que andavam à volta do gado (ovino) olhavam para o corpo das canhonas, para a lã se era forte e brilhosa ou se os cordeiros estavam bem-criados e sabiam avaliar qual o melhor pastor da aldeia.
Uma tarde, de fim de sesta, juntaram-se debaixo da varanda do Capitão, à entrada da loije dos bois, alguns dos pastores e lavradores da minha aldeia e, como também lá estava o meu pai, eu acabei por ter lugar de assistente. Claro que, eu criança, tinha de estar calado como uma parede. Depois do Abel Caldeiras e o meu pai terem desfiado um conjunto de topónimos do concelho de Mirandela e nos arredores, como S. Pedro (Velho, Vale de Conde e Trás da Serra), a conversa descambou para quem eram os melhores pastores.
O pastor mais respeitado, pela postura e saber era o Caldeiras, mas os irmãos Mateus, Sardinha e Miguel, granjeavam respeito. Um dos gabarolas presentes dizia que fazia e acontecia, que o seu rebanho era o melhor tratado. O Miguel era cego de um olho e encerrou a gabarolice em questão, dizendo: cala-te lá! Vejo eu mais só com um olho do que tu com os deis! Certo é que se fez silêncio e o tema do cavaqueio foi puxado para outros temas.
Ao Miguel merece que se lhe abra espaço para um episódio assombroso que protagonizou, apesar de ser analfabeto, como a maioria. Um dia de Verão ou Inverno, não interessando para o caso. Só que no Verão seriam sacas de trigo e no Inverno de azeitona, inclinando-me eu para as sacas de trigo. Os Pinto Azevedo terão mandado pesar a colheita junto ao antigo olival depois do embarcadouro da margem esquerda do rio Tuela, onde agora começa o Campismo da Maravilha, no sentido Norte/Sul.
Foi lá uma camioneta pelo carreto e assistiu ao pesar da carga um contabilista que ia assentando o peso de cada saca. No final, o contabilista disse que tinha de fazer a conta de somar. O Miguel, analfabeto, disse para o contabilista: então não sabe quantos quilos são?
O contabilista disse-lhe que tinha de somar e no fim tirar a prova real.
- Escusa de fazer a conta porque são X quilos – disse o Miguel.
Após fazer soma, o contabilista, estupefacto, chegou aos mesmos números que o Miguel, analfabeto, chegara, com a sua folha de cálculo virtual.
O irmão, de alcunha o Sardinha, fotografava e metia no seu «disco cerebral» todos os episódios da sua vida de pastor. A qualquer acontecimento passado e por ele vivido ou presenciado, rematava em voz de oratória e pausada: – isso passou-se no dia X, pelas tantas horas, estando o tempo… e presenciaram fulano e cicrano. Tinha mesmo uma memória incrível e fotográfica.
Passado um bocadito o Rôla terá dito que tinha que ir abalar o gado que ficou a assestar no olival das Adegas. No Verão, as ovelhas assestavam, nos olivais sem muros ou cancelas, protegendo-se do calor abrasador à sombra, até baixar o sol e a fome apertar.
No pino do Verão, ou se quiserem do calor, o gado começava a comer ao cair do sol, quando o tempo refrescava um pouco e, geralmente, pastoreava e lambia o folhato, nas restrolhas do trigo de outra erva seca. Não escapavam os arbustos mais mimosos e as amoras secas dos silvados. Lá para a uma ou duas da manhã as canhonas faziam uma pausa, para remoerem. E dormiam num local mais resguardado se a noite era pró fresco ou em pleno croeiro se eram quentes e abafadas. Os cães dormiam com um olho aberto e outro fechado, faro e orelhas apuradas, não fosse o «bicho» fazer das suas. Ao sinal dos cães do gado o lavrador juntava mais o rebanho ou conduzia para um local mais abrigado. Esta experiência que vos conto vivi-a por uma vez.
Jorge Lage
in:atelier.arteazul.net
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