Afonso desceu das muralhas com o peso da noite ainda nos ombros. As palavras do espectro ecoavam-lhe no peito como ferro batido: “Sou a dívida por saldar.”
Não eram simples alucinações. Aquela aparição tinha substância, uma presença que o frio da serra não conseguia apagar.
Na manhã seguinte, encontrou-se com Lídia e Baltasar na velha igreja de pedra, onde o fogo das velas lutava contra o sopro do inverno que atravessava as frestas.
- Se o Cavaleiro regressou, não podemos enfrentá-lo apenas com espadas. Disse Baltasar, apoiado no bordão. - É preciso entender quem foi, e o que o prende a estas muralhas.
Lídia folheava um manuscrito gasto, de capa rasgada. Eram anotações que guardava do convento de Castro de Avelãs.
- Há registos de um cavaleiro que caiu em desgraça durante o cerco de Bragança, há mais de trezentos anos. Chamavam-lhe Dom Martinho de Soutelo. Era leal ao rei, mas acusado de traição por abrir uma das portas da cidade ao inimigo. Foi condenado a morrer em silêncio, trancado nos subterrâneos do castelo.
- E o que tem isso a ver com as pegadas? Interrompeu Afonso, impaciente.
- Tudo. Respondeu Baltasar. - Diz-se que jurou nunca abandonar as muralhas até provar a sua inocência. Se agora regressa, é porque a sua verdade nunca foi revelada.
O silêncio caiu pesado sobre os três.
- Então é uma alma injustiçada? Perguntou Lídia, quase num sussurro.
- Ou vingativa, retorquiu Afonso. - Seja qual for, não podemos deixar que vagueie por aqui. O povo já começa a falar, e o medo espalha-se mais rápido que a neve.
Baltasar endireitou-se, os olhos brilhavam com um estranho fervor.
- Se querem respostas, devem ir às catacumbas sob o castelo. É lá que o corpo de Dom Martinho repousa. As muralhas guardam mais do que pedra, guardam vozes que só se revelam a quem ousa escutá-las.
Na noite seguinte, os três desceram aos subterrâneos. As tochas iluminavam corredores estreitos, cobertos de musgo e gelo. O cheiro a terra húmida e ferro oxidado impregnava o ar.
- Nunca devíamos ter vindo… murmurou Lídia, agarrando-se à lanterna.
Mas Afonso avançava com firmeza. Para ele, cada passo era um desafio à própria sombra que o perseguia.
Chegaram a uma sala ampla, onde um sarcófago de pedra repousava no centro. Gravadas na tampa, runas gastas contavam uma história que ninguém soubera ler por completo. Baltasar ajoelhou-se, passando a mão pelas inscrições.
- “Aquele que foi traído será condenado ao silêncio até que a verdade seja ouvida.” Leu, num tom quase reverente.
De súbito, um sopro gélido percorreu a sala. As tochas tremeluziram. A tampa do sarcófago rangeu, como se alguma coisa se mexesse por dentro.
- Afasta-te! Gritou Afonso, puxando a espada.
A pedra abriu-se lentamente. De lá, não saiu nenhum corpo, mas um véu negro de fumo, que tomou forma diante deles, a mesma armadura vazia, agora envolta em chamas frias, que não queimavam mas gelavam o ar.
A voz cavernosa ecoou pelas paredes:
- Não fui eu quem traiu. Mas enquanto o vosso sangue negar a verdade, caminharei sobre estas muralhas.
O vento soprou com violência, apagando todas as tochas. No breu, apenas os olhos da figura brilhavam, como brasas num mundo de gelo.
E assim começou a investigação não apenas de um mistério, mas de uma verdade enterrada sob séculos de silêncio, uma verdade que poderia libertar ou condenar para sempre a cidade de Bragança.
Continua...
N.B.: A narrativa e os personagens fazem parte do mundo da ficção. Qualquer semelhança com acontecimentos ou pessoas reais, não passa de mera coincidência.
O Cavaleiro das Sombras - Capítulo I – O Guardião das Portas

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