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SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

terça-feira, 27 de outubro de 2015

Um Enigma

Por: Manuel Cardoso
Numa noite de chuva de Inverno em que o vento fustigava os ramos nus do velho castanheiro do quintal e se fazia ouvir por toda a casa, bateram à porta de vidro da varandinha. Levantei-me de ao pé da lareira a adivinhar incómodos e nada me faria supor então a extraordinária aventura que iria viver nas horas mais próximas.
Dois homens vestidos de capotes antigos que pingavam, depois de confirmarem que eu era a pessoa que procuravam, explicaram-me de um modo polido e exrremamente correcto que precisavam, sem demora, da minha ida à aldeia para fazer um parto a uma vaca.
Entraram comigo no jeep e encaminhámo-nos para a serra no meio do vendaval. Pouco depois de Edroso, já a subir para Bousende, disserame para enveredar à direita por um íngreme estradão ladeado de carvalhos seculares. Começou aí a minha suspresa, já que, conhecendo minuciosamente toda a região, achava impossível ignorar aquele trajecto para algures e nem me lembra de alguma vez me ter dado conta daquela derivação.
– Como é que foram para Macedo?
– Fomos a pé – responderam-me com naturalidade.
– Mas, com uma noite destas, porque é que não telefonaram?
– Não temos lá telefone.
Por momentos pensei «estou a cair numa armadilha!», mas, como se me adivinhassem os receios, tranquilizaram-me:
– O seu pai era muito nosso amigo...
– E ainda conhecemos o seu avô.
– Afinal, para que terra estamos a ir?
– Moimenta. o seu pai nunca lhe falou?
– Não, e nem sequer sabia haver para aqui uma Moimenta. É do concelho de Bragança?
– Nós nem somos de Bragança nem de Macedo...
De súbito o caminho deixou de ser em terra e passou a ser empedrado, mas como eu nunca vira: lajes grandes de granito um pouco desniveladas que me obrigaram a abrandar para evitar solavancos.
Passámos uma ponte que tinha um curioso marco redondo a meio de uma das guardas e instantes depois encontrávamo-nos no largo de uma aldeia mergulhada em vento, chuva e escuridão.
– Senhor doutor, faça favor de parar além naquele cabanal. Está vazio para poder meter lá o carro.
A arquitectura geral do conjunto não era fruto do acaso mas estruturada, curiosa até, colunas redondas de granito suportando grossas traves que davam vão a um telhado imenso, prolongado em passagens para várias casas que se podiam alcançar a salvo das bátegas. Um candeeiro de archote pendendo de um vetusto cadeado no meio do negrume ardia espesso sob um capuz de latão, espalhando uma claridade feérica pelas paredes e dando às portadas e janelas que se recortavam na pedra o aspecto de aparições intermitentes de fantasmas. O chão era negro e exalava um cheiro forte e frio de limalha de ferro. Apetrechos de carros de bois estavam encostados pelas paredes e uma enorme forja, com um fole capaz de libertar ventanias, misturava ao ar a essência ácida de carvão apagado.
De uma das portas vinha um vagido entrecortado que logo dava a entender onde se encontrava a minha doente. O encaminhar dos nossos passos provocou uma restolhada de palha ao chegar à ombreira e duas pessoas, que percebi serem mulheres, levantaram-se de um canto.
A claridade era espalhada por uma candeia de azeite e a vaca estava de facto em dificuldades, estendida em decúbito lateral com contracções inconsequentes.
– Então boa noite!
– Boa naute nos dê Deus!–responderam-me compondo os xailes e o lenço preto da cabeça.
– Nós já lá metemos a mão e tentámos tirar o vitelo, mas não dá para o pormos em posição.
Pude confirmá-lo. O pequeno animal ainda estava vivo.
Após as perguntas e as explicações do costume, todos concordámos em que o melhor era optar por uma cesariana. Puseram-se logo de acordo e demonstraram uma tão grande confiança em mim que até me surpreendeu. Muito animado, foi em menos de uma hora que um vitelinho de orelhas pandas e largas se apresentou cá fora. Enquanto durou a intervenção, o vento e a chuva calaram-se e um frio que o tempo a passar foi acentuando e que entrava pelas frinchas da porta fez-me ficar a tremer quando me endireitei, após ter dado o último ponto.
E não foi sem surpresa deparar com um nevão já grande quando se abriu a porta. Com a mansidão, a tristeza e o encanto descritos por Augusto Gil, a neve caía ali como mais um elemento de uma revelação, naquela noite e naquele instante. Arrumei todo o material no jeep por entre duas excitações: a de um sucesso clínico e a da neve.
Fomos para a cozinha. Eram cerca das três da manbã. O frio desapareceu ao fechar-se a grossa porta de castanho.
Enquanto as mulheres remexiam em coisas do lado mais escuro, nós ficámos num pequeno círculo bruxuleante de um lume quente.
Encostado a um braço do escano estava um pau ferrado de marmeleiro em que peguei e que tinha uma ponta muito bonita com bronze encastoado em espiral e um cravo de fixação que era uma cabeça esculpida e já gasta de um javali. Elogiei longamente aquele trabalbo de artista tanto mais que o artesão era da casa e me explicou com satisfação alguns detalbes daquela manufactura. Um cão felpudo e grande dormitava debaixo do escano encostado aos meus pés. Uma preguiçadeira desceu diante de nós com uma toalha de linho cru que uma das mulheres estendeu e onde outra pôs um pão maciço de côdea aromática, uma malga de caldo rescendente e um prato com dois salpicões que só de vê-los se aplacava a fraqueza e afugentava a fome. Mas o que me assombrou foram os copos.
Três copos de vidro fumado e de um desenho extraordinário despertaram qualquer coisa de misteriosamente antigo no arquivo mental de todos os museus que eu já vira. Eram todos diferentes e peguei no meu, observando-o cheio de curiosidade. Rebordava-o um círculo de cachos de uvas e sarmentos suportado por bacantes de braços estendidos como se colhessem os bagos dessa latada cheia de movimento. Que perfeição e que ritmo naquela pequena escultura!
Quando fiz tenção de pegar noutro copo, disse um dos homens:
–Já o seu pai e o seu avô beberam por esse copo e ambos também o estiveram a ver como o senhor doutor agora fez.
– Não lhe podemos dar nenhum. Já só nos restam esses três.
– Mas ao seu avô demos um prato...
– Um prato fundo, de cor azul...
– Ah! – disse eu –, sei perfeitamente qual é esse prato.
As mulheres aproximaram-se e manifestaram satisfação por saberem que ainda o prato estava, e está, intacto e na nossa sala de visitas.
– O seu avô, que era médico, veio cá muitas vezes. Vinha a cavalo com um grande capote que o cobria a ele e à maleta.
– A mim tratou-me esta perna que se me tinha aberto de uma machadada.
– Estou a vê-lo além, em pé, a escolher ervas daquele armário, que é onde guardamos os chás e outros remédios.
Considerei o armário, de dois andares, com ferragens de bronze e almofadas lisas, uma anacrónica preciosidade. E ao ver também um tocheiro que ao lado pendurava uma lâmpada de azeite dei por mim a pensar, de repente, que nada daquilo tinha relação fácil com o Trás-os-Montes que eu tão bem conheço. Uma pequena incerteza aliada a uma não menor insegurança instalou-se-me interiormente. Ao mesmo tempo saboreava o excelente salpicão, bebia o vinho suavíssimo e cortava mais uma fatia rangente daquele pão centeio de côdea enfarinhada.
A conversa continuou como um ribeiro de inverno em que cada cachão, cada fraga vencida, cada açude galgado era para mim uma revelação e um crescendo de espanto. A certa altura pareceu-me ouvir que uma das mulheres contava um episódio qualquer em que estivera a nossa trisavó D. Josefa, quando esta mandara os criados contar, um a um, todos os castanheiros que a casa tinha na serra. Mas essa trisavó morrera em 1904!
Como aquele copo era tão bom para beber aquele vinho tão bom também! As histórias foram ficando dentro da minha memória como as velhas mobílias que se guardam no sótão: em desarrumação completa.
E falavam-me de coisas extraordinárias e para mim inauditas: do rei D. João V prazenteiro a uma outra antepassada, de castelhanos corridos por outro, eu sei lá! E num momento mais calmo, o lume com chama mais branda, o copo descendo a um ritmo mais lento, um dos homens disse gravemente:
– É que, senhor doutor, nós já não temos idade. Nós vivemos aqui na serra desde o tempo em que as legiões aqui vieram por ouro e estanho.
Nós somos Romanos que o destino se esqueceu para trás!
E eu, para meu grande espanto, disse com toda a naturalidade, considerando as brasas e sopesando o copo na mão, esta coisa bárbara:
– Ah, pois claro, então não admira que tenham conhecido a todos lá em casa. Mais do que eu!
Com uma familiaridade que já não me surpreendeu, uma das mulheres disse chamar-se Lígia e a outra Dulce, e que o meu pai lhes dissera que haveria de pôr aqueles nomes a filhas, se as tivesse.
Que já o avó tinha posto a uma. Na minha cabeça já tão leve não fulgiu nem uma centelha de espanto pela coincidência de aqueles nomes serem o de duas das minhas irmãs!
Ainda bebemos mais uns copos e comemos mais qualquer coisa.
Alguma claridade entrava já pela janela. Saímos. Não caíam flocos, mas o céu estava fluorescente de neve. O vento, que estalava, deu-me a lucidez necessária para trazer o jeep de volta a casa, onde entrei com a cabeça zumbindo e repetindo mentalmente numa euforia sem nexo «alea jacta est, alea jacta est».
Acordei normalmente sem sobressaltos nem dores de cabeça um pouco mais tarde do que o normal, cerca das nove horas. Que sonho estranho tivera essa noite! Cesarianas, Romanos, o Pai e o Avô, a Lígia e a Dulce, que coisa!, pensei, enquanto fazia a barba.
– Correu bem o parto? – perguntou da cama a Mariana.
Parei com a lâmina olhando o espelho e considerando as incríveis implicações de responder àquela pergunta. Decidi-me por uma resposta neutra:
– Sim. Era um vitelo.
Mas fiquei confuso. Afinal, não tinha sido sonho? Bah!, o melhor era passar adiante. Teria sido uma cesariana lá para Edroso e com alguns copos que bebera confundia os detalhes e o sonho.
Pus o jeep a trabalhar e liguei o limpa-pára-brisas para tirar a neve que caía outra vez com intensidade. Ao virar-me para fazer a marcha atrás vi, colocado em cima do material de clínica, um pau de marmeleiro ferrado com ponta de bronze e um cravo que era a cabeça já gasta de um javali. No ferro, havia umas letras: MDCC.

Manuel Cardoso


Nascido em Macedo de Cavaleiros em 1958.
Casado, pai de três filhos.
Vive em Latães, uma aldeia da Serra de Ala, em Macedo de Cavaleiros.
Licenciado em Medicina Veterinária pela FMV-Universidade Técnica de Lisboa;
Pós graduado em Ciências Agrárias pela UTAD- Vila Real;
Pós Graduado em Gestão e Conservação da Natureza pela Universidade dos Açores.
Exerce Medicina Veterinária e é docente do IPBragança.
Publicou e escreve artigos em jornais e revistas.

1 comentário:

  1. Extraordinário texto e história que nos deixa confusos entre a ficção e a realidade.
    Um texto que ao lê-lo me fez vir à memória o nosso Aquilino Ribeiro.
    Maravilhosa a forma como nos prende à leitura e nos faz ficar excitados ao vermos o fim da página, a apetência era continuar a ler.....
    Os meus parabéns pela postagem e os meus parabéns a quem desta forma se expressa.

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