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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite, Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

segunda-feira, 9 de abril de 2018

CONVERSAS COM A VELHA

E se as mulheres ficavam viúvas ou os maridos iam para a guerra, como passava a ser a vida em casa? – perguntei por me parecer que havia muitas mulheres nessas circunstâncias na aldeia.
Talvez muitas fossem viúvas por questões que só o tempo explica juntamente com as maleitas que o corpo produz com o passar do mesmo tempo, dos trabalhos, das agruras, das lágrimas e de tormentos que nos vêm ao pensamento e que, às vezes, nem conseguimos explicar. Ainda assim, a aldeia estava despovoada de homens e os que resistiam aos invernos miravam a luz do dia taciturnamente, como se lhe fizessem um favor. Como se sentissem já não pertencer àquele chão.
– A bidinha tinha de continuar. Já che chabe! Com o home em caja às bezes era mais fácil. Ele trataba dos animais e dos prédios, ia a chamar as gentes prás sementeiras e prás colheitas… Mas não ch’esquecha que muntos eram uns doidos por binho e batiam nas mulheres e nos filhos. Habia por aí umas cajas desgraçadas, que julga? – respondeu, atirando o olhar para o alto, ao mesmo tempo que a ponta do xaile caía com espalhafato em cima do seu ombro.
– Mas quando os homens cumpriam o seu dever…
– Ah, chim, chim. Quando eles eram homes às dreitas e Deus os lebaba ou iam prá guerra… olhe as mulheres e os filhos não deixabam a caja cair, não penche! Habia uma mulher cá n’aldeia…
Ainda sentada, inclinei o rosto para a frente num ato irrefletido de quem quer ouvir com nitidez todas as sílabas sibiladas por entre os espaços que os dentes haviam deixado já. Era a história de vida de uma vizinha. Ficara viúva quando ainda os quatro filhos cabiam “debaixo de um cesto” e não lhe restou mais nada que não fosse agarrar a vida e levá-la retorcida pelos caminhos do tempo.
Enquanto fora casada, e porque não era sítio para mulheres noutra condição, habituara-se a trabalhar na taberna da aldeia. Atendia os clientes, sem conversas. Vendia vinho e alheiras. Alugava os quartos da casa da taberna aos estudantes que lavava e passava como se fossem os seus próprios filhos. Mas, depois da noite em que velara o corpo do marido enroscada num cobertor de ovelha, não voltaria a pisar o chão pedregoso da taberna. Imprimiria o luto no corpo e apertaria com força o lenço na cabeça – sinal de que continuava a velar o marido, o seu “home”. Os cabelos longos e vistosos perderiam o brilho e a cor sem que ninguém notasse, mas manter-se-ia afastada da censura das vizinhas.
Ao longo dos anos, tudo valeria para criar os filhos – a horta, o pão, o gado… e as alheiras – as melhores das redondezas. Mesmo quando passavam oito dias embrulhadas em jornais e perdidas nas encomendas do comboio para Coimbra, o destinatário não abdicava delas!
– Nunca tinha pensado nessa questão da censura no caso de as viúvas tirarem o lenço…- disse em jeito de desabafo e admiração.
A Velha parecia continuar a sua caminhada pelas memórias da aldeia e não completou a minha falta de perspicácia para com as leis sociais instituídas no mundo rural.
– Habia outra, aí na caja grande – aquela lá n’antrada d’aldeia. Botaram-se a chamar a caja grande por ser por’í a mais rica cá entre nós. Bem, o qu’é cherto é qu’eles tinham uma rapariga que chó punha o pé na rua com a criada atrás dela. – estancou o quase monólogo e olhou-me para analisar o meu nível de pasmo que deveria ser grande porque colheu animo para prosseguir.
A menina da casa grande crescera no seio de uma família letrada e abastada. Apesar do conforto económico, aprendera a desempenhar, com exigência e retidão, todas as tarefas da casa grande porque um dia seria ela a mandar os criados, certamente. A mãe, professora primária, deslocava-se a cavalo para a escola da aldeia mais próxima, mas a menina da casa grande aprendia a fazer a barrela, a manusear o ferro a carvão, as compotas, o fumeiro…
A Velha continuava a sina da menina da casa grande e eu pensava que cada mulher encerrava em si uma história de vida diferente. Uma luta diferente. Ergui-me e despedi-me. A menina da casa grande esperaria até à próxima conversa.


Lídia Machado
Revista Raízes

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