“Almoço na Pensão Rucha. O prato de carne era cozido à portuguesa”
[In O Cónego, de A.M. Pires Cabral]
A Pensão Rucha desapareceu, deu lugar a uma agência bancária, ficou a memória dos comeres nela servidos, no caso em apreço o cozido à portuguesa, em versão bragançana. Com efeito, quase se pode dizer quantas terras, quantas receitas de cozido. Umas mais famosas que outras.
Nesta questão da fama do cozido pode-se considerar que o favor popular é consequência da habilidade de quem concebe as receitas levando em linha de conta a boa harmonização dos produtos de natureza animal e vegetal de cunho local (ao tempo), e os propagadores a dizerem quão excelente é a pitança a preços razoáveis. O sólido e completo cozido maragato cujo epicentro é San Roman cerca de Astorga, deve a fama aos almocreves que não se cansavam de o enaltecer onde quer que estanciassem. Pudera, consta de: diversas carnes de porco e vaca, enchidos, para o recheio presunto, ovos e pão, verduras que a horta dá, sopa de macarrão, pão e arroz que se prepara no caldo do cozido.
Prato popular, apodado depreciativamente de rústico, o cozido consegue atingir a mesa dos ricos, embora na maioria das vezes sofrendo modificações pela incorporação de outros acompanhamentos a torná-lo mais refinado. O cozinheiro Rumpolt publica em 1581, Ein new Kochbuch tratado de boas maneiras à mesa e de instrução da alta criadagem, ao mesmo tempo reinterpreta o cocido espanhol tão do agrado da arraia-miúda “numa iguaria de luxo para o rei e imperador, para príncipes e senhores” no qual entram noventa espécies de carne e enchidos diferentes.
O cozinheiro real Domingos Rodrigues no Arte de Cozinha revela larga preferência pelo cozido, pois nas sete ementas para toda a semana, salvo os dois dias de jejum a interditar a carne, o cozido é sempre o prato principal, antecedendo os doces. O cozido servido no domingo incluía vaca, carneiro, mãos de porco, presunto, grãos, nabos, pimentão, todos os adubos amarelos, bem como açafrão.
A confraria de maçons de Pérouges, loja dos Sete Tecelões, executava uma receita assente no número sete. Para se obter um: “bom resultado, considerada a quantidade de ingredientes, deviam ser pelos menos doze os comensais, todos robustos e de bom apetite”. Da leitura da receita entende-se os requisitos exigidos aos participantes no ágape. Consta de: “numa panela cheia de água quente e ligeiramente salgada e com um copo de azeite, ponha-se um pedaço de cada um dos sete cortes de carne de vaca: ponta da costela, pá, faceira, cachaço, lombo, perna e alcatra. Cada uma destas peças deve estar furada com cravos de cheiros. Colocam-se numa panela todas juntas de maneira que cada uma conserve a sua consistência específica. Na panela junto às carnes juntam-se aipo, cebolas, cenouras, dentes de alho pisados e um ramo de alecrim fresco. Noutra panela, cozem-se da mesma maneira sete adjuvantes: uma galinha, uma língua e um rabo de boi, um chouriço e um pé de porco, uma cabeça de vitela, e um pedaço de lombo de porco. Em ambos os casos, durante a cozedura, a realizar-se em lume brando, as panelas devem espumar continuamente. Todas as carnes são servidas com sete verduras: abóboras, batatas, nabos, couves, funchos, cebolas e cenouras salteadas com manteiga, sobre as carnes que se mantêm quentes sobre um fogareiro, no seu caldo que ao chegar o momento de ser servido, acrescenta-se um pouco de sal grosso.
Sirvam este cozido com molho verde, mostarda forte e molhos, o primeiro misturando partes iguais de mel, vinagre e nozes picadas. O segundo com uma pêra cozida com canela, pimenta e cravinho.
Serve-se com um pouco de vinagre quente”.
O poeta João Penha impenitente comilão conta que após ter comido canja de galinha, deu réplica adequada a uma receita do “chamado antigo cozido à portuguesa, composto de carne de boi, galinhas, paios, toucinho e presunto, couve-flor e arroz.”
Às receitas acima aduzidas podem-se juntar outras de idêntica composição originárias de outros países, mas o propósito é referir comeres bragançanos que em diversas composições estão colocados na classificação mais ampla – transmontanos –, sendo os exemplos trazidos à colação como prova provada da existência de centenas de receitas de cozido, um pouco por toda a Europa, países de África e América Latina.
Nós levamos o cozido para o Brasil, na Baía confeccionam um cozido de peru, previamente assado, mais linguiça, legumes e verduras.
O cozido nas suas diversas versões é um prato a exigir paciência, isto é: cozeduras lentas, em lume brando, daí resultando uma comida grávida de aromas e a conceder grato prazer à boca, e beatitude pós prandial. Assim o dá a entender Eça de Queiroz ao nos descrever o jantar oferecido pelo Conselheiro Acácio, onde o cozido foi o prato de substância.
O facto de o cozido resultar melhor quanto mais lenta for a cozedura, é o resultado dos ensinamentos colhidos pelas cozinheiras na miscigenação dos povos. Tais influências milenares resultaram da herança deixada por esses mesmo povos que demandaram a Península Ibéria, e por cá ficaram implantando crenças e hábitos, daí estudiosos afiançarem ser o cozido descendente da adafina. A adafina é uma receita judaica de origem sefardita que se come no sabat. A cozinha judaica é marcada por rigoroso respeito pelas festividades religiosas, ora o sabat é uma das mais importantes, nesse dia louva-se e evoca-se o repouso do Senhor, após ter criado o homem à sua imagem. O domingo dos cristãos é bem menos exigente, senão atente-se na seguinte passagem: “Observe escrupulosamente os dias de guarda. Seis dias trabalharás, para fazeres a tua tarefa; no sétimo dia porém... não trabalharás tu nem o teu filho, ou filha, nem teu escravo, nem teu boi, nem teu burro, nem qualquer cabeça do teu gado...”, assim o determina a lei Mosaica.
Não podendo fazer fogo no sabat, muito menos cozinhar, segundo o Êxodo 35:3: “Não acendereis lume em todas as vossas casas no sétimo dia”, os judeus conceberam um prato quente – a adafina – um cozido, que se colocava no forno comunal previamente aceso, ou na casa de cada um, durante toda a noite, em fogo lentíssimo, metido num recipiente hermeticamente fechado. Adafina significa coisa quente, tendo ficado conhecida como sopa dos judeus em Espanha e Portugal. A adafina é referida no Talmud e outras obras da literatura rabínica, tendo influenciado diversas cozinhas, caso do cassoulet francês e do cocido madrileno e de outras terras de Espanha. Naturalmente, o cozido português em geral e o cozido bragançano em particular, mais a mais existindo na região uma importante comunidade sefardita, não ficaram imunes à referida influência.
A receita da adafina incorpora: pé de vitela, cebolas, carne de peito de vitela ou de vaca, ossos de tutano, grão-de-bico, batatas e ovos cozidos. A forma de servir a adafina é igual à do cozido.
A receita milenar da adafina terá sido alterada pelos cristãos ao lhe acrescentarem carne de porco, e seus derivados caso dos enchidos e toucinho.
“Alguns em suas casas passam com duas sardinhas em pousadas alheias pedem iguarias,
desdenham o carneiro pedem as adafinas”
O fanatismo exacerbado e orientado pela Inquisição deu origem a uma receita denunciante intitulada cozido de cristão velho. Tristes e desapiedados tempos aqueles!
Comeres Bragançanos e Transmontanos
Publicação da C.M.B.
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