Há 38 anos, levei a Macedo de Cavaleiros dois colegas de andanças estudantis por Lisboa, desejosos que estavam por conhecer as «terras de trás-do-sol-posto», como jocosamente designavam Trás-os-Montes. Surpreendido tendo ficado por, após o convívio com a genuinidade das nossas gentes, particularmente depois de uma lauta merenda servida pela minha avó, me terem questionado acerca da Língua que por terras Macedenses se falava. Sem ter efectiva noção do alcance da pergunta, convictamente lhes respondi que falávamos Português.
Não obstante a argumentação, confidenciar-me-iam que não tinham percebido rigorosamente nada daquilo que a minha avó lhes transmitia. Para lá de me terem referenciado alguns termos cujo significado não entendiam de todo, reforçaram que a pronúncia era inentendível. Essa chamada de atenção serviu de alerta para uma realidade em relação à qual nunca me tinha debruçado. Concluiria que, de facto, havia o «nosso» Português e o «Português da minha avó». E entrei numa cruzada para tentar perceber as razões para a existência dessa variante de... «Português da minha avó».
Após quase quatro décadas, nas quais se vai obliterando aquilo a que já ouvi a muitos designar como «falar dos nossos avós», e depois de muito do meu tempo ter dedicado a tentar entender as «entranhas» desse tal de «Português da minha avó», eis que me deparo, de novo, com a «batalha entre o butelo e o botelo».
Não sendo, propriamente, um adepto de «meter a foice em seara alheia», apenas por não querer expor-me ao risco de entrar em fúteis discussões que terminam, invariavelmente, com um «foi-se», decidi, «a pedido de várias famílias», abrir uma excepção, participando, pela primeira vez (que será, provavelmente, única), neste fantástico espaço representado pelo «Memórias… e outras coisas». Apenas por uma questão de obrigação moral, sem desprimor para a também minha Língua Portuguesa (a qual me recuso, porém, a grafar em «aborto ortográfico»), todavia elevando, de primordial forma, o facto de ser oriundo de uma região que já foi designada como a «terra das duas línguas».
Mas vamos lá ao butelo que alguns querem, a força de martelo, que seja botelo. Postura que, merecendo-me todo o respeito, não invalida que maior respeito tenha pela génese. E a nossa génese não reside no tronco do Galego-Português, tal como sucede com a Língua Portuguesa. Essa mora no tronco do Ásturo-Leonês, e não irei aqui aborrecer ninguém com fastidiosas razões históricas para o facto de sermos, efectivamente, diferentes da «falácia lusitana» que nos tentam impingir.
E lá vou assistindo à «batalha entre o butelo e o botelo», nomeadamente sempre que surgem menções ao «Festival do Butelo» e à «Confraria do Butelo e das Casulas», que por Bragança existem. Ou à «Rota das Casulas e do Butelo», que por Macedo acontece, ou à designação «Butelo de Vinhais IGP». Batalha essa que parece ter chegado à Academia de Ciências de Lisboa e ao seu ILLLP - Instituto de Lexicologia e Lexicografia da Língua Portuguesa. Instituição que, à custa dessa «batalha», consagrou que, atendendo à etimologia da palavra, a forma correcta, em Português, será «botelo». Nada teria a opor… Mas… Há sempre um «mas»…
A começar pelo facto de a mesma Academia de Ciências de Lisboa, anteriormente, nas suas versões dos anos 40 do passado século, apenas consagrasse a forma «butelo». Continuando pelo insuspeito João Pedro Machado, no seu «Grande Dicionário da Língua Portuguesa», o qual nem sequer considera a forma com [o], porque por lá só aparece o «butelo». Contudo, não serão estes argumentos suficientes para demover os defensores do «botelo». Defensores esses que, muito os respeitando, deveriam, por sua vez, respeitar o facto de a região de Trás-os-Montes Oriental, particularmente a correspondente à chamada Terra Fria, ser… «a terra das duas línguas». Que até poderão ser mais, caso consideremos o Riodonorês e o Guadramilês, ou as variantes regionais do chamado «Dialecto Trasmontano», as quais, tal como o Mirandês, possuem as suas raízes no tronco do Ásturo-Leonês.
Mas comecemos pelo «primo direito» do Portugês, o Galego. Idioma no qual estão consagradas as formas «botelo» e «butelo», embora a «Xunta de Galicia», nas suas promoções, utilize, maioritariamente, a forma «butelo». Continuando pelo «primo afastado» desse mesmo Português, o nosso «Mirandés», onde, igualmente, são consideradas duas variações: «botielho» e «butielho». Todavia, o autor do dicionário oficial do «Mirandés», o malogrado e saudoso amigo Amadeu Ferreira, quando um dia o questionei acerca da forma mais comum, respondia-me que era a variante com [u], ou seja, «butielho». A corroborar esta opção, temos o «meio-irmão» do Mirandês, o também fantástico Riodonorês, idioma no qual o magnífico enchido se escreve «butiêlo». Rio de Onor que, pelos anos 50, até tinha a «fiêsta dos butiêlos». Mas o exposto até aqui poderá não representar argumentação suficiente para demover os defensores da aportuguesada forma «botelo»…
Os quais deveriam conhecer outros idiomas ibéricos, oriundos de regiões que também têm «butelos» na sua gastronomia. Como, por exemplo, Aragão. Região na qual se vem tentado ressuscitar o Aragonês, através da «Academia Aragonesa de la Lengua». Instituição essa que até valida o nome de um enchido semelhante ao nosso através da forma «budiello». Com [u]… Assim como o faz a «Academia de la Llingua Asturiana», por forma a conservar o «Asturianu», ou «Bable». E no seu «Diccionariu de la Llingua Asturiana», lá vem plasmado o «butiellu», assim mesmo, com dois [u]! Palavra que, nos seus significados, inclui: «Embutíu - fechu cola tripa más gordo d’un animal o col estómagu del gochu». Traduzindo, «Enchido – feito com a tripa maior de um animal ou com o estômago do porco»… Por isso, um dos ditados da zona leonesa, equivalente ao nosso «ter mais olhos que barriga» é «tener el güechu más grande que'l butiellu» ou a variante «ye mayor el güeyu que'l butiellu». Tal como a Galiza, a região ásturo-leonesa também é extensa. Por isso também se podem encontrar as variantes «butietsu» e «butiillu», uma vez mais, grafadas «estupidamente» com dois [u], ou as formas «butiello» e «butiecho», estas só com o primeiro [u].
Ainda assim, os acérrimos defensores do «botelo» poderão não estar convencidos. Tudo por causa da etimologia a partir do latino «botellus», cujo significado é «intestinum» ou «interaneum» (entranhas). O que, feita a sequência lógica, daria «botelo», com [o] e não com [u]… Porém… As Línguas são «seres vivos» que contêm as suas próprias especificidades. Assim acontece, por exemplo, no Catalão, onde a palavra derivada do «botellus» é... «budell»! Ou no Italiano, onde é… «budello»! Significará o exposto que os Aragoneses, os Ásturo-Leoneses, os Catalães e os Italianos, não respeitam a etimologia a partir do «bottelus»? Não! Significa, apenas, que há uma longa História evolutiva dos diversos dialectos do Latim, que adquiriram formas muito próprias e específicas. Caso contrário, falaríamos e escreveríamos todos da mesma forma, desde Portugal à Roménia, passando por Espanha, Andorra, França e Itália. Caso dúvidas tenham, procurem saber por que motivo, há 140 anos, o eminente Leite de Vasconcellos, contagiado pelo seu amigo, o «nosso» Trindade Coelho, veio, por dois anos consecutivos, a terras Macedenses e Mirandesas… Estadias a propósito das quais nos deixou um grande legado, seguido por outros eminentes linguistas, dos quais destaco Lindley Cintra ou Paiva Boléo, que também deveriam ser lidos.
Para os que se mantiverem cépticos, acabei de inventar esta frase: «Estive à conversa na fronteira, pela tarde, e não senti nada como se estivesse com frio». Frase esta que também me atrevo a escrever em «Mirandés»: «Stube a la cumbersa na frunteira, pula tarde, i nun senti nada cumo se stubisse cun friu». Também irão protestar junto da Academia de Ciências de Lisboa, argumentando que a etimologia não justifica a «cumbersa», a «frunteira», o «pula», o «nun», o «cumo», o «cun» ou o «friu»?...
É que isto não é «ao consoante». Por vezes, conhecendo-se os diversos idiomas, a suas histórias e evolução, «esto ye al cunsuante». Também irão reclamar do «cunsuante»?… Porque é e será assim, como dizia a minha avó, respeitando-lhe a pronúncia, onde não existe o [o] átono, tal como no «Asturianu»: “onte, hoije e passadu manhã” (ontem, hoje e depois de amanhã). Expressão que, em «Mirandés», é «onte, hoije i passado manhana». Será que algum «home» irá reclamar pelo facto de «onte» estar privado do [m]?… Viva o bUtelo, forma original que a Língua Portuguesa adoptou! Viva o bUtelo, enchido que não se produz no Ribatejo ou no Alentejo, muito menos em Lisboa, terra a partir da qual nos querem impor a adulterada forma «botelo»! E viva, igualmente, o Português, idioma de que muito me orgulho! Conquanto saibam respeitar que não sou Lusitano, sou Ásturo-Leonês, por isso também tendo imenso orgulho em ser da «terra das duas línguas». Terra do bUtelo, que na Lusitânia não se produz!
Esperando que o «budell», o «budiello», o «butellu», o «butielho» e o «butiêlo», tenham convencido os resistentes, em simultâneo agradecendo aos que paciência tiveram para resistir a este texto que, afinal, foi mais longo do que o que expectável era inicialmente. E, genuinamente, “bib’ó butelo”! (e que ninguém se atreva a vir dizer que trocamos os [v] pelos [b], porque não se pode trocar aquilo que, originalmente, não temos, ou seja, a letra [v] nem sequer consta do alfabeto Mirandês...).
Confesso que, ao recordar o butelo e o azedo representados nesta imagem, fiquei com "auga na boca", ou melhor, "im'augado". Coisas... Ou "cousas"...


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