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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

quinta-feira, 5 de outubro de 2017

Já não há Pastores em Mirandela?

Em finais da década de cinquenta, há cerca se sessenta anos, só na minha aldeia havia uns oito rebanhos de gado, a saber: dos Pinto Azevedo (de Vale Pradinhos – Macedo de Cavaleiros) cujo pastor era o António Mateus, de alcunha «o Sardinha» que tinha uma memória prodigiosa; do casal do Capitão Ilídio Esteves, sendo pastor o Abel Caldeiras, dos homens mais íntegros e sérios que conheci, embora tivesse mau vinho; do Correia de Oliveira onde pastoreava o Miguel Mateus; do meu tio, António José Lage; do meu pai, Eugénio Lage, cujo pastor mais marcante foi «o Canhoto» (Adriano); do Carlos Meireles, cujo pastor mais sonante foi «o Campainha»; o dos Abelhas, por vezes, com o Arlindo mais no trabalho de paquete e o Rôla (João) como pastor; e o do Casal dos Limas.
Com tantas cabeças de canhonas para alimentar não havia erva nem arbusto que crescesse muito. Incêndios só nalgumas moutas de silvas. E estas é porque não havia cabradas, se não, nem as silvas escapavam, porque dente de cabra é pior que fogo. Rapa e limpa tudo.
Incêndios? Só os que os carvoeiros dos Passos provocavam, por distracção, quando «faziam» o carvão. Ou então, um ou outro pastor de Suçães, ao pastorear a cabrada, convertia o seu protesto em ira pirómana, por o impedirem de alimentar o fato na floresta do Estado.
Mas, pastor que era mesmo pastor, antes de sair com as canhonas da corriça ou do bardo, ou até no dia anterior, traçava a «volta» do pastoreio ao raiar do dia ou ainda de noite. Muitas vezes, outro gado que saiu à frente e tomou a direcção que aquele ia tomar «obrigava» o pastor a escolher outra corda. Gados a andarem próximos uns dos outros não era aconselhado. Primeiro, porque as canhonas querem sossego para fazerem pela vida e, segundo, porque passar o gado, no mesmo dia, por onde já passou outro rebanho pouco deviam aforrar para o bandulho. Havia sempre recantos, naves, ladeiras, ribeiros ou montes da preferência do rebanho e onde ficavam, se não fartas, pelo menos compostas do bucho.
Por isso, dei muitas vezes com o meu irmão Eduardo a falar com os seus botões, que afinal era para corrigir a volta do gado naquele dia. Traçada a volta, por esta ou aquela corda, podia ser direcionada a qualquer momento para outro lado.
A pior coisa que podia acontecer a um pastor brioso e sábio era acancelar as reses cheias de fome. Ao chegar à corriça, ouviria os protestos com alguma berraria devido à fome. Os berros eram como espinhos cravados no peito do pastor. Era uma vergonha! Se outros topassem a situação seria alvo de chacota ou escárnio, no próximo adjunto da aldeia ou ao cruzar-se com algum mais mordaz.
Melhor dizendo, os pastores vigiavam-se uns aos outros. Os que andavam à volta do gado (ovino) olhavam para o corpo das canhonas, para a lã se era forte e brilhosa ou se os cordeiros estavam bem-criados e sabiam avaliar qual o melhor pastor da aldeia.
Uma tarde, de fim de sesta, juntaram-se debaixo da varanda do Capitão, à entrada da loije dos bois, alguns dos pastores e lavradores da minha aldeia e, como também lá estava o meu pai, eu acabei por ter lugar de assistente. Claro que, eu criança, tinha de estar calado como uma parede. Depois do Abel Caldeiras e o meu pai terem desfiado um conjunto de topónimos do concelho de Mirandela e nos arredores, como S. Pedro (Velho, Vale de Conde e Trás da Serra), a conversa descambou para quem eram os melhores pastores.
O pastor mais respeitado, pela postura e saber era o Caldeiras, mas os irmãos Mateus, Sardinha e Miguel, granjeavam respeito. Um dos gabarolas presentes dizia que fazia e acontecia, que o seu rebanho era o melhor tratado. O Miguel era cego de um olho e encerrou a gabarolice em questão, dizendo: cala-te lá! Vejo eu mais só com um olho do que tu com os deis! Certo é que se fez silêncio e o tema do cavaqueio foi puxado para outros temas.
Ao Miguel merece que se lhe abra espaço para um episódio assombroso que protagonizou, apesar de ser analfabeto, como a maioria. Um dia de Verão ou Inverno, não interessando para o caso. Só que no Verão seriam sacas de trigo e no Inverno de azeitona, inclinando-me eu para as sacas de trigo. Os Pinto Azevedo terão mandado pesar a colheita junto ao antigo olival depois do embarcadouro da margem esquerda do rio Tuela, onde agora começa o Campismo da Maravilha, no sentido Norte/Sul.
Foi lá uma camioneta pelo carreto e assistiu ao pesar da carga um contabilista que ia assentando o peso de cada saca. No final, o contabilista disse que tinha de fazer a conta de somar. O Miguel, analfabeto, disse para o contabilista: então não sabe quantos quilos são?
O contabilista disse-lhe que tinha de somar e no fim tirar a prova real.
- Escusa de fazer a conta porque são X quilos – disse o Miguel.
Após fazer soma, o contabilista, estupefacto, chegou aos mesmos números que o Miguel, analfabeto, chegara, com a sua folha de cálculo virtual.
O irmão, de alcunha o Sardinha, fotografava e metia no seu «disco cerebral» todos os episódios da sua vida de pastor. A qualquer acontecimento passado e por ele vivido ou presenciado, rematava em voz de oratória e pausada: – isso passou-se no dia X, pelas tantas horas, estando o tempo… e presenciaram fulano e cicrano. Tinha mesmo uma memória incrível e fotográfica.
Passado um bocadito o Rôla terá dito que tinha que ir abalar o gado que ficou a assestar no olival das Adegas. No Verão, as ovelhas assestavam, nos olivais sem muros ou cancelas, protegendo-se do calor abrasador à sombra, até baixar o sol e a fome apertar.
No pino do Verão, ou se quiserem do calor, o gado começava a comer ao cair do sol, quando o tempo refrescava um pouco e, geralmente, pastoreava e lambia o folhato, nas restrolhas do trigo de outra erva seca. Não escapavam os arbustos mais mimosos e as amoras secas dos silvados. Lá para a uma ou duas da manhã as canhonas faziam uma pausa, para remoerem. E dormiam num local mais resguardado se a noite era pró fresco ou em pleno croeiro se eram quentes e abafadas. Os cães dormiam com um olho aberto e outro fechado, faro e orelhas apuradas, não fosse o «bicho» fazer das suas. Ao sinal dos cães do gado o lavrador juntava mais o rebanho ou conduzia para um local mais abrigado. Esta experiência que vos conto vivi-a por uma vez.

Jorge Lage
in:atelier.arteazul.net

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